ACADÊMICO JOSÉ SARNEY
90 anos em 24abr2020
Informações do site
da ABL – Academia Brasileira de Letras.
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[5] DISCURSO DE
RECEPÇÃO POR JOSUÉ MONTELLO
[ABL, 06nov1980]
Acesso RAS
2020-04-24
Se eu, nesta
solenidade de posse, em vez de falar por último, de acordo com a tradição da
Academia, houvesse falado em primeiro lugar, para vos dar as boas-vindas em nome
e vossos confrades, ter-vos-ia perguntado:
– Que viestes fazer
aqui, Sr. José SARNEY, se já a vida plenamente realizada, no plano da glória
política?
E não seria fora de
propósito essa curiosidade em voz alta, nesta noite, nesta hora e neste salão.
Porque existem, como
sabeis, dois tipos de perguntas: umas, que formulamos para que sejamos
esclarecidos; outras que apenas formulamos para nos regozijar com a resposta
que já conhecemos.
Para quem alcançou
na vida pública os cimos que já conquistastes, como deputado federal, como
Governador do Maranhão, como senador da República, como presidente de um grande
partido político, a glória da Academia poderia parecer um título a mais, para
adorno ou enfeite da vossa biografia.
Ora, o primoroso
discurso que acabais de proferir, e que este salão aplaudiu com as suas palmas
efusivas, já é, por si mesmo, a resposta à minha pergunta. Acabastes de ser
laureado na prova oral do ingresso na Academia. Sois incontestavelmente um
escritor, por vocação e aplicação, com o perfeito sentido da palavra esteticamente
concebida.
Não sei de outro
ofício – fora do sacerdócio – que traga em si maior soma de responsabilidade do
que o da escrita elevada à condição de obra de arte. Cada um de nós –
escrevendo – é a testemunha que está com a palavra.
O que dizemos, fixado no
papel, lança-se para o futuro, como um depoimento. Estamos presos ao nosso
tempo, e a imagem desse tempo está em nós, projetando-se na página que vamos
compondo.
Machado de Assis, aparentemente fechado na sua Arte, é o
grande memorialista da sociedade que se movimentava à sua volta, quase sem dar
pela figura miúda e morena do romancista de Dom Casmurro.
Há dez anos, quando
publicastes um de vossos livros mais notáveis, foi assim que Austregésilo de
Athayde vos saudou, no seu artigo do jornal:
Primeiramente louvo
a coragem do Governador José SARNEY ao publicar um livro de contos em pleno
exercício de sua tarefa política do Maranhão. Os homens de governo em geral
consideram indigno de suas responsabilidades devotar-se às Letras. Temem ser
tratados como literatos, o que no Brasil é ainda uma forma de incompatibilidade
com o senso prático do governante. Depois quero louvar Norte das Águas, coletânea de contos, alguns dos quais ficarão inesquecíveis no
patrimônio literário.
Bastaria esse
louvor, entre os muitos que então recolhestes, para que vos orientásseis,
ouvindo o canto de sereia do Presidente da Academia, no sentido desta Casa.
Durante um decênio ficastes ao longe, aguardando a ocasião propícia. Para que
viésseis até aqui, nada mais fizestes do que seguir o caminho que principiastes
a percorrer; ainda menino e moço, em nossa província natal.
Há 30 anos, ou pouco
mais, quando vos iniciastes na vida pública, em São Luís do Maranhão, foi pelas
Letras que começastes. Como na origem de toda vocação há um exemplo, nada mais
natural do que essa inclinação das primeiras horas. E nessa cidade, com uma ou
outra exceção, só se veem praticamente monumentos a homens de letras.
É certo que o
político Benedito Leite, dominando uma de nossas mais belas praças, ali
está por uma razão de ordem intelectual, visto que se lhe repete a frase bravia
segundo a qual preferia cortar a mão direita a ter de assinar o decreto que
suprimiria a Escola Modelo. O Duque de Caxias, reproduzido no seu monumento
carioca, foi colocado junto ao Quartel da guarnição federal, longe do bulício
de São Luís.
