FERNANDO PESSOA, EMPREGADO DE ESCRITÓRIO
“a vida que podia ter sido, e que
não foi…”
http://www.revistabula.com/1045-fernando-empregado-escritorio/
Acesso RAS
em 27jan2016
Nota RAS: a numeração dos parágrafos e os grifos não constam da edição original publicada no site da Revista Bula.
Nota RAS: a numeração dos parágrafos e os grifos não constam da edição original publicada no site da Revista Bula.
Para aqueles que hoje medem a importância de um homem pelo
saldo de sua conta bancária, decididamente, Fernando Pessoa não teria sido
alguém que pudesse dar lições de empreendedorismo
1. Em janeiro de 1926, aos 38 anos de idade, com
alguma experiência no campo econômico e comercial, o poeta Fernando Pessoa
(1888-1935) entendeu que tinha conhecimentos suficientes para editar uma
publicação mensal ligada a esses dois setores, a “Revista de Comércio e
Contabilidade”, que fundou em Lisboa em parceria com seu cunhado Francisco
Caetano Dias. Mas, olhando sem “parti pris”, o currículo que o poeta carregava
era a de empreendedor desastrado e de empregado de escritório, um
guarda-livros, tal como o seu heterônimo Bernardo Soares, que, se experiência
tinha, seria só para ensinar a arte do trabalho contábil. Na verdade, Pessoa
ganhava a vida mais como tradutor de inglês para o português, o que lhe
permitia desempenhar a atividade para várias casas comerciais, aproveitando-se
da larga dependência de Portugal em relação a Inglaterra.
2. Como empreendedor, de fato, nunca teve êxito: a
própria publicação dedicada ao comércio e à contabilidade teria vida efêmera,
apenas seis números, assim como a editora e tipografia Íbis, que, instalada em
1907 no bairro da Glória, mal chegou a funcionar. Em 1921, fundou a Editora
Olisipo, de ruinosa carreira comercial. Nela publicou os seus “English Poems I
e II” e “English Poems III”, e “A Invenção do Dia Claro”, de Almada Negreiros
(1893-1970). Em 1923, a Olisipo lançou o folheto “Sodoma Divinizada”, de Raul
Leal (1886-1964), que foi alvo de um ataque moralizador da Liga dos Estudantes
de Lisboa e apreendido por ordem do governo, junto com as “Canções”, de António
Botto (1897-1959).
3. Pela Olisipo, Pessoa pretendia lançar uma série de
livros importantes — a maioria traduzida (ou com tradução prevista) por ele
mesmo, talvez para evitar maiores custos. Na acanhada Lisboa de sua época, com
meia dúzia de livrarias e editoras, esse também não seria um ramo muito
promissor para quem não dispunha de maiores recursos para empreendimentos mais
ousados num mercado restrito. E já ocupado por algumas casas tradicionais, que
se acotovelavam no Chiado e na Baixa.
4. Levando em conta, porém, a boa formação que Pessoa
recebera na África do Sul, de 1896 a 1905, seria de esperar que tivesse tido
uma carreira profissional de maior sucesso — “a vida que podia ter sido, e que
não foi”, como diria o poeta Manuel Bandeira (1886-1968) —, e não a obscura vida
de empregado de escritório, o que lhe permitiu apenas viver em quartinhos em
casas de familiares ou alugados na rua da Glória, no largo do Carmo, nas ruas
Passos Manuel, Pascoal de Melo, D. Estefania e Almirante Barroso, entre outros
locais, até que se transferiu de vez para a casa da família na rua Coelho da
Rocha, 16, onde viveu os últimos 15 anos de sua vida e hoje está a fundação que
leva o seu nome.
5. Para aqueles que hoje medem a importância de um
homem pelo saldo de sua conta bancária, decididamente, Fernando Pessoa não
teria sido alguém que pudesse dar lições de empreendedorismo ou organização
comercial. Nem mesmo ânimo — ou, quem sabe, maiores recursos financeiros — teve
para estudar na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, quando retornou de
sua temporada africana, como pretendia. Talvez tivesse tido uma boa carreira
como professor, se houvesse primeiro superado a timidez, o que nunca fez.
