O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL EM 2016:
O ANO QUE CUSTOU A ACABAR
Luís Roberto Barroso (1)
Acesso RAS
em 04jan2017.
(1)
Ministro do Supremo Tribunal Federal. Professor Titular de Direito
Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Professor do
Centro Universitário de Brasília – UniCEUB.
Sou grato a
Aline Osorio, Cristina Telles e Renata Saraiva pela leitura cuidadosa e
sugestões valiosas à Parte I desta retrospectiva.
I.
INTRODUÇÃO
Como em anos anteriores, a presente retrospectiva é
dividida em duas partes.
Na Parte I, faço uma reflexão crítica sobre o ano no
Supremo Tribunal Federal, destacando o papel institucional desempenhado pela
Corte, sua relação com a sociedade e algumas decisões emblemáticas do período.
A Parte II traz uma lista das principais questões
decididas pelo Tribunal ao longo do ano. A seleção e o resumo dos casos,
constantes da segunda parte, foram feitos com a colaboração preciosa de Aline
Osorio, que há tempos me empresta o seu brilho e dedicação como assessora em
meu gabinete.
Parte I A
VITRINE, AS PEDRAS E O CURSO DA HISTÓRIA
O ano de 2016 foi turbulento em todas as áreas onde a
vista alcança. Na Economia, o Brasil viveu sua pior recessão desde 1930, com
PIB negativo, retração do emprego e desequilíbrio das finanças públicas. Na
Política, passamos por um longo e traumático processo de impeachment da
Presidente da República, e a Operação Lava-Jato continua a produzir tremores,
choro e ranger de dentes. Até agora, porém,
nada mudou em um sistema eleitoral e partidário que vai na contramão do
processo civilizatório: reprime o bem e potencializa o mal. Na Sociedade, o
preocupante repúdio aos políticos em geral, aliado ao temor de retrocesso
social, têm desaguado em manifestações públicas de inconformismo e em polêmicas
ocupações.
Seria uma ingenuidade supor que o mundo do direito, da
Justiça e do Supremo Tribunal Federal pudesse ser um lago tranquilo em meio à
tempestade. O Judiciário tem problemas. Muitos são antigos e crônicos, como o
custo alto e a lentidão. Estes não têm nada a ver com a crise presente. Outros,
no entanto, decorrem dos momentos conturbados pelos quais passamos. Exposto em
uma vitrine, com cada despacho ou decisão fiscalizados por uma multidão
polarizada, quando não vem pedra de um lado, vem do outro. Por exemplo: se o
país está dividido em relação ao impeachment e o STF é chamado a arbitrar
controvérsias em torno dele, não há como escapar do clima de animosidade geral.
Algum lado ficará insatisfeito. Se a Câmara dos Deputados reluta em afastar o
seu Presidente, a sociedade cobra uma providência moralizadora e o timing do
Tribunal não atende à ansiedade da maioria, o desgaste é inevitável. Se, diante
da polêmica em relação à PEC do limite de gastos, o STF indefere o pedido de
paralisação do processo legislativo, parte do movimento social fica
inconformado. Mas se, ao revés, o Tribunal paralisa a tramitação do projeto de
lei que desfigurava as medidas anticorrupção, outra parte fica indignada.
Em suma: não há como agradar a todos. Nem este é o
papel de uma Suprema Corte. Sempre haverá pessoas cujas visões de mundo serão
contrariadas ou que terão interesses pessoais afetados. Mas, apesar da elevação
do tom das críticas ao STF no apagar das luzes de 2016, foi um ano de mais
acertos do que erros. A seguir, algumas reflexões para compreender um ano que
demorou a acabar.
II. A
EXPOSIÇÃO DO TRIBUNAL
Diversos fatores contribuem para o excesso de
exposição e visibilidade do Supremo Tribunal Federal. Alguns são conjunturais.