Na velha cidade,
misturando-se ao povo, estão os poetas, os prosadores, os mestres de que nos
orgulhamos. Num dos extremos, ergue-se Gonçalves Dias, no topo de sua
palmeira de mármore, cercado de palmeiras vivas e verdes onde não cantam mais
os sabiás. Não cantam na vida urbana, afastados para as matas distantes, porém
cantam nas nossas lembranças. Porque a “Canção do Exílio”, para quem teve o
privilégio de nascer no Maranhão, é, em qualquer tempo, a nossa canção natural,
pronta a dar forma aos nossos suspiros:
Minha terra tem primores
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar – sozinho, à noite –
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras
Onde canta o sabiá.
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar – sozinho, à noite –
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras
Onde canta o sabiá.
Do outro lado da
cidade, em pleno burburinho de sua praça principal, o grande João Francisco
Lisboa, mais do lado, no bronze de seu monumento, estava a ler um jornal;
porém, na verdade, como jornalista, parece recolher as murmurações do povo à
sua volta. Foi ali, ao pé de seu monumento, que fizestes o vosso primeiro
discurso político, e é de supor-se, pela veemência de vosso improviso, que João
Lisboa, embora de bronze, vos deu a sua atenção.
Antes, já ele a
tinha dado à minha geração, nos anos trinta, quando por ali andávamos com a nossa
farda do Liceu Maranhense. Um de meus companheiros, o poeta Sebastião Correa,
pequeno, olhos verdes, tocou naquele pedestal a melhor ária de seu violino, ao
saber que havia eclodido em São Paulo, em 1932, a Revolução Constitucionalista,
e assim eu o recordei no meu romance A Coroa de Areia. Éramos românticos, éramos poetas, e
éramos também políticos.
Ao contrário de
vosso antecessor, que interpretava o pensamento do povo na praça pública com o
discurso que trazia escrito, tendes sido o intérprete da multidão com o
discurso que essa multidão instantaneamente vos inspira. Algumas vezes vos vi
assomar no palanque dos comícios, com o vozerio do povo em derredor. Aos poucos
o silêncio se estendeu na amplidão da praça, e era a vossa palavra que se
alteava, fremente, dominadora, até que as palmas explodiam, por entre a
estralada dos foguetes, no entusiasmo e na emoção de vossos correligionários.
Na Academia, a
vibração usual é mais comedida. Lembra a do Senado da República, que é
igualmente a vossa Casa. Mas a Academia também sabe aplaudir com o júbilo desta
noite, embora faltem aqui os foguetes e os vivas do Largo do Carmo, em São
Luís, ou os foguetes e os vivas, da Praça José SARNEY, na cidade de Pinheiro,
que vos deu o berço.
Cumpre recordar que,
antes de virdes ao nosso encontro, já figuráveis entre os membros efetivos da
Academia Maranhense de Letras, de que fostes presidente. Estais assim afeito à
vida acadêmica. Inspira-nos aqui o bom convívio. Dizia Maurice Barrès, a
propósito da glória das Academias, que é mais fácil ser imortal vivo do que
depois de morto.
Fizestes bem quando
vos orientastes para a nossa companhia. Trazeis para o acervo de nossas glórias
todas as conquistas de vossa vida pública, aureolada pelo saldo de juventude de
que nos dais bom testemunho. Nossa imortalidade, ao contrário do que se presume
lá fora, não é a vida perene – é apenas o nome repetido. A repetição do nome,
que conduz à ressurreição da obra literária, constitui todo o nosso mistério.
Uma geração vai,
outra geração vem, e assim como repetimos os nomes dos nossos antecessores,
nossos sucessores repetirão o nosso nome, com igual sentimento de veneração
afetuosa. A cerimônia desta noite vos associa para sempre à Poltrona de Tobias
Barreto, de quem disse Graça Aranha, no discurso com que saudou Sousa
Bandeira, ter sido talvez o pensador que, no Brasil, maior vastidão de
infinito pôde descortinar.
Estou inclinado a
crer que, ainda em São Luís, vos iniciastes na fascinação de Tobias Barreto
por intermédio de Graça Aranha. Sim, é verdade. Porque foi este, no seu
livro de memórias, O Meu Próprio Romance, quem abriu à minha geração e à
vossa, graças ao mesmo mestre, Antônio Lopes, o caminho para a obra do
mestre sergipano. Essa devoção cresceu conosco, e para perdurar pelo resto da
vida, a despeito de todo o mal que Tobias soube dizer, no calor da
paixão polêmica, contra os velhos padres do Maranhão.