6. Ao passar os anos de sua formação em Durban, na
África do Sul, à época colônia britânica, em companhia da mãe e do padrasto, o
jovem Pessoa teve a oportunidade de estudar na Convent School, uma escola
privada (liceu) e, depois, na Commercial Schoool, de 1902 a 1903, e na Durban
High School, sob a orientação de Mr. W.H. Nicholas, homem de personalidade notável
que, possivelmente, serviu de modelo para o seu heterônimo Ricardo Reis.
7. Na Durban High School, fez um curso de
contabilidade e comércio, depois de ter sido um aluno brilhante no liceu nas
disciplinas de Humanidades, como se pode constatar no livro “Fernando Pessoa na
África do Sul: a Formação Inglesa de Fernando Pessoa”, de Alexandre E. Severino
(Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1983). Se a sua educação havia sido
essencialmente humanista até àquela altura, o que o teria levado à mudança tão
brusca? Provavelmente, porque sua família entendia que um curso comercial lhe
daria conhecimentos mais práticos para ganhar a vida. Até porque na colônia
britânica não havia, àquela altura, escolas superiores, o que se deu só a
partir de 1918. Se quisesse (e pudesse), teria de fazer o curso superior em
Londres.
8. Fosse como fosse, foi em seu arsenal de
conhecimentos comerciais que Fernando Pessoa se baseou quando decidiu escrever
textos para a “Revista de Comércio e Contabilidade”. São textos um tanto
ingênuos, do ponto de vista comercial, que incluem uma visão do mundo da
publicidade, mas que trazem a marca inconfundível do literato que os produziu.
Tanto que levou o ficcionista, poeta e jornalista português António Mega
Ferreira, ex-editor do “Jornal de Letras”, a recolhê-los em “Fernando Pessoa. O
Comércio e a Publicidade” (Lisboa, Cinevoz/Lusomedia, 1986).
9. São estes textos que agora ganham versão em
italiano em “Fernando Pessoa: Economia & Commercio: Impresa, Monopólio,
Libertà” (Perugia, Edizioni dell´Urogallo, 2011), traduzidos pelo professor
Brunello De Cusatis, da Faculdade de Letras e Filosofia da Universidade de
Perugia, autor de uma esclarecedora introdução. O volume inclui ainda o
iluminado ensaio-posfácio “O Evolucionismo Comercial de Fernando Pessoa”, do poeta,
tradutor e ensaísta Alfredo Margarido (1928-2010), recentemente falecido, a
cuja memória o livro é dedicado.
10.
Tudo
o que se disse linhas acima se pode constatar neste trecho: “Um comerciante,
qualquer que seja, não é mais do que um servidor do público, ou de um público;
e recebe uma paga, a que chama o seu ‘lucro’, pela prestação desse serviço. Ora
toda gente que serve deve, parece-nos, buscar a agradar a quem serve. Para isso
é preciso estudar a quem se serve (…); partindo não do princípio de que os outros
pensam como nós, ou devem pensar como nós (…), mas do princípio de que, se
queremos servir os outros (para lucrar com isso ou não), nós é que devemos
pensar como eles”.
11.
Pode-se
a partir deste texto concluir que Pessoa pensava um pouco longe para o seu tempo.
Afinal, naqueles anos em que a publicidade ainda começava a se impor, poucos
fabricantes levavam em conta pesquisa de mercado antes de lançar qualquer
produto. Funcionavam como senhores todo-poderosos que seguiam só a própria
intuição e gosto — o público que tratasse de consumir o que ofereciam. Até
porque a concorrência era mínima. E Pessoa já advogava que se devia consultar o
gosto do consumidor antes de colocar qualquer novidade no mercado. Era um
pensamento revolucionário.
12.
Foi
a partir de 1925 que Pessoa passou a trabalhar também na área de publicidade e
propaganda, ao conhecer Manuel Martins da Hora, que seria o fundador da Empresa
Nacional de Publicidade, a primeira agência de publicidade de Portugal. Mas a
experiência não foi bem sucedida, como lembra De Cusatis na introdução. Foi por
volta de 1926-1927 que o poeta imaginou um slogan para a Coca-Cola, que então
estava sendo lançada em Portugal, representada pela firma Moitinho d´Almeida
Lda., empresa para a qual o poeta prestou serviços como profissional autônomo.
13.