Outros decorrem do arranjo institucional adotado no país. Dois fatores
conjunturais estão diretamente ligados ao Poder Legislativo. O primeiro envolve
uma certa dificuldade de o Congresso legislar sobre temas importantes e
divisivos, como desaposentação, terceirização ou greve no setor público. Isso
obriga o Tribunal a decidir as questões que lhe são submetidas tendo de
produzir as normas faltantes. Portanto, acaba desempenhando uma função
legislativa por falta de opção. O segundo fator é que boa parte da chamada
“judicialização da política” decorre de ações que são propostas perante o STF
por partidos políticos ou por parlamentares. Como é comum nesses casos, os que
ficam felizes com a decisão elogiam a boa interpretação constitucional. Os que
ficam infelizes, criticam o “ativismo judicial”. Assim é porque sempre foi,
aqui e alhures, dos Estados Unidos à África do Sul.
Outro fator relevante de exposição do Tribunal, este
decorrente do arranjo institucional brasileiro, é o amplo acesso a ele dado
pela Constituição. De fato, as ações diretas (com destaque para a ação direta
de inconstitucionalidade – ADI e para a arguição de descumprimento de preceito
fundamental – ADPF) podem ser propostas por um longo elenco de legitimados, que
inclui os partidos políticos, as entidades de classe de âmbito nacional e as
confederações sindicais, além do Procurador Geral da República e todos os
Governadores. Este fato, somado a uma Constituição abrangente, que cuida de uma
vasta multiplicidade de matérias, faz com que praticamente qualquer questão com
um mínimo de relevância possa chegar ao Supremo Tribunal Federal. E, muitas
vezes, sem o filtro de decisões das instâncias inferiores. Não há nada comparável
no mundo.
Por fim, tem a TV Justiça. À exceção do México,
nenhuma outra Suprema Corte julga os casos na frente das câmeras de televisão.
Há algumas desvantagens nisso (2) : dificulta a construção deliberativa de
decisões, exacerba vaidades e torna os votos mais espichados (3) . As
vantagens, todavia, superam essas vicissitudes. A primeira e mais relevante: o
Brasil é um país no qual o imaginário social supõe que por trás de cada porta
fechada estão ocorrendo tenebrosas transações. A imagem de onze agentes públicos
debatendo abertamente a melhor solução para alguns dos grandes problemas
nacionais é boa para a Justiça e para sua legitimação. Por outro lado, aumenta
o controle social e produz um efeito didático para a comunidade jurídica em
geral.
III. UM ANO DE
DECISÕES IMPORTANTES
2016 foi um ano de decisões de grande relevância
envolvendo a preservação da democracia, a proteção de direitos fundamentais e o
atendimento de demandas significativas vindas da sociedade civil. Algumas delas
serão objeto de comentário específico na segunda parte desta retrospectiva. Um
dos destaques foi a definição do rito do impeachment, julgado no apagar das
luzes do ano passado, mas com embargos de declaração e outros desdobramentos
apreciados este ano. Um procedimento importante como o afastamento de um
Presidente da República não poderia sujeitar-se a uma tramitação errática e
voluntarista na Câmara dos Deputados. O Tribunal proporcionou estabilidade e
credibilidade ao processo, determinando a aplicação das mesmas regras do
impeachment do Presidente Collor.
A essa correção de rumo do processo de impeachment
soma-se a providência, importantíssima para reduzir a seletividade do sistema
penal brasileiro, de se permitir a execução das decisões penais condenatórias
após o julgamento de segundo grau. A nova orientação é importante para a
sociedade, pois torna mais efetivo, entre outros, o combate à corrupção e à
criminalidade de colarinho branco. É relevante, ainda, para a advocacia, que
fica exonerada da sina ingrata de ter que interpor sucessivos recursos
descabidos e procrastinatórios. Em outra decisão emblemática, o Tribunal
retirou o incentivo às greves no setor público, determinando, como regra, o
corte de ponto dos servidores paralisados, a exemplo do que se passa na
iniciativa privada. A paralisação desses serviços penaliza, sobretudo, a
população mais pobre. A este propósito, a cidade de Buenos Aires, na Argentina,
por haver conseguido coibir as greves de professores do ensino básico, teve
aumento expressivo na avaliação anual do PISA (Programme for International
Student Assessment).(4). O Tribunal também teve papel decisivo ao arbitrar com
sucesso o conflito entre Estados e União, decorrente da crise fiscal, tendo
contribuído para uma composição razoável entre as partes em litígio. Estes são
alguns exemplos de intervenção construtiva do Tribunal na vida nacional, em
meio a vários outros discutidos adiante.
