quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

[341] O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL EM 2016: O ANO QUE CUSTOU A ACABAR.

O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL EM 2016:
O ANO QUE CUSTOU A ACABAR



Luís Roberto Barroso (1)
Acesso RAS em 04jan2017.

(1) Ministro do Supremo Tribunal Federal. Professor Titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Professor do Centro Universitário de Brasília – UniCEUB.
Sou grato a Aline Osorio, Cristina Telles e Renata Saraiva pela leitura cuidadosa e sugestões valiosas à Parte I desta retrospectiva.

I. INTRODUÇÃO
Como em anos anteriores, a presente retrospectiva é dividida em duas partes.
Na Parte I, faço uma reflexão crítica sobre o ano no Supremo Tribunal Federal, destacando o papel institucional desempenhado pela Corte, sua relação com a sociedade e algumas decisões emblemáticas do período.
A Parte II traz uma lista das principais questões decididas pelo Tribunal ao longo do ano. A seleção e o resumo dos casos, constantes da segunda parte, foram feitos com a colaboração preciosa de Aline Osorio, que há tempos me empresta o seu brilho e dedicação como assessora em meu gabinete.

Parte I A VITRINE, AS PEDRAS E O CURSO DA HISTÓRIA

O ano de 2016 foi turbulento em todas as áreas onde a vista alcança. Na Economia, o Brasil viveu sua pior recessão desde 1930, com PIB negativo, retração do emprego e desequilíbrio das finanças públicas. Na Política, passamos por um longo e traumático processo de impeachment da Presidente da República, e a Operação Lava-Jato continua a produzir tremores, choro e ranger de dentes. Até agora, porém, nada mudou em um sistema eleitoral e partidário que vai na contramão do processo civilizatório: reprime o bem e potencializa o mal. Na Sociedade, o preocupante repúdio aos políticos em geral, aliado ao temor de retrocesso social, têm desaguado em manifestações públicas de inconformismo e em polêmicas ocupações.

Seria uma ingenuidade supor que o mundo do direito, da Justiça e do Supremo Tribunal Federal pudesse ser um lago tranquilo em meio à tempestade. O Judiciário tem problemas. Muitos são antigos e crônicos, como o custo alto e a lentidão. Estes não têm nada a ver com a crise presente. Outros, no entanto, decorrem dos momentos conturbados pelos quais passamos. Exposto em uma vitrine, com cada despacho ou decisão fiscalizados por uma multidão polarizada, quando não vem pedra de um lado, vem do outro. Por exemplo: se o país está dividido em relação ao impeachment e o STF é chamado a arbitrar controvérsias em torno dele, não há como escapar do clima de animosidade geral. Algum lado ficará insatisfeito. Se a Câmara dos Deputados reluta em afastar o seu Presidente, a sociedade cobra uma providência moralizadora e o timing do Tribunal não atende à ansiedade da maioria, o desgaste é inevitável. Se, diante da polêmica em relação à PEC do limite de gastos, o STF indefere o pedido de paralisação do processo legislativo, parte do movimento social fica inconformado. Mas se, ao revés, o Tribunal paralisa a tramitação do projeto de lei que desfigurava as medidas anticorrupção, outra parte fica indignada.

Em suma: não há como agradar a todos. Nem este é o papel de uma Suprema Corte. Sempre haverá pessoas cujas visões de mundo serão contrariadas ou que terão interesses pessoais afetados. Mas, apesar da elevação do tom das críticas ao STF no apagar das luzes de 2016, foi um ano de mais acertos do que erros. A seguir, algumas reflexões para compreender um ano que demorou a acabar.

