Sermão
de Santo Antonio aos Peixes
Pe. Antonio Vieira
Pregado em São Luís do Maranhão, em 13 junho 1654, três dias
antes de se embarcar ocultamente para o Reino.
Vos estis sal terrae. S. Mateus, V, l3.
Fonte:
http://virtualbooks.terra.com.br/freebook/port/Sermao_de_Santo_Antonio.htm
I
Vós, diz Cristo, Senhor nosso,
falando com os pregadores, sois o sal da terra: e
chama-lhes sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o sal.
O efeito do sal é impedir a corrupção; mas
quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que
têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção?
Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra se não deixa
salgar. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores não pregam a verdadeira
doutrina; ou porque a terra se não deixa salgar e os ouvintes, sendo verdadeira
a doutrina que lhes dão, a não querem receber.
Ou é porque o sal não salga, e os pregadores dizem uma
cousa e fazem outra; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes
querem antes imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem. Ou é porque o sal
não salga, e os pregadores se pregam a si e não a Cristo; ou porque a terra se
não deixa salgar, e os ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem a seus apetites.
Não é tudo isto verdade? Ainda mal!
Suposto, pois, que ou o sal não salgue ou a terra se não
deixe salgar; que se há-de fazer a este sal e que se há-de fazer a esta terra?
O que se há-de fazer ao sal que não salga, Cristo o disse logo: Quod si sal evanuerit,
in quo salietur? Ad nihilum valet ultra, nisi
ut mittatur foras et conculcetur ab hominibus. "Se
o sal perder a substância e a virtude, e o pregador faltar à doutrina e ao
exemplo, o que se lhe há-de fazer, é lançá-lo fora como inútil para que seja
pisado de todos." Quem se atrevera a dizer tal cousa, se o mesmo Cristo a
não pronunciara?
Assim como não há quem seja mais digno de reverência e de
ser posto sobre a cabeça que o pregador que ensina e faz o que deve, assim é
merecedor de todo o desprezo e de ser metido debaixo dos pés, o que com a
palavra ou com a vida prega o contrário.
Isto é o que se deve fazer ao sal que não
salga. E à terra que se não deixa salgar, que se lhe há-de
fazer? Este ponto não resolveu Cristo, Senhor nosso, no Evangelho; mas temos
sobre ele a resolução do nosso grande português
Santo António, que hoje celebramos, e a mais galharda e gloriosa resolução
que nenhum santo tomou.
Pregava Santo
António em Itália na cidade de Arimino, contra os hereges, que nela eram
muitos; e como erros de entendimento são dificultosos de arrancar, não só não
fazia fruto o santo, mas chegou o povo a se levantar contra ele e faltou pouco
para que lhe não tirassem a vida.
Que faria neste caso o ânimo generoso do grande António?
Sacudiria o pó dos sapatos, como Cristo aconselha em outro lugar? Mas António
com os pés descalços não podia fazer esta protestação; e uns pés a que se não
pegou nada da terra não tinham que sacudir. Que faria logo? Retirar-se-ia?
Calar-se-ia? Dissimularia? Daria tempo ao tempo?
Isso ensinaria porventura a prudência ou a covardia humana;
mas o zelo da glória divina, que ardia naquele peito, não se rendeu a
semelhantes partidos. Pois que fez? Mudou somente o púlpito e o auditório, mas
não desistiu da doutrina. Deixa as praças, vai-se às praias; deixa a terra,
vai-se ao mar, e começa a dizer a altas vozes:
[Disse Santo Antonio]: Já que me não querem
ouvir os homens, ouçam-me os peixes.
Oh maravilhas do
Altíssimo! Oh poderes do que criou o mar e a terra! Começam a ferver as ondas,
começam a concorrer os peixes, os grandes, os maiores, os pequenos, e postos
todos por sua ordem com as cabeças de fora da água, António pregava e eles ouviam.
Site sapo; 1997: Fonte:
http://bibesjcp.no.sapo.pt/PAV.htm
400 ANOS DO
NASCIMENTO DO PADRE ANTÓNIO VIEIRA
Padre António Vieira (1608 - 1697)
O padre António Vieira nasceu a 6 de Fevereiro de
1608, em Lisboa, tendo partido para o Brasil aos seis anos de idade, com a
família. Desde cedo manifestou uma tendência para a vida religiosa, ingressando
na Companhia de Jesus em 1623 e sendo ordenado sacerdote 11 anos mais tarde.