IV. ALGUMAS
PEDRAS NO CAMINHO
Na vida pública, não importa muito a quantidade de
acertos ou de consensos que se consiga produzir. No balanço final, são os
desacertos, os desencontros ou, ao menos, as questões controvertidas que ficam
registradas com maior destaque na memória. Três dessas questões fizeram
manchete em 2016. A primeira delas foi o afastamento do então Presidente da
Câmara dos Deputados. Requerido em dezembro de 2015, pelo Procurador-Geral da
República, o pedido só veio a ser deferido em 5 de maio de 2016, com a
confirmação unânime de liminar concedida pelo Ministro Teori Zavascki na manhã
do mesmo dia. As críticas vieram de um lado e do outro: houve os que se
queixaram da demora prolongada e os que se insurgiram contra a ingerência em
outro Poder.
Já no tocante ao afastamento, não concretizado, do
Presidente do Senado Federal, os protestos vieram de todos os lugares e por
tantos motivos diversos que chega a ser difícil sistematizá-los. Houve queixas
em relação ao pedido de vista de um Ministro, quando já composta a maioria, em
processo que discutia, em tese, a compatibilidade entre o exercício do cargo
que se situe na linha sucessória da Presidência da República e a condição de
réu no Supremo Tribunal Federal. Outras queixas se dirigiram contra a demora do
Tribunal em analisar o pedido de abertura de ação penal contra o Presidente do
Senado. Quando finalmente instaurado o processo criminal, foi a decisão
monocrática do relator da ação de controle abstrato, que determinou o
afastamento cautelar do Presidente do Senado, que se tornou alvo de críticas.
Dessa vez, o problema teria sido o açodamento. E depois, quando o Plenário
deixou de ratificar a cautelar, a acusação foi de contemporização (5) .
A terceira pedra no caminho, já quase no apagar das
luzes, deu-se em razão da cautelar monocrática que mandou voltar para a Câmara
dos Deputados o desfigurado pacote de medidas anticorrupção. De novo, a sociedade
dividida: parte indignada com o que considerava um desvio de finalidade
perpetrado pela Câmara, que aproveitou o projeto contra a corrupção originário
da mobilização popular para inserir medidas punitivas a juízes e membros do
Ministério Público. E, de outro lado, os que bradavam contra mais uma
intervenção do Supremo no Legislativo.
As pedras no caminho, somadas às que foram
arremessadas com estilingues diversos, causaram arranhões e amassados na
lataria. Mas, à primeira vista, não parece ter havido dano ao chassi e ao
motor. Em favor dos ocupantes do veículo, cabe lembrar que os eventos se deram
em momento de chuva torrencial, nevoeiro espesso, pista escorregadia e
bandoleiros na estrada.
V. AS
CRÍTICAS JUSTAS
1. Excesso
de decisões monocráticas
A crítica ao excesso de decisões monocráticas é
procedente. Do total de decisões proferidas pelo Tribunal em 2016 – incríveis
117 mil –, a imensa maioria foi de natureza monocrática. A explicação é
singela: o volume de processos é imenso e o STF realiza cerca de 80 sessões
plenárias por ano. Isso significa uma capacidade máxima de julgar cerca de 250
processos anualmente, fazendo o cálculo otimista de três processos por sessão.
Como há no estoque do final do ano que se encerrou 61.816 processos pendentes
de decisão, só para julgá-los, admitindo-se, contrafactualmente, que não
entrasse mais nenhuma causa nova, seriam necessários 247 anos para liquidar o
passivo existente. Se contabilizássemos os julgamentos em lista e nas Turmas,
esse número diminuiria, mas nada que desfizesse o absurdo. Portanto, resta a
alternativa monocrática.
Durante a crise, um fenômeno que ganhou destaque foi a
“monocratização qualitativa” do STF, isto é, o crescente julgamento de casos de
maior relevância política, econômica e social para o país de forma monocrática
pelos Ministros do Supremo. A título exemplificativo, neste ano, Ministros,
individualmente, determinaram
(i) a anulação do ato de nomeação de Ministro Chefe da
Casa Civil,
(ii) a abertura de processo de impeachment contra o
então vice-Presidente da República,
(iii) o afastamento cautelar do Presidente da Câmara
dos Deputados do mandato parlamentar e da função presidencial,
(iv) o afastamento cautelar do Presidente do Senado
Federal, e
(v) a suspensão de atos referentes à tramitação do
projeto de lei de iniciativa popular de combate à corrupção.