Rodeado de
escritores, quer nas praças públicas, quer nos nomes das ruas e avenidas da
capital maranhense, quer nos encontros dos cafés e das salas de aula, tanto no
Liceu quanto na Faculdade de Direito, tínheis de encontrar a sedução das Letras,
que abria para o vosso espírito o horizonte da vocação irreprimível.
Joaquim Nabuco, louvando-se na
própria experiência, reconhecia que as impressões da infância nos acompanham
pelo resto da vida. E ilustrava o reparo com a conclusão destas palavras: “Os
filhos dos pescadores sentirão sempre debaixo dos pés o roçar das areias da
praia e ouvirão o ruído da vaga.” Ele próprio, onde quer que estivesse,
supunha pisar a espessa camada de cana que cercava o engenho de sua meninice e
escutava “o rangido longínquo dos grandes carros de bois”.
Numa admirável
página de recordações que publicastes este ano, na imprensa de São Luís, no
momento em que todo o Maranhão festejava o vosso primeiro meio século de vida
triunfante, afirmastes que, de vossa infância, além do culto que vos inspiraram
vossos pais, guardastes as imagens de dois avôs: um, o velho José Adriano da
Costa, pelo lado paterno; outro, o velho Assuero, pelo lado materno.
Do primeiro,
deixastes este depoimento:
Os primeiros anos de
minha vida são povoados pela visão desse avô de hábitos rígidos e austeros, que
lia Casimiro de Abreu e amanhecia tangendo os animais a recitar os clássicos.
Sua estante de vidro tinha Herculano, Eça, Camilo e, dos brasileiros, Gonçalves
Dias, Fagundes Varela. E de Camões, não só conhecia de memória os Cantos de Os Lusíadas, como as redondilhas e os sonetos.
O outro, o velho Assuero,
nascido na Paraíba, enraizado no Maranhão pela família, vos confessava, aos 90
anos, que era perdido por três coisas: mulher, política e rapé. Um dia, ouvindo
o velho Assuero falar com saudades de seus tempos nordestinos, vós lhe
perguntastes se ele queria voltar à Paraíba. E a resposta foi imediata:
– Não, meu filho, se
a minha alma tiver vergonha, não sairei mais do Maranhão. Até neto governador eu
já tive...
Esses dois avós
explicam – como há pouco reconhecestes – os dois caminhos de vossa vida: sois
escritor, continuando a sensibilidade literária do velho José Adriano da
Costa, e sois político, continuando a argúcia, a paixão e o espírito de
luta do velho Assuero.
E como ambos vieram
do povo, tangendo o seu gado ou amassando o barro da própria casa, trazeis no
sangue a alma da vossa gente, com o sentimento de sua simplicidade e de sua
índole combativa, refletidas no vosso modo de ser e na vossa tenacidade.
Rétif de la Bretonne era de parecer que os pais são os nossos deuses visíveis. Para
vós, Sr. José SARNEY, não apenas os pais, que vos deram a vida e a formação
para o mundo, são esses deuses visíveis, mas também os avós, que perduram
convosco, e repentinamente repontam num gesto, numa palavra, num impulso, numa
reação instantânea, dando-vos a certeza de que eles vos acompanham, amalgamados
ao vosso ser.
Se um vos trouxe à
Academia, repetindo-vos as estâncias de Os Lusíadas, ambos fizeram de vós o intérprete do
povo, com o gosto de suas cantigas, a sedução de sua sabedoria, a atração de
seus folguedos, e a identificação com as suas revoltas e aspirações. Por vezes,
ao falardes na praça pública ou na tribuna do Senado, imaginais que sois vós
que estais com a palavra.
Não, não é verdade:
são eles que prevalecem nos vossos arroubos, que se exaltam na vossa
eloquência, que se retraem nos vossos silêncios, e que também vos advertem, nos
momentos em que o homem público se volta sobre si mesmo e se interroga sobre os
seus caminhos e descaminhos. Porque a verdade, Sr. José SARNEY, é que cada um
de nós traz consigo a sua árvore genealógica.
