segunda-feira, 31 de agosto de 2015

[104] FILOSOFIA DE BOTEQUIM (05): REVISTA BULA - MANIFESTO PELO DIREITO DE NÃO TER OPINIÃO


[104] REVISTA BULA -

MANIFESTO PELO DIREITO DE NÃO TER OPINIÃO


fONTE: Revista BULA; por Lara Brenner; em Colunistas
http://www.revistabula.com/4985-manifesto-pelo-direito-de-nao-ter-opiniao/
Acesso em 2015-08-31

Com o heterônimo de Alberto Caeiro, Fernando Pessoa dizia haver “metafísica bastante em não pensar em nada”. O poeta disseminou incansavelmente a adoração da coisa pela coisa, dedicando especial atenção à contemplação da natureza em sua forma mais pura, desnuda de qualquer juízo de valor: “Creio no mundo como num malmequer, porque o vejo. Mas não penso nele porque pensar é não compreender… O mundo não se fez para pensarmos nele (pensar é estar doente dos olhos), mas para olharmos para ele e estarmos de acordo”.
Vivesse Caeiro hoje, provavelmente enfartaria de desgosto ao ver completamente minado seu direito de não ter opinião. A quantidade esmagadora de informações e a facilidade de sua propagação têm produzido uma espécie de doença que arrisco chamar de opiniite aguda. Especialmente na internet, tornou-se imperativo ter não apenas um palpite, mas um compilado opinativo sobre toda e qualquer matéria, desde a política na República Democrática do Congo, passando pela Teoria das Cordas, até a vida e obra de todos os compositores e autores clássicos da História da Humanidade.
Tudo. É preciso ter opinião sobre tudo, sob pena de ser considerado um grande ignorante, sem personalidade.
O curioso é que muita gente realmente acredita que assumir o desconhecimento de algo é assinar um atestado de burrice. Pergunto-me se fingir que sabe de tudo torna alguém inteligente. Certa vez, Mário Sérgio Cortella confessou que, vez ou outra, gosta de surpreender seus alunos no primeiro dia de aula, indagando qual deles já leu algum livro de Sócrates. Naturalmente vários levantam a mão, afinal já pensou que vergonha nunca ter lido algum livro de um dos maiores filósofos da História? Bem, Sócrates, tal qual Jesus Cristo, não escreveu uma linha sequer, e os alunos acabam passando vergonha pela grande tolice de tentar se caber numa pele que, além de não pertencer a eles, simplesmente não existe.
Essa enxurrada de opiniões, principalmente no âmbito virtual, faz com que o joio se sobreponha ao trigo, o que leva à banalização. A necessidade de emitir um parecer imediato é tanta, que comumente surgem argumentos incautos, sem fundamento, num degradante fast food opinativo. O mundo anda cheio de abalizadíssimos economistas, cientistas políticos, psicólogos, nutricionistas, advogados e filósofos de botequim. Verdadeiras pérolas! A degustação reflexiva tem sido iguaria para poucos paladares.
A própria ausência de opinião pode ser libertadora. Determinadas coisas certamente são bem mais interessantes quando observadas em si mesmas, pois que a racionalização acaba por limitá-las de alguma forma. As crônicas mais incrivelmente intensas que conheço são advindas de uma observação pura, quase singela. O narrador examina uma cena e a retrata, imprimindo apenas os sentimentos intimamente despertados, abstendo-se de emitir qualquer veredito. O deleite emana, então, de sua mera existência observadora. Algo como “A última crônica”, de Fernando Sabino, que causa arrepio só de lembrar.
Apiedo-me um pouco daqueles que carregam a pesada mortalha de ser sabe-tudo o tempo inteiro. Quanto suplício manter a pose de entendidos, ao desesperar-se de bruços sobre o Google, escondendo de olhos vigilantes. Se lhes abrissem cabeça e coração às próprias deficiências, saberiam o quão gratificante é o caminho de uma aprendizagem tranquila.
Uma pena, honestamente, que tenhamos chegado a esse ponto. A grande fábrica de velhas opiniões formadas sobre tudo acaba por afastar maravilhosas oportunidades de descobertas honestas e viscerais. Assumir a ignorância, mais do que uma forma de humildade, inicia a travessia para o conhecimento real.
Talvez a grande razão para tudo isso seja a falta de intimidade com a própria liberdade. Não saber de todas as coisas, mais do que uma obviedade inerente à existência humana, também é um direito de cada um. Somos livres tanto para ter acesso ao conhecimento, quanto para não possuí-lo. O grande trunfo talvez seja buscá-lo com inteligência e honestidade. Não há outro caminho de raízes tão verdadeiras para o crescimento.
Quer saber? “Pouco me importa. Pouco me importa o quê? Não sei, pouco me importa”. E agora me vou indo, porque, para quem prega o direito à não-opinião, já opinei demais.


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