Sem discutir o mérito de nenhuma dessas decisões, o
que o Tribunal deveria fazer para reduzir a exposição de sua imagem nesses
casos é um pacto para que qualquer questão institucionalmente relevante seja
decidida colegiadamente (no Plenário ou na Turma, conforme o caso). Na hipótese
de medidas urgentes, elas devem ser levadas à ratificação na primeira sessão
subsequente ou mesmo justificar a convocação de sessão extraordinária.
2. Excesso
de processos
Desde muito antes de entrar para o Tribunal –
portanto, como advogado ainda – tenho defendido a redução drástica dos
processos admitidos pelo Supremo Tribunal Federal. Pessoalmente, como regra,
não seleciono mais do que dois casos por semestre para propor a concessão de
repercussão geral ao Plenário Virtual. Diante do estoque existente, que
precisará de anos para ser julgado, atravancando, enquanto isso, a Justiça do
país, em razão do sobrestamento que o reconhecimento de repercussão geral
acarreta, não vejo como agir de outro modo. Minhas posições são conhecidas: a)
o Tribunal não deve admitir mais recursos extraordinários para julgamento em
Plenário (pelo reconhecimento de repercussão geral) do que seja capaz de julgar
em um ano; b) reconhecida a repercussão geral, deve ser marcada a data de
julgamento entre 6 meses e um ano após o reconhecimento; c) os processos não
selecionados para repercussão geral serão encaminhados da seguinte forma: o
relator levará a Plenário Virtual a proposta de não atribuição de repercussão
geral ao recurso, com breve justificativa, sem que a decisão produza qualquer
efeito para além do caso concreto.
Detalho um pouco mais esta última proposta. Na
prática, o que ocorre é o seguinte: o Ministro, com a ajuda dos seus
assessores, seleciona, em meio aos milhares de processos que recebe, aqueles
poucos que irão ter repercussão geral reconhecida. Todos os demais ele decide
monocraticamente. Trata-se, na verdade, de uma negativa de repercussão geral
oculta, como apontado pelo juiz auxiliar do meu gabinete Frederico Montedônio,
em dissertação de mestrado da qual sou orientador. Os processos não
selecionados para repercussão geral, e consequente julgamento em Plenário, são
descartados pelos argumentos defensivos tradicionais: matéria
infraconstitucional, violação indireta à Constituição, questão de fato,
ausência de prequestionamento, deficiência na demonstração da repercussão geral
etc. Com isso, os gabinetes têm metade de sua força de trabalho dedicada a
processos em que será mantida a decisão da origem, por não conhecimento do
recurso extraordinário apresentado. O absurdo é total. Muito melhor e mais
transparente seria simplificar esta tarefa, permitindo aos Ministros que
simplesmente justifiquem a inadmissibilidade do recurso por falta de
repercussão geral do caso – e não necessariamente da questão constitucional
nele suscitada –, levando sua decisão ao Plenário Virtual para escrutínio dos
demais.
A aceitação de que o Tribunal tem uma capacidade
máxima de julgamento será uma decisão corajosa e libertadora, acabando com o
tropicalismo equívoco de se admitirem muito mais processos do que a capacidade
de julgar com eficiência e presteza comporta. E, após alguns resmungos, todos
terminarão por concordar com a obviedade de que o acesso à Justiça e o devido
processo legal se realizam, em regra, em dois graus de jurisdição. Tribunais
superiores julgam apenas o que identificarem como sendo de interesse
transcendente, selecionando os feitos mais importantes da safra. O resto
transita em julgado. A cultura que admite como razoável processos que duram 3,
5, 7 ou 10 anos precisa ser derrotada com urgência.