II. A EXPOSIÇÃO DO TRIBUNAL

Diversos fatores contribuem para o excesso de exposição e visibilidade do Supremo Tribunal Federal. Alguns são conjunturais. Outros decorrem do arranjo institucional adotado no país. Dois fatores conjunturais estão diretamente ligados ao Poder Legislativo. O primeiro envolve uma certa dificuldade de o Congresso legislar sobre temas importantes e divisivos, como desaposentação, terceirização ou greve no setor público. Isso obriga o Tribunal a decidir as questões que lhe são submetidas tendo de produzir as normas faltantes. Portanto, acaba desempenhando uma função legislativa por falta de opção. O segundo fator é que boa parte da chamada “judicialização da política” decorre de ações que são propostas perante o STF por partidos políticos ou por parlamentares. Como é comum nesses casos, os que ficam felizes com a decisão elogiam a boa interpretação constitucional. Os que ficam infelizes, criticam o “ativismo judicial”. Assim é porque sempre foi, aqui e alhures, dos Estados Unidos à África do Sul.

Outro fator relevante de exposição do Tribunal, este decorrente do arranjo institucional brasileiro, é o amplo acesso a ele dado pela Constituição. De fato, as ações diretas (com destaque para a ação direta de inconstitucionalidade – ADI e para a arguição de descumprimento de preceito fundamental – ADPF) podem ser propostas por um longo elenco de legitimados, que inclui os partidos políticos, as entidades de classe de âmbito nacional e as confederações sindicais, além do Procurador Geral da República e todos os Governadores. Este fato, somado a uma Constituição abrangente, que cuida de uma vasta multiplicidade de matérias, faz com que praticamente qualquer questão com um mínimo de relevância possa chegar ao Supremo Tribunal Federal. E, muitas vezes, sem o filtro de decisões das instâncias inferiores. Não há nada comparável no mundo.

Por fim, tem a TV Justiça. À exceção do México, nenhuma outra Suprema Corte julga os casos na frente das câmeras de televisão. Há algumas desvantagens nisso (2) : dificulta a construção deliberativa de decisões, exacerba vaidades e torna os votos mais espichados (3) . As vantagens, todavia, superam essas vicissitudes. A primeira e mais relevante: o Brasil é um país no qual o imaginário social supõe que por trás de cada porta fechada estão ocorrendo tenebrosas transações. A imagem de onze agentes públicos debatendo abertamente a melhor solução para alguns dos grandes problemas nacionais é boa para a Justiça e para sua legitimação. Por outro lado, aumenta o controle social e produz um efeito didático para a comunidade jurídica em geral.

III. UM ANO DE DECISÕES IMPORTANTES

2016 foi um ano de decisões de grande relevância envolvendo a preservação da democracia, a proteção de direitos fundamentais e o atendimento de demandas significativas vindas da sociedade civil. Algumas delas serão objeto de comentário específico na segunda parte desta retrospectiva. Um dos destaques foi a definição do rito do impeachment, julgado no apagar das luzes do ano passado, mas com embargos de declaração e outros desdobramentos apreciados este ano. Um procedimento importante como o afastamento de um Presidente da República não poderia sujeitar-se a uma tramitação errática e voluntarista na Câmara dos Deputados. O Tribunal proporcionou estabilidade e credibilidade ao processo, determinando a aplicação das mesmas regras do impeachment do Presidente Collor.

A essa correção de rumo do processo de impeachment soma-se a providência, importantíssima para reduzir a seletividade do sistema penal brasileiro, de se permitir a execução das decisões penais condenatórias após o julgamento de segundo grau. A nova orientação é importante para a sociedade, pois torna mais efetivo, entre outros, o combate à corrupção e à criminalidade de colarinho branco. É relevante, ainda, para a advocacia, que fica exonerada da sina ingrata de ter que interpor sucessivos recursos descabidos e procrastinatórios. Em outra decisão emblemática, o Tribunal retirou o incentivo às greves no setor público, determinando, como regra, o corte de ponto dos servidores paralisados, a exemplo do que se passa na iniciativa privada. A paralisação desses serviços penaliza, sobretudo, a população mais pobre. A este propósito, a cidade de Buenos Aires, na Argentina, por haver conseguido coibir as greves de professores do ensino básico, teve aumento expressivo na avaliação anual do PISA (Programme for International Student Assessment).(4). O Tribunal também teve papel decisivo ao arbitrar com sucesso o conflito entre Estados e União, decorrente da crise fiscal, tendo contribuído para uma composição razoável entre as partes em litígio. Estes são alguns exemplos de intervenção construtiva do Tribunal na vida nacional, em meio a vários outros discutidos adiante.