O
slogan dizia: “Primeiro estranha-se. Depois entranha-se”. Há um jogo de
palavras que se pode chamar de inventivo ou genial, mas, por trás, havia certa
sugestão que hoje nem mesmo um publicitário muito ousado seria capaz de
formular, ainda mais pensando nas conveniências de seu cliente. Em outras
palavras: o que se queria dizer com aquilo é que, primeiro, a bebida teria um
gosto um tanto estranho para a época, mas que, depois, com a continuidade,
poderia oferecer certo êxtase, obviamente em função de sua toxicidade.
14.
O
resultado foi óbvio: não durou muito para que a autoridade sanitária de Lisboa
proibisse a distribuição do produto e determinasse o seu sequestro.
Convenhamos: do ponto de vista comercial, foi um desastre. A tal ponto aquilo
ficou marcado que a Coca-Cola só haveria de voltar ao mercado português quase
meio século depois, ao final da ditadura fascista (1928-1974), cujo grande
ícone foi o professor António de Oliveira Salazar (1889-1970).
15.
Olhando
com olhos comerciais, o slogan só poderia ter saído da cabeça de um
inconsequente. Só mesmo um nefelibata seria capaz de imaginar que aquilo não
poderia trazer consequências funestas para seu cliente, ainda mais na sociedade
portuguesa de então em que as forças do fascismo começavam a cobrir a nação com
suas asas funéreas. Isso não significa dizer que o slogan não tenha qualidades.
16.
Pelo
contrário. Preenche todos os requisitos modernos que se exigem de um bom slogan
publicitário. Tanto que, recentemente, em Portugal, por ocasião do lançamento
do “Frize”, uma água limão-cola, o slogan foi recriado para: “Primeiro
prova-se; depois aprova-se”, como observou Andréia Galhardo, da Faculdade de
Ciências Humanas e Sociais da Universidade Fernando Pessoa (UFP), do Porto, no
artigo “Sobre as práticas e reflexões publicitárias de Fernando Pessoa”.
17.
É
claro que, ao que se saiba, até hoje, ninguém escreveu isto com todas as
letras, até porque Pessoa foi canonizado e entronizado no altar dos pais da
pátria portuguesa, ainda que, em vida, nunca ninguém lhe tenha dado muita
importância. Até para publicar seus versos sempre encontrou dificuldades, o que
o levou a acumular seus escritos numa arca, que foi o inestimável espólio que
legou à Literatura Portuguesa.
18.
Mas,
seja como for, Pessoa não pode ser tomado como gênio das finanças ou da publicidade
— até porque, nestes dois campos de negócios, a genialidade está diretamente
ligada à capacidade de fazer os clientes obterem lucros e, obviamente, também
lucrar muito com eles. Nem por isso se pode deixar de reconhecer em Pessoa,
depois da leitura destes textos didáticos, um funcionário de boa formação
comercial e econômica, mas daí a imaginá-lo um mago das finanças ou do mercado
é ir além da conta.
19.
Não
se pode deixar de assinalar também que Pessoa sempre foi um antidemocrata
pagão, antiliberal e anticatólico, mais propenso a aceitar as ideias da
maçonaria, o que fez no artigo “As Associações Secretas: análise serena e
minuciosa a um projeto de lei apresentado ao Parlamento”, publicado em 1935 no
“Diário de Lisboa”, e de certo esoterismo, características que De Cusatis
ressaltou com sagacidade em “Esoterismo, Mitogenia e Realismo Político em
Fernando Pessoa. Uma Visão de Conjunto” (Porto, Edições Caixotim, 2005).
20.
Era um homem um tanto contraditório, uma alma angustiada, o
que, provavelmente, o levou à dependência alcoólica. Mas era, sobretudo, um
excepcional poeta. Educado em escolas que seguiam as mais puras tradições
britânicas, se tivesse ido para Londres, em 1905, em vez de Lisboa, como era de
sua pretensão, para tornar-se um poeta inglês, é de imaginar que teria tido
melhor sorte na vida, mas aqui de novo adentramos o perigoso terreno do
imponderável: “a vida que podia ter sido, e que não foi…”
Ilustração: João Beja
olá sou o autor deste desenho de fernando pessoa poeta que muito aprecio e vou homnageando através do desenho e pintura. veja mais trabalhos meus sobre pessoa. em artmajeur.com/joaobeja,ou em jobeja.blogspot.com,
ResponderExcluirsaudaçôes cordiais de joão beja
ps:um link seria ótimo