Ferreira Gullar e sua segunda esposa e companheira desde 1994, a poetisa CLAUDIA SAHIN.
FERREIRA GULLAR
José de
Ribamar Ferreira.
Nasceu em São Luís do Maranhão, em 10 de setembro de 1930.
Faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 04 de dezembro de 2016, aos 86
anos.
Décimo primeiro maranhense a ingressar na ABL,
em 05dez2014.
Seleta Poética:
Seleção de alguns dos meus poemas preferidos
Ferreira Gullar [Poemas]
Fonte:
Blog Solange Firmino,
Posted
in Ferreira Gullar, tagged arte, Ferreira Gullar, vida on dezembro 9, 2016
[1] Ferreira Gullar – Extravio
Onde
começo, onde acabo,
se o
que está fora está dentro
como
num círculo cuja
periferia
é o centro?
Estou disperso nas coisas,
nas pessoas, nas gavetas:
de repente encontro ali
partes de mim: risos, vértebras.
Estou desfeito nas nuvens:
vejo do alto a cidade
e em cada esquina um menino,
que sou eu mesmo, a chamar-me.
Extraviei-me no tempo.
Onde estarão meus pedaços?
Muito se foi com os amigos
que já não ouvem nem falam.
Estou disperso nos vivos,
em seu corpo, em seu olfato,
onde durmo feito aroma
ou voz que também não fala.
Ah, ser somente o presente:
esta manhã, esta sala.
[2] Ferreira Gullar e eu – Espelho e Narciso
Posted in Ferreira Gullar, Solange Firmino, tagged Ferreira Gullar on dezembro 30, 2011
Narciso e Narciso
Se Narciso se encontra com Narciso
e um deles finge
que ao outro admira
(para sentir-se admirado),
o outro
pela mesma razão finge também
e ambos acreditam na mentira.
Para Narciso
o olhar do outro, a voz
do outro, o corpo
é sempre o espelho
em que ele a própria imagem mira.
E se o outro é
como ele
outro Narciso,
é espelho contra espelho:
o olhar que mira
reflete o que o admira
num jogo multiplicado em que a mentira
de Narciso a Narciso
inventa o paraíso.
E se amam mentindo
no fingimento que é necessidade
e assim
mais verdadeiro que a verdade.
Mas exige, o amor fingido,
ser sincero
o amor que como ele
é fingimento.
E fingem mais
os dois
com o mesmo esmero
com mais e mais cuidado
– e a mentira se torna desespero.
Assim amam-se agora
se odiando.
O espelho
embaciado,
já Narciso em Narciso não se mira:
se torturam
se ferem
não se largam
que o inferno de Narciso
é ver que o admiravam de mentira.
* Do
livro: Barulhos.
[3] OVNI
Sou uma coisa entre coisas
O espelho me reflete
Eu (meus
olhos)
reflito o espelho
Se me afasto um passo
o espelho me esquece:
— reflete a parede
a janela aberta.
Eu guardo o espelho
o espelho não me guarda
(eu guardo o espelho
a janela a parede
rosa
eu guardo a mim mesmo
refletido nele):
sou possivelmente
uma coisa onde o tempo
deu defeito.
[4] Ferreira Gullar – Poemas Portugueses (4 )
Posted in Ferreira Gullar, tagged Ferreira Gullar, Poemas Portugueses on fevereiro 16, 2008.
Nada vos
oferto
além destas
mortes
de que me
alimento
Caminhos não
há
Mas os pés na
grama
os inventarão
Aqui se
inicia
uma viagem
clara
para a
encantação
Fonte, flor
em fogo,
quem é que
nos espera
por detrás da
noite ?
Nada vos
sovino:
com a minha
incerteza
vos ilumino
[5] Ferreira Gullar – Perplexidades
Posted in Ferreira Gullar, tagged Ferreira Gullar, Perplexidades on fevereiro 16, 2008
a parte mais efêmera
de mim
é esta consciência de que existo
e todo o existir consiste nisto
é estranho!
e mais estranho
ainda
me é sabê-lo
e saber
que esta consciência dura menos
que um fio de meu cabelo
e mais estranho ainda
que sabê-lo
é que
enquanto dura me é dado
o infinito universo constelado
de quatrilhões e quatrilhões de estrelas
sendo que umas poucas delas
posso vê-las
fulgindo no presente do passado
[6] Ferreira Gullar e eu – Espelho e Narciso
[Eu e Ferreira Gullar em 24/11/2010, premiação do Projeto
Poesia na Escola, Rio – uma cidade de leitores]
“[Narciso]
deitou-se tentando matar a sede,
outra
mais forte achou. Enquanto bebia,
viu-se
na água e ficou embevecido com a própria imagem. (Ovídio, “Metamorfoses”)
Como aprender a me ver
sem me perder?