IV. ALGUMAS PEDRAS NO CAMINHO

Na vida pública, não importa muito a quantidade de acertos ou de consensos que se consiga produzir. No balanço final, são os desacertos, os desencontros ou, ao menos, as questões controvertidas que ficam registradas com maior destaque na memória. Três dessas questões fizeram manchete em 2016. A primeira delas foi o afastamento do então Presidente da Câmara dos Deputados. Requerido em dezembro de 2015, pelo Procurador-Geral da República, o pedido só veio a ser deferido em 5 de maio de 2016, com a confirmação unânime de liminar concedida pelo Ministro Teori Zavascki na manhã do mesmo dia. As críticas vieram de um lado e do outro: houve os que se queixaram da demora prolongada e os que se insurgiram contra a ingerência em outro Poder.

Já no tocante ao afastamento, não concretizado, do Presidente do Senado Federal, os protestos vieram de todos os lugares e por tantos motivos diversos que chega a ser difícil sistematizá-los. Houve queixas em relação ao pedido de vista de um Ministro, quando já composta a maioria, em processo que discutia, em tese, a compatibilidade entre o exercício do cargo que se situe na linha sucessória da Presidência da República e a condição de réu no Supremo Tribunal Federal. Outras queixas se dirigiram contra a demora do Tribunal em analisar o pedido de abertura de ação penal contra o Presidente do Senado. Quando finalmente instaurado o processo criminal, foi a decisão monocrática do relator da ação de controle abstrato, que determinou o afastamento cautelar do Presidente do Senado, que se tornou alvo de críticas. Dessa vez, o problema teria sido o açodamento. E depois, quando o Plenário deixou de ratificar a cautelar, a acusação foi de contemporização (5) .

A terceira pedra no caminho, já quase no apagar das luzes, deu-se em razão da cautelar monocrática que mandou voltar para a Câmara dos Deputados o desfigurado pacote de medidas anticorrupção. De novo, a sociedade dividida: parte indignada com o que considerava um desvio de finalidade perpetrado pela Câmara, que aproveitou o projeto contra a corrupção originário da mobilização popular para inserir medidas punitivas a juízes e membros do Ministério Público. E, de outro lado, os que bradavam contra mais uma intervenção do Supremo no Legislativo.

As pedras no caminho, somadas às que foram arremessadas com estilingues diversos, causaram arranhões e amassados na lataria. Mas, à primeira vista, não parece ter havido dano ao chassi e ao motor. Em favor dos ocupantes do veículo, cabe lembrar que os eventos se deram em momento de chuva torrencial, nevoeiro espesso, pista escorregadia e bandoleiros na estrada.

V. AS CRÍTICAS JUSTAS

1. Excesso de decisões monocráticas
A crítica ao excesso de decisões monocráticas é procedente. Do total de decisões proferidas pelo Tribunal em 2016 – incríveis 117 mil –, a imensa maioria foi de natureza monocrática. A explicação é singela: o volume de processos é imenso e o STF realiza cerca de 80 sessões plenárias por ano. Isso significa uma capacidade máxima de julgar cerca de 250 processos anualmente, fazendo o cálculo otimista de três processos por sessão. Como há no estoque do final do ano que se encerrou 61.816 processos pendentes de decisão, só para julgá-los, admitindo-se, contrafactualmente, que não entrasse mais nenhuma causa nova, seriam necessários 247 anos para liquidar o passivo existente. Se contabilizássemos os julgamentos em lista e nas Turmas, esse número diminuiria, mas nada que desfizesse o absurdo. Portanto, resta a alternativa monocrática.

