sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

[827] A VIRTUDE DA INDIGNAÇÃO 1: CLÁUDIO ABRAMO. [Para mudar o Brasil]. Folha de São Paulo, 20jul1984.





A virtude da INDIGNAÇÃO*

Artigo de CLÁUDIO ABRAMO (06.abr.1923 / 14.ago.1987)
publicado na Folha de São Paulo, em 20jul1984.
(*) em minúsculas e sem negritos; nomes próprios em caixa baixa; ao longo do texto original, que foi editado todo em itálico.


No Brasil, país colonizado, a indignação*, a santa e justa indignação do cidadão em confronto com a sociedade, ou do ser humano, na sua existência diária, é tida como caráter difícil, mau humor e temperamento ruim.

A indignação, contudo, é uma das mais nobres virtudes que o homem pode ostentar, e não é à toa que HOMERO* conta a “ira funesta do pelágio AQUILES”, na sua ode aos heróis gregos e troianos.




Ao longo da história da humanidade a indignação tem desempenhado um papel fundamental e tem sido geralmente graças a ela, manifestada por diversas formas, estilos e maneiras, que o gênero humano tem avançado.

A colonização portuguesa abafou os arroubos mais nobres dos brasileiros, o que foi agravado pelas sucessivas ditaduras que tivemos, mas mais ainda pelos líderes da pequena burguesia que de algum jeito se assenhoraram do poder, frequentemente por eleições livres ou quase, e que invariavelmente transmitiram ao nosso povo a ideia, de outra forma abstrusa, de que é bom ser submisso e é bonito concordar com tudo.

Até mesmo figuras importantes da oposição política do Brasil tem se referido ao consenso, que é algo que só poder ser procurado quando há equilíbrio muito tênue de forças, e ainda assim por motivos táticos.

Homens indignados são capazes de conduzir seus povos, interpretar melhor seu tempo e resumir com maior eficácia os sentimentos e as ideias de sua época e de suas sociedades.

 VLADIMIR LENIN

Acredito que LENIN e TROTSKY fossem homens indignados, como tantos outros seus companheiros, e creio que uma das forças secretas que impelem LUÍS CARLOS PRESTES na sua incansável caminhada é a indignação que experimenta diante de nossa realidade.

TROTSKY

LUÍS CARLOS PRESTES 

CARLOS LACERDA, um dos mais brilhantes jornalistas que o Brasil já teve, e meu amigo, apesar de termos sido adversários políticos irreconciliáveis, era um homem indignado ao extremo, e se devem a seus momentos de mais profunda indignação alguns de seus artigos e discursos melhor concebidos e conjugados, mesmo se essa indignação frequentemente o levou a defender causas injustas.

CARLOS LACERDA

CELSO FURTADO, que tem aparência tranquila e calma, é um homem que se mostra frequentemente indignado por exemplo com a dívida externa brasileira e com a situação em que são atiradas gerações inteiras de nordestinos miseráveis. A sua indignação é filtrada e decantada através de um raciocínio claro e límpido, mas se me perguntassem para separar, de um lado os homens que conservam intacta a sua capacidade de indignar-se e de outro a incapacidade, eu certamente poria CELSO FURTADO entre os primeiros.

CELSO FURTADO

Eu poderia mencionar dezenas de brasileiros que são capazes de indignar-se, mas temo admitir que os que já perderam, ou nunca tiveram, essa virtude recôndita, somam milhões e milhões.

Esse não é aliás um defeito brasileiro. No nosso caso, as condições se agravam porque fomos colonizados e depois continuamos a ser vampirizados pelos interesses transnacionais, sendo para mim praticamente incompreensível que assistamos calmamente a certas cenas de rua, a alguns fatos marcadamente abusivos, e que pactuemos com situações rigorosamente inaceitáveis.

Mas o povo inglês, sobre o qual tantos escritores já escreveram tanto, é absolutamente acarneirado, no que infecta os milhões de imigrantes que chegam à ilha, ex-coloniais e ex-súditos periféricos de sua majestade Elizabeth Regina.É bem verdade que não se vêem na Inglaterra coisas que assistimos aqui, mas a tendência ovina dos ingleses é conhecida, como também é conhecida dos mais atentos a sua extrema tendência para a loquacidade indiscriminada, porque os que falam inglês, uma minoria – pois o resto fala uma interlígua incompreensível – gostam de ouvir a própria voz e o maior exemplo disto é o professor HIGGINS do “Pygmalion” de BERNARD SHAW.

GEORGE BERNARD SHAW

A indignação deveria ser restabelecida em nosso País como virtude excelsa, como bem maior, como medalha de honra, pois sem ela nosso País ficará sempre oscilando entre a mediocridade sem imaginação e o reacionarismo conservador e atrasado.

Todo indivíduo que se indigna facilmente é considerado aqui louco ou desequilibrado, mesmo quando sua indignação foi obviamente provocada por algo que só poderia despertar indignação.

Outro dia tomei um táxi e o motorista comentou comigo que “Os índios estão fazendo confusão”. Perguntei: “Que confusão?”. “Essa confusão que eles estão fazendo.” Ficamos por aí. Depois me perguntou como era possível que MÁRIO JURUNA tivesse sido eleito quando há “tantos outros homens capazes” (Deus nos livre dos “homens capazes”). 

MARIO JURUNA

Expliquei-lhe que JURUNA era um monarca de sua nação, um homem inteligente que conservava intacta sua capacidade de indignar-se. O meu interlocutor não entendeu nada. Para ele, um homem indignado quer dizer “mau elemento”, tendo sido esse odioso “elemento” contrabandeado da linguagem dos investigadores para o vernáculo, juntamente com “viatura”, “colisão” e outras joias do pensamento policial brasileiro.

Creio que ANTÔNIO CONSELHEIRO foi um homem indignado, talvez tendo cometido alguns erros graves, mas alguém que manteve pura essa qualidade.  

Assim como deve ter sido facilmente indignável ZUMBI DOS PALMARES, e creio que um exemplo da grande capacidade de indignar-se foi FREI CANECA.



De modo que acho sinceramente que, se quisermos acertar as coisas neste País, devemos colocar na Presidência da República um brasileiro que possa permanecer em estado permanente de indignação. Sem uma boa dose dose dela não vamos consertar nada aqui.

Cláudio Abramo
Folha de São Paulo, 20jul1984.
A presente edição: transcrita por Ronald Almeida, SLZ-MA, 2020-01-10.


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RONALD DE ALMEIDA SILVA
Rio de Janeiro, RJ, 02jun1947; reside em São Luís, MA, Brasil desde 1976.
Arquiteto Urbanista FAU-UFRJ 1972 / Registro profissional CAU-BR A.107.150-5
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