O reflexo não me explica,
apenas me consome
e me prende. Uno-me tanto a mim
que meus átomos se juntam
ao meu reflexo.
Como Narciso,
eu sou aquele
no reverso, no inverso,
no espectro que me devora. Quando me
perco,
é quando me encontro.
Solange
Firmino
[9º lugar no concurso Brasil dos Reis 2011]
Texto ‘Narciso e sua imagem’, na minha coluna
Mito em Contexto em Blocos online: http://www.blocosonline.com.br/literatura/prosa/colunistas/sfirmino/sf0023.php
POEMA
SUJO, de Ferreira Gullar
Fonte:
Livraria Cultura
http://www.livrariacultura.com.br/p/poema-sujo-lido-por-ferreira-gullar-22300218
[1] SINOPSE
Escrito em Buenos Aires entre maio e outubro
de 1975, o 'Poema Sujo' chegou ao Brasil no mesmo ano, gravado em uma fita
cassete trazida por Vinicius de Moraes,
que se encontrou com Ferreira Gullar na Argentina. Em tempos de ditadura
militar em muitos países da América Latina, seria muito arriscado desembarcar
com um poema redigido em papel, daí a ideia de gravá-lo em fita cassete, na voz
do próprio Gullar. A fita não chamou atenção na alfândega e em pouco tempo, já
transcritos, os versos de Gullar correram a cidade do Rio de Janeiro e, ao
longo dos anos, tornaram-se parte da literatura brasileira. A ideia de regravar
o poema partiu de Antonio Fernando de
Franceschi, em 2005, quando os versos completaram 30 anos. Além da leitura
integral do poema, o DVD traz uma entrevista concedida por Gullar a Franceschi,
na qual o poeta descreve o contexto em que produziu a obra. Textos de Paulo
Mendes Campos e Vinicius de Moraes acompanham o DVD, no encarte.
[2] SOBRE O NARRADOR
Ferreira Gullar é o pseudônimo de José Ribamar Ferreira. Poeta,
dramaturgo, jornalista, tradutor e crítico de artes plásticas, nasceu no
Maranhão, em 1930. Aos 18 anos, trabalhou no Diário de São Luís e, um ano
depois, publicou seu primeiro livro, Um Pouco Acima do Chão. Em 1951, trabalhou
em revistas como Cruzeiro e Manchete e no Jornal do Brasil, no Rio de Janeiro.
Gullar lançou o livro Luta Corporal em 1954. Participou do início do
concretismo em 1956 e, em 1957, deixou o movimento e escreveu o artigo Poesia
Concreta. Em 1959, assinou o Manifesto Neoconcreto, contando com ideias da sua
Teoria do Não Objeto. No início da década de 1960, escreveu poemas de cordel,
como João Boa Morte. Em 1962, foi eleito presidente do Centro Popular de
Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC/UNE) e, em 1964, filiou-se ao
Partido Comunista Brasileiro. Com o decreto do AI-5 (1968), Gullar foi preso e
exilou-se em 1971. No exílio, enviou artigos para o jornal O Pasquim e escreveu
seu livro mais popular, Poema Sujo (1976). Voltou ao Brasil em 1977 e escreveu
para teatro e televisão. Em 1980, publicou a obra Toda Poesia. Como crítico de
artes plásticas, lançou títulos como Sobre Arte (1983) e Etapas da Arte
Contemporânea (1998). Em 2002, foi indicado ao Prêmio Nobel de Literatura, e,
em 9 de outubro de 2014, foi eleito o sétimo ocupante da cadeira nº 37 da Academia
Brasileira de Letras. Ferreira Gullar morreu no dia 4 de dezembro de 2016, aos
86 anos, no bairro de Copacabana, Rio de Janeiro, vítima de pneumonia.
Poema sujo [escrito em Buenos Aires,
Argentina, 1975]
(trecho inicial)
http://www.casadobruxo.com.br/poesia/f/fgullar27.htm
[página 1]
turvo turvo
a turva
mão do sopro
contra o muro
escuro
menos menos
menos que escuro
menos que mole e duro menos que fosso e muro: menos que furo
escuro
mais que escuro:
claro
como água? como pluma? claro mais que claro claro: coisa
alguma
e tudo
(ou quase)
um bicho que o universo fabrica e vem sonhando desde as
entranhas
azul
era o gato
azul
era o galo
azul
o cavalo
azul
teu cu
[2]
tua gengiva igual a tua
bocetinha que parecia sorrir entre as folhas de
banana entre os cheiros de flor e bosta de porco aberta
como
uma boca do corpo (não como a tua boca de palavras) como
uma
entrada para
eu não sabia tu
não sabias
fazer girar a vida
com seu montão de estrelas e oceano
entrando-nos em ti
bela bela
mais que bela
mas como era o nome dela?