É preciso apontar, ainda, que o problema de excesso de
processos se intensificou no ano de 2016. Em meio a diversas investigações
criminais de grande porte, o extenso rol de autoridades submetidas à jurisdição
do Supremo Tribunal Federal tem produzido uma sobrecarga de trabalho sem
precedentes na área penal. São mais de 100 ações cautelares ajuizadas, 16
denúncias e 58 inquéritos instaurados apenas no âmbito da Lava Jato. E a
sociedade vem exibindo compreensível intolerância em relação à demora no julgamento
das causas criminais, especialmente daquelas envolvendo casos de corrupção. De
longa data, tenho sustentado que o foro por prerrogativa de função constitui
uma reminiscência aristocrática, sem réplica comparável em outras democracias.
O sistema é muito ruim, notadamente por duas razões. Em primeiro lugar,
trata-se de uma fórmula não republicana e anti-isonômica, que garante a
determinadas autoridades privilégio injustificável na seara criminal.
Em segundo lugar, porque a Suprema Corte não é
vocacionada para funcionar como juízo de primeira instância em matéria penal. A
grande quantidade de competências do Tribunal faz com que ele não possa
priorizar o processamento de inquéritos e ações penais, sem prejuízo das suas
funções principais de guardião de Constituição. Levantamento feito em novembro
deste ano pela Assessoria de Gestão Estratégica documentou o seguinte:
encontram-se em curso perante o STF 357 inquéritos e 103 ações penais. O tempo
médio entre o oferecimento e o recebimento de denúncia é de 565 dias (em
primeiro grau, a média é de menos de uma semana). Já ocorreram mais de 60 casos
de prescrição. Considerando o que ainda vem por aí, a redução drástica do foro
privilegiado no tornou-se urgente. Do contrário, o Supremo Tribunal Federal
viverá o imenso desprestígio de não conseguir desincumbir-se a tempo e a hora
das dezenas de processos que virão. E ficará associado à crônica impunidade da
vida política nacional
3. “Ativismo
extrajudicial”
Há uma queixa relevante de diversos setores da
sociedade contra o que se pode chamar de ativismo extrajudicial, isto é, a
atuação de juízes constitucionais fora dos autos. A crítica tem sido veiculada
na imprensa, na academia e, também, por associações de magistrados Este tipo de
conduta se exterioriza sobretudo por via da mídia e envolve:
(i) manifestações sobre processos ainda não julgados;
e
(ii) manifestações críticas sobre decisões de órgãos
do Poder Judiciário ou colegas de Tribunal.
Em Editorial de 16.12.2016, o jornal Folha de São
Paulo registrou criticamente:
“Mais do que em outras ocasiões, os ministros do STF,
neste momento de descrença na classe política, precisam agir com prudência e
discrição. Se em vez disso prevalecerem o voluntarismo judicial e a
incontinência verbal, logo o órgão que integram deixará de ser ponto de
equilíbrio para se transformar em mais um elemento da crise”.
Inegavelmente há problemas nessa área, a exigir
autocrítica e comedimento. O ativismo extrajudicial impróprio não se confunde
com a possibilidade – por vezes, com o dever – de um Ministro do STF dialogar
com a sociedade, justificando posições assumidas. Ou participar, sem
engajamento político, de debates institucionais. Mas juiz não pode ser comentarista político dos fatos do dia.
VI. AS
CRÍTICAS INJUSTAS
1. Invasão
do espaço do Poder Legislativo
Crítica reiterada que se tem feito ao Tribunal é a de
que ele estaria invadindo ilegitimamente o espaço de atuação do Legislativo.
Deixo de lado, por ora, a questão das decisões monocráticas recentes, que serão
objeto de comentário específico. Em relação às decisões colegiadas do Tribunal,
a crítica é improcedente. O STF, como regra, somente tem atuado de modo mais
expansivo nas hipóteses de omissão do Congresso Nacional ou quando esteja em
jogo um direito fundamental. Confira-se o breve exame de três casos abaixo.
a) A decisão sobre o aborto proferida pela 1ª Turma.
Tratava-se de um habeas corpus no qual se discutia se
um médico e seus assistentes deveriam ser mantidos presos pela prática do crime
de aborto praticado com o consentimento da gestante. Manter uma pessoa presa
preventivamente e em seguida condená-la por fato tipificado na legislação penal
é atividade judicial típica. Mas se o juiz está convencido, por fundamentos
objetivos, racionais e praticados por todos os países democráticos e
desenvolvidos do mundo, que a criminalização da interrupção da gestação durante
o primeiro trimestre viola direito fundamental da mulher, o que deve ele fazer?