Durante a crise, um fenômeno que ganhou destaque foi a “monocratização qualitativa” do STF, isto é, o crescente julgamento de casos de maior relevância política, econômica e social para o país de forma monocrática pelos Ministros do Supremo. A título exemplificativo, neste ano, Ministros, individualmente, determinaram
(i) a anulação do ato de nomeação de Ministro Chefe da Casa Civil,
(ii) a abertura de processo de impeachment contra o então vice-Presidente da República,
(iii) o afastamento cautelar do Presidente da Câmara dos Deputados do mandato parlamentar e da função presidencial,
(iv) o afastamento cautelar do Presidente do Senado Federal, e
(v) a suspensão de atos referentes à tramitação do projeto de lei de iniciativa popular de combate à corrupção.
Sem discutir o mérito de nenhuma dessas decisões, o que o Tribunal deveria fazer para reduzir a exposição de sua imagem nesses casos é um pacto para que qualquer questão institucionalmente relevante seja decidida colegiadamente (no Plenário ou na Turma, conforme o caso). Na hipótese de medidas urgentes, elas devem ser levadas à ratificação na primeira sessão subsequente ou mesmo justificar a convocação de sessão extraordinária.

2. Excesso de processos
Desde muito antes de entrar para o Tribunal – portanto, como advogado ainda – tenho defendido a redução drástica dos processos admitidos pelo Supremo Tribunal Federal. Pessoalmente, como regra, não seleciono mais do que dois casos por semestre para propor a concessão de repercussão geral ao Plenário Virtual. Diante do estoque existente, que precisará de anos para ser julgado, atravancando, enquanto isso, a Justiça do país, em razão do sobrestamento que o reconhecimento de repercussão geral acarreta, não vejo como agir de outro modo. Minhas posições são conhecidas: a) o Tribunal não deve admitir mais recursos extraordinários para julgamento em Plenário (pelo reconhecimento de repercussão geral) do que seja capaz de julgar em um ano; b) reconhecida a repercussão geral, deve ser marcada a data de julgamento entre 6 meses e um ano após o reconhecimento; c) os processos não selecionados para repercussão geral serão encaminhados da seguinte forma: o relator levará a Plenário Virtual a proposta de não atribuição de repercussão geral ao recurso, com breve justificativa, sem que a decisão produza qualquer efeito para além do caso concreto.

Detalho um pouco mais esta última proposta. Na prática, o que ocorre é o seguinte: o Ministro, com a ajuda dos seus assessores, seleciona, em meio aos milhares de processos que recebe, aqueles poucos que irão ter repercussão geral reconhecida. Todos os demais ele decide monocraticamente. Trata-se, na verdade, de uma negativa de repercussão geral oculta, como apontado pelo juiz auxiliar do meu gabinete Frederico Montedônio, em dissertação de mestrado da qual sou orientador. Os processos não selecionados para repercussão geral, e consequente julgamento em Plenário, são descartados pelos argumentos defensivos tradicionais: matéria infraconstitucional, violação indireta à Constituição, questão de fato, ausência de prequestionamento, deficiência na demonstração da repercussão geral etc. Com isso, os gabinetes têm metade de sua força de trabalho dedicada a processos em que será mantida a decisão da origem, por não conhecimento do recurso extraordinário apresentado. O absurdo é total. Muito melhor e mais transparente seria simplificar esta tarefa, permitindo aos Ministros que simplesmente justifiquem a inadmissibilidade do recurso por falta de repercussão geral do caso – e não necessariamente da questão constitucional nele suscitada –, levando sua decisão ao Plenário Virtual para escrutínio dos demais.

A aceitação de que o Tribunal tem uma capacidade máxima de julgamento será uma decisão corajosa e libertadora, acabando com o tropicalismo equívoco de se admitirem muito mais processos do que a capacidade de julgar com eficiência e presteza comporta. E, após alguns resmungos, todos terminarão por concordar com a obviedade de que o acesso à Justiça e o devido processo legal se realizam, em regra, em dois graus de jurisdição. Tribunais superiores julgam apenas o que identificarem como sendo de interesse transcendente, selecionando os feitos mais importantes da safra. O resto transita em julgado. A cultura que admite como razoável processos que duram 3, 5, 7 ou 10 anos precisa ser derrotada com urgência.