O povo de que sois intérprete,
tanto no plano político quanto no plano literário, tem por instinto natural o
gosto das Letras. Não é preciso ouvir uma cantiga de bumba meu boi, em junho,
pelo São João, para sentir esse pendor na toada e nos versos dos cantadores
maranhenses. Por vezes, numa conversa de rua, no Portinho, no Cais da Sagração,
no Largo do Desterro, surpreendemos uma palavra, uma frase, ou uma simples
entoação, que confirma a inclinação literária de nossa gente.
O saudoso Thiers
Martins Moreira, numa de suas idas a São Luís, quis ouvir gente do povo
sobre o famoso navio de onde sai, numa praia maranhense, todas as
sextas-feiras, o Rei D. Sebastião, de Portugal. E interrogou a mulher rústica
que, no fundo de uma barraca, vendia café:
– A sra. já viu esse
navio?”
A mulher alongou o olhar, e não tardou a responder, despertando a atenção de Aurélio Buarque de Holanda, que acompanhava o diálogo:
– Vi dizer que passava esse navio antigo.
E Aurélio, para Thiers, de olhos crescidos:
– A resposta dessa senhora é um perfeito verso alexandrino.
A mulher alongou o olhar, e não tardou a responder, despertando a atenção de Aurélio Buarque de Holanda, que acompanhava o diálogo:
– Vi dizer que passava esse navio antigo.
E Aurélio, para Thiers, de olhos crescidos:
– A resposta dessa senhora é um perfeito verso alexandrino.
Assim, na orla do
cais, em São Luís, os versos hão de ter vindo também ao vosso encontro, naquela
língua certa do povo, a que se referiu Manuel Bandeira num de seus
poemas. Por isso, ainda menino e moço, Sr. José SARNEY, aprendestes com a nossa
gente a aprimorar a sensibilidade estética da palavra, podendo interpretar
nestes versos matinais os rumores à vossa volta:
O sino bate
bate na torre
na velha torre
da velha Sé.
O vento vem
vindo de longe
o seu gemido.
Os homens duros
de olhos tristes
levantam o corpo
do marinheiro
de olhos fechados
sob a lingada.
E o vento parte
parte nas ondas
bate nas croas
e vai chorando
as três Marias
que ficaram à espera
de quem não veio
do cais do porto.
Rosa que morre
vento que bate
sino que plange
na torre velha
da velha Sé:
bate na torre
na velha torre
da velha Sé.
O vento vem
vindo de longe
o seu gemido.
Os homens duros
de olhos tristes
levantam o corpo
do marinheiro
de olhos fechados
sob a lingada.
E o vento parte
parte nas ondas
bate nas croas
e vai chorando
as três Marias
que ficaram à espera
de quem não veio
do cais do porto.
Rosa que morre
vento que bate
sino que plange
na torre velha
da velha Sé:
As três Marias
do cais do porto.
do cais do porto.
Ao tempo em que
publicastes esse poema evocativo, que tem para mim rumor nostálgico das marés
maranhenses, já tínheis vosso grupo de companheiros. Eram poetas, prosadores e
artistas plásticos, que se reuniam ao fundo de uma movelaria, no Centro de São
Luís. Lembro alguns deles: Bandeira Tribuzzi, Carlos Madeira, Luís Carlos,
Lago Burnett, Ferreira Gullar, Domingos Vieira Filho, Lucy Teixeira, Antônio
Luís. A esses companheiros dedicastes o vosso livro de estreia, A Canção
Inicial.
E é nesse livro
matinal que vos interrogáveis:
Mundo, meu mundo
que vários caminhos
em ti vão dar?
que vários caminhos
em ti vão dar?
Já então a vida vos
obrigava a tentar decifrá-la, com a ansiedade própria dos moços que anseiam
encontrar a vereda esquiva que os há de levar à estrada real. E não vos
faltava, nessa hora apreensiva, o sentimento trágico do mundo, expresso nestes
versos:
Meus olhos estão
cobertos de noite
para olhar o tempo, o casario e o muro
envelhecerem.
para olhar o tempo, o casario e o muro
envelhecerem.