Deve condenar o réu contra a Constituição e contra o mínimo de Iluminismo que
deve reger a vida em uma sociedade civilizada, aberta e democrática? Deve
brandir o argumento formal de que a competência é do Congresso e abandonar o
argumento substantivo de que mulheres não são seres inferiores, que não são um
útero a serviço da sociedade e que têm direito a ter vontade própria?
b) A decisão sobre indenização devida aos Estados em
razão da isenção dada pela União Federal de tributos estaduais nas operações de
exportação.
Uma lei de 1996 (Lei Kandir) e uma emenda
constitucional previram a isenção do imposto estadual do ICMS sobre operações
de exportação, visando a fomentar o comércio internacional do país. Previu-se,
igualmente, que lei complementar deveria ser editada para compensar a perda de
arrecadação dos Estados. Enquanto não editada a lei, adotar-se-ia um critério
temporário para a indenização, considerado, porém, precário e insatisfatório em
médio e longo prazo. Passados muitos anos, contudo, a lei não havia sido ainda
editada, gerando importante prejuízo para os Estados-membros da Federação. O Supremo,
então, declarou a mora do Congresso Nacional e estabeleceu o prazo de um ano
para que viesse a purgá-la. Do contrário, caberá ao Tribunal de Contas da União
normatizar a compensação, naturalmente sob supervisão do próprio STF. Portanto,
fixou-se um prazo para o Legislativo sanar a omissão e já se previu a solução,
caso ele permaneça inerte. Adotou-se, aqui, a fórmula de diálogo institucional
que eu vinha propondo desde que ingressei no Tribunal: declara-se a omissão,
abre-se prazo para o Congresso atuar e já se prevê a solução a ser adotada caso
não seja editado o ato normativo necessário, após certo tempo (v., e.g., meus
votos na modulação de efeitos nas ações diretas envolvendo precatórios – EC 62
– e no caso da desaposentação, comentado a seguir, cujo julgamento havia se
iniciado em data anterior, só tendo sido concluído este ano) (6) .
c) A decisão sobre desaposentação.
Em pelo menos um caso, a crítica que se poderia fazer
seria inversa: o excesso de preocupação fiscal inibiu o STF de sanar uma omissão
e produzir a solução justa no caso da desaposentação. Para compreender o
conceito de “desaposentação”, tome-se a seguinte hipótese: um trabalhador da
iniciativa privada se aposenta aos 50 anos de idade, por tempo de contribuição.
Depois, retorna ao mercado de trabalho, voltando a pagar a contribuição
previdenciária mensal. Quinze anos depois, aos 65 anos, ele pretende substituir
a primeira aposentadoria por uma nova, que leve em conta sua nova idade e o
tempo acrescido de contribuição. A lei não disciplina esta possibilidade.
Diante disso, formaram-se duas opiniões extremas:
(i) o segurado tem direito à nova aposentadoria, sem
descontar nada do que recebeu do sistema, a título de proventos, nos últimos 15
anos; e
(ii) o segurado não tem direito à nova aposentadoria,
a despeito de haver pago 15 anos a mais de contribuição previdenciária (que é
um tributo vinculado, que não deve estar desatrelado de algum tipo de
benefício).
Prevaleceu a segunda posição, contra o meu voto (e o
dos Ministros Rosa Weber, Marco Aurélio e Celso de Mello). A solução que propus
trilhava o caminho do meio e era a seguinte: fixar o prazo de 180 dias para que
o Congresso Nacional provesse a respeito da desaposentação, sanando a omissão.
Caso a omissão persistisse, a nova aposentadoria seria calculada por uma
fórmula que levaria em conta os 15 anos que contribuiu a mais e os 15 anos em
que sacou do sistema. Uma singela combinação entre a Constituição e a
Matemática para fazer justiça. A crise fiscal deve ser levada em conta pelo
Supremo Tribunal Federal, mas não deve servir de fundamento para permitir que o
Estado seja incorreto.
2. Excesso
de ativismo judicial.