Não era Helena nem Vera
nem Nara nem Gabriela
nem Tereza nem Maria
Seu nome seu nome era...
Perdeu-se na carne fria
perdeu na confusão de tanta noite e tanto dia
perdeu-se na profusão das coisas acontecidas
constelações de alfabeto
noites escritas a giz
pastilhas de aniversário
domingos de futebol
[3]
enterros corsos
comícios
roleta bilhar baralho
mudou de cara e cabelos mudou de olhos e risos mudou de
casa
e de tempo: mas está comigo está
perdido comigo
teu nome
em alguma gaveta
Que importa um nome a esta hora do anoitecer em São Luís
do Maranhão à mesa do jantar sob uma luz de febre entre
irmãos
e pais dentro de um enigma?
mas que importa um nome
debaixo deste teto de telhas encardidas vigas à mostra entre
cadeiras e mesa entre uma cristaleira e um armário diante de
garfos e facas e pratos de louças que se quebraram já
um prato de louça ordinária não dura tanto
e as facas se perdem e os garfos
se perdem pela vida caem
pelas falhas do assoalho e vão conviver com ratos
e baratas ou enferrujam no quintal esquecidos entre os pés
de erva-cidreira
e as grossas orelhas de hortelã
quanta coisa se perde
nesta vida
[4]
Como se perdeu o que eles
falavam ali
Mastigando
misturando feijão com farinha e nacos de carne assada
e diziam coisas tão reais como a toalha bordada
ou a tosse da tia no quarto
e o clarão do sol morrendo na platibanda em frente à nossa
janela tão reais que
se apagaram para sempre
Ou não?
Não sei de que tecido é feita minha carne e essa vertigem
que me arrasta por avenidas e vaginas entre cheiros de
gás
e mijo a me consumir como um facho-corpo sem chama,
ou dentro de um ônibus
ou no bojo de um Boeing 707 acima do Atlântico
acima do arco-íris
perfeitamente fora
do rigor cronológico
sonhando
Garfos enferrujados facas cegas cadeiras furadas mesas
gastas
balcões de quitanda pedras da Rua da Alegria beirais de
casas
cobertos de limo muros de musgos palavras ditas à mesa do
jantar,
[5]
voais comigo
sobre continentes e mares
E também rastejais comigo
pelos túneis das noites clandestinas
sob o céu constelado do país
entre fulgor e lepra
debaixo de lençóis de lama e de terror
vos esgueirais comigo, mesas velhas,
armários obsoletos gavetas perfumadas de passado,
dobrais comigo as esquinas do susto
e esperais esperais
que o dia venha
E depois de tanto
que importa um nome?
Te cubro de flor, menina, e te dou todos os nomes do
mundo:
te chamo aurora
te chamo água
te descubro nas pedras coloridas nas artistas de
cinema
nas aparições do sonho
- E esta mulher a tossir dentro de casa!
Como se não bastasse o pouco dinheiro, a lâmpada fraca,
[6]
O perfume ordinário, o amor
escasso, as goteiras no inverno.
E as formigas brotando aos milhões negras como golfadas de
dentro da parede (como se aquilo fosse a essência da casa)
E todos buscavam
num sorriso num gesto
nas conversas da esquina
no coito em pé na calçada escura do Quartel
no adultério
no roubo
a decifração do enigma
- Que faço entre coisas?
- De que me defendo?
Num cofo de quintal na terra preta cresciam plantas e rosas
(como pode o perfume
nascer assim?)
Da lama à beira das calçadas, da água dos esgotos cresciam
pés de tomate
Nos beirais das casas sobre as telhas cresciam capins
mais verdes que a esperança
(ou o fogo
de teus olhos)
[7]
Era a vida a explodir por todas
as fendas da cidade
sob as sombras da guerra:
a gestapo a wehrmacht a raf a feb a blitzkrieg
catalinas torpedeamentos a quinta-coulna os fascistas os
nazistas os
comunistas o repórter Esso a discussão na quitanda a
querosene o
sabão de andiroba o mercado negro o racionamento o blackout
as
montanhas de metais velhos o italiano assassinado na Praça
João
Lisboa o cheiro de pólvora os canhões alemães troando nas
noites de
tempestade por cima da nossa casa. Stalingrado
resiste.