Por fim, nesse
repassar de lembranças mortas, haveríeis de descobrir, como uma síntese, como
um símbolo, nas velhas paredes fendidas, o musgo e o tempo escondidos nos
escombros.
É curioso que, em A Canção
Inicial, falte a nota política, que seria indicativa da vossa
personalidade, ali mesmo, na nossa ilha rebelde. Tínheis olhos para ver os
meninos abandonados e para contemplar as águas do Bacanga. Mas ainda dormia no
vosso espírito a força empreendedora que represana essas mesmas águas, na hora
em que o político dominaria o poeta, sem contudo destruí-lo – dando-vos a
poesia de ação construtiva.
Não quero ir adiante
sem me deter um momento para vos falar de nossa ilha de São Luís. Alteada nas
suas colinas, a olhar o mundo em volta pelas janelas de seus mirantes,
dir-se-ia esquecida de si mesma, com seus sobrados velhos, seus azulejos, suas
fontes públicas, suas ruas estreitas.
Já escrevi sobre ela
e a sua gente sucessivos romances, e sinto que ainda não contei tudo quanto me
inspiram aquelas sacadas de ferro, aquelas calçadas de cantaria, aqueles
balcões sobre a rua.
Não sei se já
reparastes que há uma espécie assim de riso divertido nos beirais de telha de
nossos sobrados. Como que esses berais dali nos observam, com seus bigodes
retorcidos para o alto, ao mesmo tempo que se enchem de luz as casas espaçosas
com os braços abertos das janelas escancaradas.
No entanto, convém
advertir que o povo sereno que por ali transita, ladeiras abaixo, ladeiras
acima, traz consigo a vocação da rebeldia. Lembra-nos José Veríssimo, na
sua História
da Literatura Brasileira, que, no século XVII, o governo português
mandou fazer devassas contra os “homens versistas” de São Luís. Sinal de que,
já por esse tempo, o riso maranhense tinha o seu pico político.
Nesse mesmo século,
precisamente em 1654, ao pregar ali, junto ao mar, o seu famoso “Sermão aos Peixes”,
à maneira de Santo Antônio diante do Adriático, o Padre Antônio
Vieira chamou por eles, para lhes dizer que nós, maranhenses, vivíamos a
nos comer uns aos outros.
O grande jesuíta,
agastado conosco, não nos passou a mão pela cabeça. Pelo contrário: foi severo,
foi implacável. E por quê? Porque, sem outro recreio na cidade pequena,
distraíamos a nossa imaginação com a vida alheia. Murmurava-se nas ruas e
praças, murmurava-se no interior das igrejas, e com graça, e com riso, e com
malícia contente. Defeito? Não: excesso de fantasia, pendor para o pico e o
travo de ironia e da graça.
Sem isso, com que
distrairíamos as nossas horas? No século XIX, quando a imprensa apareceu no
Maranhão, logo floresceram os pasquins políticos, em que as facções se
digladiavam em bom Português. Por vezes, eram gigantes que se batiam: de um
lado, Sotero dos Reis; do outro, João Francisco Lisboa.
Certa feita,
assistindo por acaso a um bate-boca de orla de calçada, ouvi uma mulher do povo
dizer ao peixeiro, que lhe vendia o peixe furtando na conta:
– O senhor está
querendo fazer machavelismo comigo!
Machavelismo? Que
era aquilo? E de pronto me acudiu: maquiavelismo! A palavra erudita, corrente
nos pasquins políticos locais, vulgarizara-se de tal forma, com a pronúncia
imposta pelo ch da grafia originária, que ali estava ela, na língua do povo,
como um testemunho a mais da glória universal do mestre florentino.
A Política e as
Letras, Sr. José SARNEY, se já não estivessem harmonizadas em vossa personalidade
como herança de vossos antepassados, encontrariam essa concordância na índole
do povo de que sois representante. Igual concordância se observa na vasta linhagem
de altas figuras maranhenses que vos antecederam no mesmo privilégio, e de que
cito algumas, ao acaso da memória: João Francisco Lisboa, Sotero dos Reis,
Odorico Mendes, Gomes de Souza, Coelho Neto, Godofredo Viana, Domingos Barbosa,
Dunshee de Abranches, Humberto de Campos, Clodomir Cardoso, Viriato Correia,
Astolfo Serra.