Impõe-se aqui retomar a distinção, que já fiz neste
mesmo espaço há muitos anos: judicialização é diferente de ativismo (7). Que tampouco se confunde com
voluntarismo monocrático. A judicialização decorre, entre outros fatores, da
constitucionalização abrangente verificada no Brasil, bem como do fácil acesso
ao Judiciário e ao Supremo Tribunal Federal. Trata-se de um fato. O ativismo
judicial, por sua vez, envolve uma atuação proativa do Judiciário, para levar
princípios e regras da Constituição a situações que não foram expressamente
previstas pelo legislador. Tratase de uma atitude. A expressão ativismo judicial
adquiriu nos últimos tempos uma conotação negativa de extrapolação do próprio
papel pelo Judiciário. Na verdade, há situações que legitimam uma atuação mais
expansiva de juízes e tribunais, ainda que excepcionalmente, com destaque para
a promoção dos direitos fundamentais e a proteção das regras do jogo
democrático.
Seja como for, a verdade é que o STF se move, como
regra, pela autocontenção.(8). Para
citar dois exemplos deste ano, o Tribunal deixou de interferir no mérito do
processo de impeachment, assim como se absteve de interromper a tramitação da
PEC do limite de gastos. Em anos anteriores, também em linha de deferência
institucional para com os outros Poderes, e para citar casos de mais
visibilidade, o Tribunal validou leis como a que disciplinou as pesquisas com
células-tronco embrionárias, a que instituiu cotas em universidades públicas e
a que previu o regime diferenciado de licitação para obras da Copa do Mundo.
Todas versavam temas polêmicos, mas foi respeitada a deliberação do Congresso e
a sanção presidencial.
A queixa que pode ser legítima diz respeito a alguns
casos de voluntarismo monocrático, circunstância que não se confunde com o
ativismo. O problema aqui seria de falta de deferência intra-institucional,
para que, em temas relevantes e sensíveis, o Supremo Tribunal Federal falasse
com uma só voz, e não com onze vozes isoladas e, por vezes, dissonantes.
Recai-se, aqui, no compromisso proposto no item V.1: nas matérias
institucionalmente relevantes e sensíveis, o relator, mesmo tendo competência
monocrática, deve compartilhar sua decisão com o colegiado próprio, seja o
Plenário, seja a Turma. Isso é fácil de
fazer. Basta querer.
VII.
CONCLUSÃO: : EMPURRANDO A HISTÓRIA
O momento brasileiro é grave, mas pode ser promissor.
O cerco contra a corrupção e desmandos variados se intensificou, assim como as
reações a ele. Há os que acreditam, como o autor deste texto, que não se deve
perder a oportunidade, neste momento devastador, de mudar o patamar ético do
país. Há os que só pensam em livrar a própria pele. E há os que gostariam que
tudo permanecesse como sempre foi. Os dois últimos grupos se aliaram na
“Operação Abafa”, que tem militantes onde menos seria de se esperar. Gente que
acha que corrupção ruim é a dos outros, a dos adversários. Se for dos aliados,
não tem problema.
Não há como minimizar o que aconteceu no Brasil:
desonestidade generalizada, degeneração difusa das práticas e costumes, no
varejo e no atacado. Não foram condutas isoladas ou desvios pontuais, mas
mecanismos profissionais e institucionalizados de se desviarem recursos, parte
para o financiamento eleitoral, parte para o próprio bolso. Corrupção
multipartidária e democraticamente repartida. Com absoluta certeza de
impunidade. A ausência de um direito penal minimamente eficiente, capaz de
funcionar como prevenção geral, criou um país povoado de agentes públicos e
privados desonestos, repleto de ricos delinquentes. Onde se destampa há coisas
erradas: Petrobras, Fundos de Pensão, BNDES, Caixa Econômica, aprovação de
medidas provisórias.
O combate a este estado de coisas inconstitucional –
quem diria que a expressão se prestasse a este uso? – deve se dar dentro da Constituição
e das leis, com respeito ao direito de defesa e às outras prerrogativas
processuais dos acusados. Mas não dentro de um sistema de faz-de-conta como
sempre foi, em que os processos não terminavam nunca e no qual qualquer pessoa
que ganhasse mais do que dez salários mínimos jamais era punida efetivamente.