É preciso apontar, ainda, que o problema de excesso de processos se intensificou no ano de 2016. Em meio a diversas investigações criminais de grande porte, o extenso rol de autoridades submetidas à jurisdição do Supremo Tribunal Federal tem produzido uma sobrecarga de trabalho sem precedentes na área penal. São mais de 100 ações cautelares ajuizadas, 16 denúncias e 58 inquéritos instaurados apenas no âmbito da Lava Jato. E a sociedade vem exibindo compreensível intolerância em relação à demora no julgamento das causas criminais, especialmente daquelas envolvendo casos de corrupção. De longa data, tenho sustentado que o foro por prerrogativa de função constitui uma reminiscência aristocrática, sem réplica comparável em outras democracias. O sistema é muito ruim, notadamente por duas razões. Em primeiro lugar, trata-se de uma fórmula não republicana e anti-isonômica, que garante a determinadas autoridades privilégio injustificável na seara criminal.

Em segundo lugar, porque a Suprema Corte não é vocacionada para funcionar como juízo de primeira instância em matéria penal. A grande quantidade de competências do Tribunal faz com que ele não possa priorizar o processamento de inquéritos e ações penais, sem prejuízo das suas funções principais de guardião de Constituição. Levantamento feito em novembro deste ano pela Assessoria de Gestão Estratégica documentou o seguinte: encontram-se em curso perante o STF 357 inquéritos e 103 ações penais. O tempo médio entre o oferecimento e o recebimento de denúncia é de 565 dias (em primeiro grau, a média é de menos de uma semana). Já ocorreram mais de 60 casos de prescrição. Considerando o que ainda vem por aí, a redução drástica do foro privilegiado no tornou-se urgente. Do contrário, o Supremo Tribunal Federal viverá o imenso desprestígio de não conseguir desincumbir-se a tempo e a hora das dezenas de processos que virão. E ficará associado à crônica impunidade da vida política nacional

3. “Ativismo extrajudicial”
Há uma queixa relevante de diversos setores da sociedade contra o que se pode chamar de ativismo extrajudicial, isto é, a atuação de juízes constitucionais fora dos autos. A crítica tem sido veiculada na imprensa, na academia e, também, por associações de magistrados Este tipo de conduta se exterioriza sobretudo por via da mídia e envolve:
(i) manifestações sobre processos ainda não julgados; e
(ii) manifestações críticas sobre decisões de órgãos do Poder Judiciário ou colegas de Tribunal.
Em Editorial de 16.12.2016, o jornal Folha de São Paulo registrou criticamente:

“Mais do que em outras ocasiões, os ministros do STF, neste momento de descrença na classe política, precisam agir com prudência e discrição. Se em vez disso prevalecerem o voluntarismo judicial e a incontinência verbal, logo o órgão que integram deixará de ser ponto de equilíbrio para se transformar em mais um elemento da crise”.

Inegavelmente há problemas nessa área, a exigir autocrítica e comedimento. O ativismo extrajudicial impróprio não se confunde com a possibilidade – por vezes, com o dever – de um Ministro do STF dialogar com a sociedade, justificando posições assumidas. Ou participar, sem engajamento político, de debates institucionais. Mas juiz não pode ser comentarista político dos fatos do dia.

VI. AS CRÍTICAS INJUSTAS

1. Invasão do espaço do Poder Legislativo
Crítica reiterada que se tem feito ao Tribunal é a de que ele estaria invadindo ilegitimamente o espaço de atuação do Legislativo. Deixo de lado, por ora, a questão das decisões monocráticas recentes, que serão objeto de comentário específico. Em relação às decisões colegiadas do Tribunal, a crítica é improcedente. O STF, como regra, somente tem atuado de modo mais expansivo nas hipóteses de omissão do Congresso Nacional ou quando esteja em jogo um direito fundamental. Confira-se o breve exame de três casos abaixo.