Na casa dos 30 anos,
pelo voto conquistado na praça pública, subistes as escadas do Palácio dos
Leões, em São Luís, para governar o Maranhão. Antes de vós, somente outro
poeta, Astolfo Serra, tinha alcançado a mesma glória. Vínheis dos sonhos
líricos, tínheis passado pelo realismo necessário da experiência política, na
Câmara dos Deputados.
Churchill dizia que o político deve ser capaz de prever o que vai
passar-se amanhã, o que vai passar-se mês que vem, e o que vai passar-se no próximo
ano, com uma condição: a de saber explicar depois por que nada do que ele
previu aconteceu.
Convosco ocorreu
exatamente o contrário. Em cada governante deve coexistir um bom profeta. Esse
profeta há de anunciar o futuro, para saber cumprir esse futuro na hora
adequada. E foi exatamente o que ocorreu convosco. Tudo quanto anunciastes, ao
predizer um Maranhão novo, despertado nas fontes de sua riqueza, com uma
perspectiva otimista para o seu futuro, realmente aconteceu. O homem de ação,
em vossa personalidade, suplantou o poeta. Este sonhou para que o político
realizasse o seu sonho.
José Bonifácio, O
Moço – que também foi político – imaginava o poeta como
um cisne em lago de ouro nas águas a boiar.
Em vez de ficar
boiando nas águas maranhenses, como o cisne do símilo de José Bonifácio,
preferistes erguer uma ponte sobre as águas do Rio Anil, e com isto abristes
caminho à expansão natural de São Luís, criando condições objetivas para a
preservação da velha São Luís dos sobrados de azulejos, das sacadas de ferro e
das calçadas de cantaria.
Ano passado, quando
eu supunha que éreis todo da vida política, sem tempo e espaço para as vossas letras,
eis que retornastes à Poesia, com os vossos Os Maribondos de Fogo,
a anunciar-nos, nesta “Homilia do Juízo Final”:
Tenho um encontro
com Deus:
– José!
Onde estão as tuas mãos que eu enchi de
[estrelas?
– Estão aqui, neste balde de juçaras
[e sofrimentos.
– José!
Onde estão as tuas mãos que eu enchi de
[estrelas?
– Estão aqui, neste balde de juçaras
[e sofrimentos.
Em 1969, o editor José
de Barros Martins, conhecendo o sentimento de afeição que me prende à vossa
pessoa, enviou-me para Paris, onde eu então residia, os originais de vosso
livro de contos maranhenses, Norte das Águas, convidando-me a escrever sobre as vossas
narrativas de inspiração regional uma nota introdutória.
Não me espantei,
como o Presidente Austregésilo de Athayde, ao ver o Governador José SARNEY
publicar um livro de contos. Eu sabia que o escritor não se dissociara do
governante ao subir os degraus da escadaria de mármore do Palácio dos Leões. E
também sabia que o povo maranhense olhava com bons olhos esse ato público de
fidelidade literária.
No alvoroço do novo
livro, tínheis me telegrafado, com a notícia alvissareira. E logo vos escrevi,
comungando de vosso entusiasmo:
Teu telegrama, com a
notícia do novo livro, deu-me a alegria condizente com um sol de primavera
neste inverno de Paris. De repente, um céu azul, sol nas calçadas e nas
árvores, os capotões pendurados no braço – e o teu telegrama. Parabéns ao
Maranhão, em primeiro lugar; depois, ao Brasil.
Nas palavras de
caloroso aplauso que mandei ao vosso editor, tive ensejo de acentuar, a
propósito dos dois lados de vossa personalidade:
“José SARNEY, ao
mesmo tempo que faz política, faz Literatura, e com esta característica: como
político, não é literato; como homem de letras, não é político”.
E acrescentei,
linhas adiante, para melhor objetividade de meu pensamento:
Mas a verdade também
é que, se não tivesse feito política, percorrendo o Maranhão em todos os
sentidos, para conhecer-lhe os problemas e ouvir o seu povo, o escritor José SARNEY
não teria acumulado a soma de experiências e de conhecimentos que se encontram
hoje nos seus contos. É que, nesse mestre de arte de contar histórias, o saber
maranhense é a própria substância novelesca. Ele está para o Maranhão como
Simões Lopes Neto está para o Rio Grande do Sul, Afonso Arinos para Minas
Gerais, ou Valdomiro Silveira para São Paulo: a profunda identificação do
escritor com a sua terra e a sua gente deu-lhe a matéria e a forma de criação
literária.