Ninguém deseja ou pode aceitar um Estado policial. No entanto, o Estado que
pune o empresário que ganha a licitação porque pagou propina, que pune o
banqueiro que teve ganhos diferenciados no mercado financeiro em razão de
informações privilegiadas, e o dirigente de Fundo de Pensão que faz um
investimento ruinoso para os segurados porque recebeu uma vantagem indevida não
é um Estado policial. É um Estado de justiça. Tampouco se pode desejar ou aceitar
um Estado de vale-tudo, em que cada um só é honesto se quiser. O Estado
democrático de direito deve ser um Estado de justiça, com proporcionalidade e
devido processo legal.
Com as dificuldades e circunstâncias de um momento
complexo, o Supremo Tribunal Federal tem sido, em momentos cruciais, um agente
do progresso civilizatório brasileiro. Sempre tendo em conta que na vida
institucional, como na vida em geral, ninguém acerta todas, ninguém é bom
demais e, sobretudo, ninguém é bom sozinho. Além disso, nem sempre se consegue
avançar no ritmo desejado. Porém, a direção certa é mais importante do que a
velocidade. Com uma correção de rumo aqui e outra ali, temos avançado. A
história, por vezes, caminha devagar; e, outras vezes, se move rapidamente. É
difícil adivinhar quando será de um jeito ou de outro. Mas, a despeito disso, o
nosso papel é empurrá-la. É esta a nossa missão, como cidadãos, como
intelectuais e como agentes do progresso social: empurrar a história.
[NOTAS DE
RODAPÉ NO ORIGINAL]
(1) Ministro do Supremo Tribunal
Federal. Professor Titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro – UERJ. Professor do Centro Universitário de Brasília –
UniCEUB. Sou grato a Aline Osorio, Cristina Telles e Renata Saraiva pela
leitura cuidadosa e sugestões valiosas à Parte I desta retrospectiva.
(2) Para uma visão crítica quanto ao
televisionamento dos julgados, v. Virgílio Afonso da Silva e Conrado Hubner
Mendes, “Entre a transparência e o populismo judicial”, in Folha de São Paulo
11 mai. 2009. Ambos reiteraram a mesma posição ulteriormente, em trabalhos de
maior fôlego acadêmico.
(3) V. Felipe de Melo Fonte,
Jurisdição constitucional e participação popular: o Supremo Tribunal Federal na
era da TV Justiça, 2016, p. 119-129. O autor constatou, empiricamente, o
aumento da extensão dos votos, tendo registrado: “Na era pós-TV Justiça, os
acórdãos proferidos em ações diretas de inconstitucionalidade cresceram 58,70%
de tamanho”.
(4) V. “What countries can learn from PISA tests”, The
Economist, 10 dez. 2016, acessível em:
A avaliação
do PISA, conduzida pela OECD, testa mais de meio milhão de jovens de 15 anos
nas seguintes matérias: Matemática, Leitura e Ciências.
(5) Não participei desse julgamento,
em razão de a ação haver sido proposta pelo meu antigo escritório,
representando a Rede Sustentabilidade.
(6) No RE 661.256, em que se discutia
a possibilidade de desaposentação, ficou assentado na ementa do meu voto: “6.
Até que seja editada lei que trate da matéria, será adotado o seguinte critério:
no cálculo dos novos proventos, os fatores idade e expectativa de vida devem
ser aferidos com referência ao momento de aquisição da primeira aposentadoria.
(...) (7). Tal solução destina-se a
colmatar uma lacuna existente no sistema jurídico em relação à desaposentação.
Por essa razão, somente será aplicada 180 (cento e oitenta) dias após a
publicação do presente acórdão. Nesse intervalo, se os Poderes Legislativo e
Executivo entenderem que devem prover diferentemente acerca da matéria,
observadas as diretrizes constitucionais aqui traçadas, o ato normativo que
venham a editar deverá prevalecer”.
(7) Luís Roberto Barroso,
“Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática”, in:
(8) Há até quem o critique por excesso
de preocupação com a governabilidade. V. Felipe Recondo, “O Supremo e a
vanguarda governista”, in:
http://jota.info/artigos/supremo-vanguarda-governista-
28102016
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