a) A decisão sobre o aborto proferida pela 1ª Turma.
Tratava-se de um habeas corpus no qual se discutia se um médico e seus assistentes deveriam ser mantidos presos pela prática do crime de aborto praticado com o consentimento da gestante. Manter uma pessoa presa preventivamente e em seguida condená-la por fato tipificado na legislação penal é atividade judicial típica. Mas se o juiz está convencido, por fundamentos objetivos, racionais e praticados por todos os países democráticos e desenvolvidos do mundo, que a criminalização da interrupção da gestação durante o primeiro trimestre viola direito fundamental da mulher, o que deve ele fazer? Deve condenar o réu contra a Constituição e contra o mínimo de Iluminismo que deve reger a vida em uma sociedade civilizada, aberta e democrática? Deve brandir o argumento formal de que a competência é do Congresso e abandonar o argumento substantivo de que mulheres não são seres inferiores, que não são um útero a serviço da sociedade e que têm direito a ter vontade própria?

b) A decisão sobre indenização devida aos Estados em razão da isenção dada pela União Federal de tributos estaduais nas operações de exportação.
Uma lei de 1996 (Lei Kandir) e uma emenda constitucional previram a isenção do imposto estadual do ICMS sobre operações de exportação, visando a fomentar o comércio internacional do país. Previu-se, igualmente, que lei complementar deveria ser editada para compensar a perda de arrecadação dos Estados. Enquanto não editada a lei, adotar-se-ia um critério temporário para a indenização, considerado, porém, precário e insatisfatório em médio e longo prazo. Passados muitos anos, contudo, a lei não havia sido ainda editada, gerando importante prejuízo para os Estados-membros da Federação. O Supremo, então, declarou a mora do Congresso Nacional e estabeleceu o prazo de um ano para que viesse a purgá-la. Do contrário, caberá ao Tribunal de Contas da União normatizar a compensação, naturalmente sob supervisão do próprio STF. Portanto, fixou-se um prazo para o Legislativo sanar a omissão e já se previu a solução, caso ele permaneça inerte. Adotou-se, aqui, a fórmula de diálogo institucional que eu vinha propondo desde que ingressei no Tribunal: declara-se a omissão, abre-se prazo para o Congresso atuar e já se prevê a solução a ser adotada caso não seja editado o ato normativo necessário, após certo tempo (v., e.g., meus votos na modulação de efeitos nas ações diretas envolvendo precatórios – EC 62 – e no caso da desaposentação, comentado a seguir, cujo julgamento havia se iniciado em data anterior, só tendo sido concluído este ano) (6) .

c) A decisão sobre desaposentação.
Em pelo menos um caso, a crítica que se poderia fazer seria inversa: o excesso de preocupação fiscal inibiu o STF de sanar uma omissão e produzir a solução justa no caso da desaposentação. Para compreender o conceito de “desaposentação”, tome-se a seguinte hipótese: um trabalhador da iniciativa privada se aposenta aos 50 anos de idade, por tempo de contribuição. Depois, retorna ao mercado de trabalho, voltando a pagar a contribuição previdenciária mensal. Quinze anos depois, aos 65 anos, ele pretende substituir a primeira aposentadoria por uma nova, que leve em conta sua nova idade e o tempo acrescido de contribuição. A lei não disciplina esta possibilidade.

Diante disso, formaram-se duas opiniões extremas:
(i) o segurado tem direito à nova aposentadoria, sem descontar nada do que recebeu do sistema, a título de proventos, nos últimos 15 anos; e
(ii) o segurado não tem direito à nova aposentadoria, a despeito de haver pago 15 anos a mais de contribuição previdenciária (que é um tributo vinculado, que não deve estar desatrelado de algum tipo de benefício).

Prevaleceu a segunda posição, contra o meu voto (e o dos Ministros Rosa Weber, Marco Aurélio e Celso de Mello). A solução que propus trilhava o caminho do meio e era a seguinte: fixar o prazo de 180 dias para que o Congresso Nacional provesse a respeito da desaposentação, sanando a omissão. Caso a omissão persistisse, a nova aposentadoria seria calculada por uma fórmula que levaria em conta os 15 anos que contribuiu a mais e os 15 anos em que sacou do sistema. Uma singela combinação entre a Constituição e a Matemática para fazer justiça. A crise fiscal deve ser levada em conta pelo Supremo Tribunal Federal, mas não deve servir de fundamento para permitir que o Estado seja incorreto.