A sua capacidade oratória evidenciara-se já, através dos seus
sermões, nomeadamente por altura da invasão holandesa do Brasil, tendo partido
para Portugal em 1641, numa comitiva de homenagem ao recém-aclamado rei de
Portugal, D. João IV, um ano após a revolução de 1640, que retirou a coroa
portuguesa do domínio espanhol e restaurou a independência de Portugal face a
Espanha, após 60 anos de subserviência à coroa espanhola.
O rei tornou-o seu confessor, tendo o padre António Vieira começado
a pregar na corte portuguesa e sido encarregado de algumas embaixadas em países
europeus. Nos seus sermões, denunciara a corrupção dos colonos e
administradores portugueses no Brasil e a exploração dos índios, o que lhe
granjeou várias inimizades, tendo igualmente estimulado o combate aos
espanhóis. Um outro tema que procurou abordar nos seus sermões foi a
perseguição da Inquisição aos cristãos-novos, tendo-lhe esta temática valido o
rancor dos inquisidores, em particular da ordem de S. Domingos, que dominava
esta organização.
Tornou-se célebre o seu Sermão de Santo António aos
Peixes, em que denunciava a exploração que os colonos portugueses faziam
dos índios e dos mais desfavorecidos de uma forma alegórica, pronunciado em S.
Luís do Maranhão em 1654, três dias antes de embarcar novamente para Portugal,
de onde regressou com um decreto de libertação dos índios. Com a morte de D.
João IV, seu amigo e protector, surgiram diversos conflitos entre os colonos
portugueses e a ordem jesuíta, a que pertencia Vieira, sendo este obrigado a
regressar a Lisboa em 1661. A Inquisição aproveitou a sua estadia em Portugal
para o acusar de heresia, já que o sacerdote defendia uma visão messiânica, que
se baseava na ressurreição de D. João IV, a quem caberia a fundação de um
Quinto Império. A sua defesa perante as acusações da Inquisição são um belo
exemplo da capacidade retórica do padre António Vieira. Libertado, viajou para
Roma, onde permaneceu entre 1669 e 1675, atingindo os seus sermões um enorme
sucesso naquela cidade e na corte papal, tornando-se o orador preferido da
rainha Cristina da Suécia, ali exilada, que insiste em torná-lo seu confessor.
No seu regresso a Lisboa começa a trabalhar na publicação dos
seu sermões, em que mostra um grande domínio da oratória e um perfeito
virtuosismo na utilização da língua portuguesa, em que os jogos de conceitos e
de palavras provocavam um enorme efeito e espanto em quem o ouvia.
A este propósito, afirmou, no seu Sermão da Sexagésima:
«Há-de tomar o pregador uma só matéria, há-de defini-la para que se conheça,
há-de dividi-la para que se distinga, há-de prová-la com a Escritura, há-de
declará-la com a razão, há-de confirmá-la com o exemplo, há-de amplificá-la com
as causas, com os efeitos, com as circunstâncias, com as conveniências que se
hão-de seguir, com os inconvenientes que se devem evitar; há-de responder às
dúvidas, há-de satisfazer as dificuldades, há-de impugnar e refutar com toda a
força da eloquência os argumentos contrários, e depois disto há-de colher,
há-de apertar, há-de concluir, há-de persuadir, há-de acabar. Isto é sermão,
isto é pregar, e o que não é isto é falar de mais alto.»
Fernando Pessoa chamou-lhe «Imperador da Língua Portuguesa».
Regressou à Bahia, no Brasil, em 1681, onde veio a falecer a
18 de Julho de 1697, com 89 anos. Entre 1679 e 1748 foram publicados os seus
Sermões, mas a sua obra engloba igualmente a História do Futuro, publicado em
1718, a sua Defesa Perante o Tribunal do Santo Ofício, que só veio a ser
publicada em 1957, e as suas Cartas, publicadas em volume em 1735.
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