Agora mesmo, para
escrever este discurso, andei a reler o Norte das Águas e quero dizer-vos, meu caro
confrade, que nele tendes aquele livro para o qual efetivamente nascestes.
Dizia André
Maurois, espantado com a própria bagagem literária, que a viagem para a
posteridade não se há de fazê-la com excesso de peso. De tudo quanto
escrevemos, sobrepairam uns tantos livros, ou apenas um único livro, que
acompanha o nosso nome pelo tempo adiante. Já tendes assim o vosso livro, com o
qual, à maneira de Rousseau com as suas Confissões, podereis
comparecer diante de Deus, ao soarem as trombetas do Juízo Final.
Ouço Mestre Aurélio
Buarque de Holanda, que leu vosso livro com soberba atenção, dele retirou
palavras e frases, para abonar vários verbetes de seu Novo
Dicionário da Língua Portuguesa com exemplos recolhidos no Norte das Águas.
Que mais era preciso para a vossa consagração?
Ninguém vos acusará
de excesso de peso à hora da viagem para posteridade. E é essa uma
característica de vossos antecessores nesta Academia: todos eles, na Cadeira
38, se contiveram na bibliografia comedida. Nenhum se derramou por muitos
volumes, no plano literário. E nessa bibliografia reduzida, um ou dois livros
em destaque, sobrelevando aos demais.
O fundador da Cadeira
[38] , Graça Aranha, teve mesmo esta originalidade na crônica das
Academias: integrou o corpo de fundadores de nossa Instituição, em 1897, sem
ter livro publicado. Canaã, seu primeiro livro, só viria a sair no século
seguinte, em 1902. Podemos dizer, por isso mesmo, que o grande escritor entrou
na Academia a crédito – para depois saldar a dívida tinindo sobre a mesa as
suas moedas de ouro.
Já se observou, a
propósito da poesia de Rilke, que seus versos líricos, embora tivessem
apenas o som de uma folha caindo, comunicavam as suas vibrações às almas mais
afastadas. Na verdade essa comunicação não há de ser privativa da poesia lírica
ou do verso de Rilke. É consubstancial à obra de arte literária, todas
as vezes que esta traz em si a marca do texto plenamente realizado.
Quem vos ouviu na
tribuna política, veemente, convicto, dificilmente vos reconhecerá na vossa
prosa literária, de que deu aqui apenas um curto exemplo, extraído de uma de
vossas mais belas histórias, “Merícia do Riacho Bem-Querer”:
As Cajazeiras,
fazenda antiga e longe: sessenta léguas no rumo do Maranhão das outras bandas,
este que vai enviesado na direção do Gurupi. O casarão grande e espichado como
jabota, com seu varandão de abas caídas, telhas pretas e pesadas. Ao lado, a
loja de secos e molhados, miudezas e fazendas. Cavalos na porta, tropeiros,
tropas, burros, jumentos, e os homens no meio. Cargas de babaçu e de arroz. Pesa
e faz a conta, avia e volta. O estalo dos relhos no lombo dos animais.
É um quadro apenas.
Mas só ele nos basta para dar a imagem nítida do escritor que chega hoje a esta
Casa. Não se lhe pode retirar ou acrescer uma só palavra. André Gide
confessava ter querido fazer de sua frase um instrumento tão sensível que a
simples alteração de uma vírgula seria suficiente para deteriorar-lhe a
harmonia.
No vosso texto em
prosa, Sr. José SARNEY, não direi que houvésseis chegado a tais requintes de
premeditação e polimento estilístico. Não. Pertencia a outra família de
escritores. Àquela que improvisa o seu texto, cedendo à inspiração momentânea.
A elaboração da página se faz nos intervalos da escrita, por um processo
gradativo e misterioso, que de súbito se abre à flor da terra, com a beleza
nova de suas cores imprevistas.