2. Excesso de ativismo judicial.
Impõe-se aqui retomar a distinção, que já fiz neste mesmo espaço há muitos anos: judicialização é diferente de ativismo (7). Que tampouco se confunde com voluntarismo monocrático. A judicialização decorre, entre outros fatores, da constitucionalização abrangente verificada no Brasil, bem como do fácil acesso ao Judiciário e ao Supremo Tribunal Federal. Trata-se de um fato. O ativismo judicial, por sua vez, envolve uma atuação proativa do Judiciário, para levar princípios e regras da Constituição a situações que não foram expressamente previstas pelo legislador. Tratase de uma atitude. A expressão ativismo judicial adquiriu nos últimos tempos uma conotação negativa de extrapolação do próprio papel pelo Judiciário. Na verdade, há situações que legitimam uma atuação mais expansiva de juízes e tribunais, ainda que excepcionalmente, com destaque para a promoção dos direitos fundamentais e a proteção das regras do jogo democrático.

Seja como for, a verdade é que o STF se move, como regra, pela autocontenção.(8). Para citar dois exemplos deste ano, o Tribunal deixou de interferir no mérito do processo de impeachment, assim como se absteve de interromper a tramitação da PEC do limite de gastos. Em anos anteriores, também em linha de deferência institucional para com os outros Poderes, e para citar casos de mais visibilidade, o Tribunal validou leis como a que disciplinou as pesquisas com células-tronco embrionárias, a que instituiu cotas em universidades públicas e a que previu o regime diferenciado de licitação para obras da Copa do Mundo. Todas versavam temas polêmicos, mas foi respeitada a deliberação do Congresso e a sanção presidencial.

A queixa que pode ser legítima diz respeito a alguns casos de voluntarismo monocrático, circunstância que não se confunde com o ativismo. O problema aqui seria de falta de deferência intra-institucional, para que, em temas relevantes e sensíveis, o Supremo Tribunal Federal falasse com uma só voz, e não com onze vozes isoladas e, por vezes, dissonantes. Recai-se, aqui, no compromisso proposto no item V.1: nas matérias institucionalmente relevantes e sensíveis, o relator, mesmo tendo competência monocrática, deve compartilhar sua decisão com o colegiado próprio, seja o Plenário, seja a Turma. Isso é fácil de fazer. Basta querer.

VII. CONCLUSÃO: : EMPURRANDO A HISTÓRIA

O momento brasileiro é grave, mas pode ser promissor. O cerco contra a corrupção e desmandos variados se intensificou, assim como as reações a ele. Há os que acreditam, como o autor deste texto, que não se deve perder a oportunidade, neste momento devastador, de mudar o patamar ético do país. Há os que só pensam em livrar a própria pele. E há os que gostariam que tudo permanecesse como sempre foi. Os dois últimos grupos se aliaram na “Operação Abafa”, que tem militantes onde menos seria de se esperar. Gente que acha que corrupção ruim é a dos outros, a dos adversários. Se for dos aliados, não tem problema.

Não há como minimizar o que aconteceu no Brasil: desonestidade generalizada, degeneração difusa das práticas e costumes, no varejo e no atacado. Não foram condutas isoladas ou desvios pontuais, mas mecanismos profissionais e institucionalizados de se desviarem recursos, parte para o financiamento eleitoral, parte para o próprio bolso. Corrupção multipartidária e democraticamente repartida. Com absoluta certeza de impunidade. A ausência de um direito penal minimamente eficiente, capaz de funcionar como prevenção geral, criou um país povoado de agentes públicos e privados desonestos, repleto de ricos delinquentes. Onde se destampa há coisas erradas: Petrobras, Fundos de Pensão, BNDES, Caixa Econômica, aprovação de medidas provisórias.

