[104] REVISTA BULA -
MANIFESTO PELO DIREITO DE NÃO TER OPINIÃO
http://www.revistabula.com/4985-manifesto-pelo-direito-de-nao-ter-opiniao/
Acesso em 2015-08-31
Com o heterônimo de Alberto
Caeiro, Fernando Pessoa dizia haver “metafísica bastante em não pensar em
nada”. O poeta disseminou incansavelmente a adoração da coisa pela coisa,
dedicando especial atenção à contemplação da natureza em sua forma mais pura, desnuda
de qualquer juízo de valor: “Creio no mundo como num malmequer, porque o vejo.
Mas não penso nele porque pensar é não compreender… O mundo não se fez para
pensarmos nele (pensar é estar doente dos olhos), mas para olharmos para ele e
estarmos de acordo”.
Vivesse Caeiro hoje,
provavelmente enfartaria de desgosto ao ver completamente minado seu direito de
não ter opinião. A quantidade esmagadora de informações e a facilidade de sua
propagação têm produzido uma espécie de doença que arrisco chamar de opiniite
aguda. Especialmente na internet, tornou-se imperativo ter não apenas um
palpite, mas um compilado opinativo sobre toda e qualquer matéria, desde a
política na República Democrática do Congo, passando pela Teoria das Cordas,
até a vida e obra de todos os compositores e autores clássicos da História da
Humanidade.
Tudo. É preciso ter opinião sobre
tudo, sob pena de ser considerado um grande ignorante, sem personalidade.
O curioso é que muita gente
realmente acredita que assumir o desconhecimento de algo é assinar um atestado
de burrice. Pergunto-me se fingir que sabe de tudo torna alguém inteligente.
Certa vez, Mário Sérgio Cortella confessou que, vez ou outra, gosta de
surpreender seus alunos no primeiro dia de aula, indagando qual deles já leu
algum livro de Sócrates. Naturalmente vários levantam a mão, afinal já pensou
que vergonha nunca ter lido algum livro de um dos maiores filósofos da
História? Bem, Sócrates, tal qual Jesus Cristo, não escreveu uma linha sequer,
e os alunos acabam passando vergonha pela grande tolice de tentar se caber numa
pele que, além de não pertencer a eles, simplesmente não existe.
Essa enxurrada de opiniões,
principalmente no âmbito virtual, faz com que o joio se sobreponha ao trigo, o
que leva à banalização. A necessidade de emitir um parecer imediato é tanta,
que comumente surgem argumentos incautos, sem fundamento, num degradante fast
food opinativo. O mundo anda cheio de abalizadíssimos economistas, cientistas
políticos, psicólogos, nutricionistas, advogados e filósofos de botequim.
Verdadeiras pérolas! A degustação reflexiva tem sido iguaria para poucos
paladares.
A própria ausência de opinião
pode ser libertadora. Determinadas coisas certamente são bem mais interessantes
quando observadas em si mesmas, pois que a racionalização acaba por limitá-las
de alguma forma. As crônicas mais incrivelmente intensas que conheço são
advindas de uma observação pura, quase singela. O narrador examina uma cena e a
retrata, imprimindo apenas os sentimentos intimamente despertados, abstendo-se
de emitir qualquer veredito. O deleite emana, então, de sua mera existência
observadora. Algo como “A última crônica”, de Fernando Sabino, que causa
arrepio só de lembrar.
Apiedo-me um pouco daqueles que
carregam a pesada mortalha de ser sabe-tudo o tempo inteiro. Quanto suplício
manter a pose de entendidos, ao desesperar-se de bruços sobre o Google,
escondendo de olhos vigilantes. Se lhes abrissem cabeça e coração às próprias
deficiências, saberiam o quão gratificante é o caminho de uma aprendizagem
tranquila.
Uma pena, honestamente, que
tenhamos chegado a esse ponto. A grande fábrica de velhas opiniões formadas
sobre tudo acaba por afastar maravilhosas oportunidades de descobertas honestas
e viscerais. Assumir a ignorância, mais do que uma forma de humildade, inicia a
travessia para o conhecimento real.
Talvez a grande razão para tudo
isso seja a falta de intimidade com a própria liberdade. Não saber de todas as
coisas, mais do que uma obviedade inerente à existência humana, também é um
direito de cada um. Somos livres tanto para ter acesso ao conhecimento, quanto
para não possuí-lo. O grande trunfo talvez seja buscá-lo com inteligência e
honestidade. Não há outro caminho de raízes tão verdadeiras para o crescimento.
Quer saber? “Pouco me importa.
Pouco me importa o quê? Não sei, pouco me importa”. E agora me vou indo,
porque, para quem prega o direito à não-opinião, já opinei demais.
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