Não quero concluir
sem uma alusão à dedicatória do Norte das Águas. Dedicastes o vosso grande livro a Nazaré
e a Odylo Costa, filho – “da família dos Boasgentes, consanguíneos dos
Bonsdeuses!” Ah! A alegria que teria Odylo, na apoteose desta noite, que
também seria dele, como partícipe de vossa vitória. Imagino essa alegria pela
que eu próprio experimento, ao vos saudar em nome de nossos confrades.
Quando vos
candidatastes à Academia, visastes à sucessão de um grande escritor, que foi
também um grande político, mas na verdade tínheis também outra intenção – a de
fazer voltar às glórias de nossa terra a Cadeira aqui fundada por nosso
conterrâneo Graça Aranha e que hoje vos pertence, com o aplauso e o
júbilo de todos nós.
Lembra-nos Machado
de Assis, no discurso proferido na cerimônia de lançamento da pedra fundamental
da estátua de José de Alencar, no Rio de Janeiro, que o grande escritor,
ao desenganar-se dos homens e das coisas, nos reveses da luta política, “volveu
de todo às suas queridas Letras”. E adiantava mais o mestre de Dom Casmurro,
com a sua fina experiência da vida:
“As Letras são boas amigas;
não lhe fizeram esquecer inteiramente as amarguras, é certo; senti-lhe mais de
uma vez a alma enojada e abatida. Mas a Arte, que é a liberdade, era a força
medicatriz de seu espírito”.
Vindes aqui como
escritor, sem vos despojardes de vossa condição política. Já provastes, no
vosso primoroso discurso, que uma se harmoniza com a outra, na personalidade de
tantos de nossos confrades, a começar por Machado de Assis.
Rui, o grande Rui, é o mais alto exemplo dessa concordância perfeita. E o atual
presidente do Senado, nosso companheiro Luís Viana Filho, está ali à
mão, como o exemplo acadêmico ao alcance de vossos olhos, sempre que vos
sentais na vossa cadeira parlamentar como representante do Maranhão.
Volto a dizer-vos
que sois legitimamente um escritor, Sr. José SARNEY, e dos mais altos de vossa
geração e de nosso País. O Maranhão se orgulha de vos ter entre os seus filhos
mais ilustres, honrando as tradições intelectuais que nos vêm de um João
Lisboa, de um Graça Aranha.
Bernanos reconhecia, ainda moço, que é preciso permanecer fiel às
grandes paixões da adolescência ou desaparecer antes delas.
Permanecestes fiel
às vossas Letras, que vos seduziram na juventude. Nada mais natural do que o
lugar definitivo que tendes agora nesta Academia. E só eu sei a emoção com que
vos vejo sentado nessa Poltrona, com o vosso chapéu de plumas, a vossa espada
(pernambucana) e o vosso colar acadêmico, a reluzir, com tanto júbilo e em tão
bela noite de glórias, os doirados de vosso fardão.
JOSUÉ MONTELLO; ABL; 6/11/1980.
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da edição original deste documento (mensagem, artigo;
pesquisa; monografia; dissertação; tese ou reportagem). Os mencionados adendos ortográficos
foram acrescidos meramente com intuito pedagógico de facilitar a leitura, a
compreensão e a captação mnemônica dos fatos mais relevantes da mensagem por um
espectro mais amplo de leitores de diferentes formações, sem prejuízo do
conteúdo cujo texto está transcrito na íntegra, conforme a versão original.
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RONALD
DE ALMEIDA SILVA
Rio de Janeiro, RJ,
02jun1947; reside em São Luís, MA, Brasil desde 1976.
Arquiteto Urbanista
FAU-UFRJ 1969-1972.
Especialização em
Desenho Urbano e Planejamento Regional (Universidade de Edimburgo, Escócia,
1981-83).
Registro profissional
(1972-2012 = 40 anos) CREA-RJ 21.900-D
Registro profissional
(2013 em diante) CAU-BR A.107.150-5
Ouvidor Nacional das Competições da CBF (2003-2012)
Inspetor do GT e da CNIE - Comissão Nacional de
Inspeção de Estádios da CBF (2004-2012)
e-mail:
ronald.arquiteto@gmail.com
Blog
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