O combate a este estado de coisas inconstitucional – quem diria que a expressão se prestasse a este uso? – deve se dar dentro da Constituição e das leis, com respeito ao direito de defesa e às outras prerrogativas processuais dos acusados. Mas não dentro de um sistema de faz-de-conta como sempre foi, em que os processos não terminavam nunca e no qual qualquer pessoa que ganhasse mais do que dez salários mínimos jamais era punida efetivamente. Ninguém deseja ou pode aceitar um Estado policial. No entanto, o Estado que pune o empresário que ganha a licitação porque pagou propina, que pune o banqueiro que teve ganhos diferenciados no mercado financeiro em razão de informações privilegiadas, e o dirigente de Fundo de Pensão que faz um investimento ruinoso para os segurados porque recebeu uma vantagem indevida não é um Estado policial. É um Estado de justiça. Tampouco se pode desejar ou aceitar um Estado de vale-tudo, em que cada um só é honesto se quiser. O Estado democrático de direito deve ser um Estado de justiça, com proporcionalidade e devido processo legal.

Com as dificuldades e circunstâncias de um momento complexo, o Supremo Tribunal Federal tem sido, em momentos cruciais, um agente do progresso civilizatório brasileiro. Sempre tendo em conta que na vida institucional, como na vida em geral, ninguém acerta todas, ninguém é bom demais e, sobretudo, ninguém é bom sozinho. Além disso, nem sempre se consegue avançar no ritmo desejado. Porém, a direção certa é mais importante do que a velocidade. Com uma correção de rumo aqui e outra ali, temos avançado. A história, por vezes, caminha devagar; e, outras vezes, se move rapidamente. É difícil adivinhar quando será de um jeito ou de outro. Mas, a despeito disso, o nosso papel é empurrá-la. É esta a nossa missão, como cidadãos, como intelectuais e como agentes do progresso social: empurrar a história.




[NOTAS DE RODAPÉ NO ORIGINAL]

(1) Ministro do Supremo Tribunal Federal. Professor Titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Professor do Centro Universitário de Brasília – UniCEUB. Sou grato a Aline Osorio, Cristina Telles e Renata Saraiva pela leitura cuidadosa e sugestões valiosas à Parte I desta retrospectiva.

(2) Para uma visão crítica quanto ao televisionamento dos julgados, v. Virgílio Afonso da Silva e Conrado Hubner Mendes, “Entre a transparência e o populismo judicial”, in Folha de São Paulo 11 mai. 2009. Ambos reiteraram a mesma posição ulteriormente, em trabalhos de maior fôlego acadêmico.

(3) V. Felipe de Melo Fonte, Jurisdição constitucional e participação popular: o Supremo Tribunal Federal na era da TV Justiça, 2016, p. 119-129. O autor constatou, empiricamente, o aumento da extensão dos votos, tendo registrado: “Na era pós-TV Justiça, os acórdãos proferidos em ações diretas de inconstitucionalidade cresceram 58,70% de tamanho”.

(4) V. “What countries can learn from PISA tests”, The Economist, 10 dez. 2016, acessível em:
A avaliação do PISA, conduzida pela OECD, testa mais de meio milhão de jovens de 15 anos nas seguintes matérias: Matemática, Leitura e Ciências.

(5) Não participei desse julgamento, em razão de a ação haver sido proposta pelo meu antigo escritório, representando a Rede Sustentabilidade.

(6) No RE 661.256, em que se discutia a possibilidade de desaposentação, ficou assentado na ementa do meu voto: “6. Até que seja editada lei que trate da matéria, será adotado o seguinte critério: no cálculo dos novos proventos, os fatores idade e expectativa de vida devem ser aferidos com referência ao momento de aquisição da primeira aposentadoria. (...) (7). Tal solução destina-se a colmatar uma lacuna existente no sistema jurídico em relação à desaposentação. Por essa razão, somente será aplicada 180 (cento e oitenta) dias após a publicação do presente acórdão. Nesse intervalo, se os Poderes Legislativo e Executivo entenderem que devem prover diferentemente acerca da matéria, observadas as diretrizes constitucionais aqui traçadas, o ato normativo que venham a editar deverá prevalecer”.

(7) Luís Roberto Barroso, “Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática”, in:

(8) Há até quem o critique por excesso de preocupação com a governabilidade. V. Felipe Recondo, “O Supremo e a vanguarda governista”, in:
http://jota.info/artigos/supremo-vanguarda-governista- 28102016



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