Por meu pai que contrabandeava cigarros, por meu primo que
passava
rifa, pelo tio que roubava estanho à Estrada de Ferro, por
seu Neco
que fazia charutos ordinários, pelo sargento Gonzaga que
tomava
tiquira com mel de abelha e trepava com a janela aberta,
pelo meu carneiro manso
por minha cidade azul
pelo Brasil salve salve,
Stalingrado resiste.
A cada nova manhã
nas janelas nas esquinas nas manchetes dos jornais
Mas a poesia não existia ainda.
Plantas. Bichos, Cheiros. Roupas.
Olhos. Braços. Seios. Bocas.
Vidraça verde, jasmim.
[8]
Bicicleta no domingo.
Papagaios de papel.
Retreta na praça.
Luto.
Homem morto no mercado
sangue humano nos legumes.
Mundo sem voz, coisa opaca.
Nem Bilac nem Raimundo. Tuba de alto clangor, lira singela?
Nem tuba nem lira grega. Soube depois: fala humana, voz de
gente, barulho escuro do corpo, intercortado de relâmpagos
Do corpo. Mas que é o corpo?
Meu corpo feito de carne e de osso.
Esse osso que não vejo, maxilares, costelas
flexível armação que me sustenta no espaço
que não me deixa desabar como um saco
vazio
que guarda as vísceras todas
funcionando
como retortas e tubos
fazendo o sangue que faz a carne e o pensamento
e as palavras
e as mentiras
[9]
e os carinhos mais doces
mais sacanas
mais sentidos
para explodir uma galáxia
de leite
no centro de tuas coxas no fundo
de tua noite ávida
cheiros de umbigo e de vagina
graves cheiros indecifráveis
como símbolos
do corpo
do teu corpo do meu corpo
corpo
que pode um sabre rasgar
um caco de vidro
uma navalha
meu corpo cheio de sangue
que o irriga como a um continente
ou um jardim
circulando por meus braços
por meus dedos
enquanto discuto caminho
lembro relembro
meu sangue feito de gases que aspiro
[10]
dos céus da cidade
estrangeira
com a ajuda dos plátanos
e que pode - por um descuido - esvair-se por meu
pulso
aberto
Meu corpo
que deitado na cama vejo
como um objeto no espaço
que mede 1,70m
e que sou eu: essa coisa deitada
barriga pernas e pés
com cinco dedos cada um (por que
não seis?)
joelhos e tornozelos
para mover-se
sentar-se
levantar-se
meu corpo de 1,70m que é meu tamanho no mundo
meu corpo feito de água
e cinza
que me faz olhar Andrômeda, Sírius, Mercúrio
e me sentir misturado
[10]
a toda essa massa de
hidrogênio e hélio
que se desintegra e reintegra
sem se saber pra quê
Corpo meu corpo corpo
que tem um nariz assim uma boca
dois olhos
e um certo jeito de sorrir
de falar
que minha mãe identifica como sendo de seu filho
que meu filho identifica
como sendo de seu pai
corpo que se pára de funcionar provoca
um grave acontecimento na família:
sem ele não há José Ribamar Ferreira
não há Ferreira Gullar
e muitas pequenas coisas acontecidas no planeta
estarão esquecidas para sempre
corpo-facho corpo-fátuocorpo-fato
atravessados de cheiros de galinheiros e rato
na quitanda ninho
[11]
de rato
cocô de gato
sal azinhavre sapato
brilhantina anel barato
língua no cu na boceta cavalo-de-crista chato
nos pentelhos
com meu corpo-falo
insondável incompreendido
meu cão doméstico meu dono
cheio de flor e de sono
meu corpo-galáxia aberto a tudo cheio
de tudo como um monturo
de trapos sujos latas velhas colchões usados sinfonias
sambas e frevos azuis
de Fra Angelico verdes
de Cézanne
matéria-sonho de Volpi
Mas sobretudo meu
corpo
nordestino
mais que isso
maranhense
[12]
mais que isso
sanluisense
mais que isso
ferreirense
newtoniense
alzirense
meu corpo nascido numa porta-e-janela da Rua dos Prazeres
ao lado de uma padaria sob o signo de Virgo
sob as balas do 24º BC
na revolução de 30
e que desde então segue pulsando como um relógio
num tic tac que não se ouve
(senão quando se cola o ouvido à altura do meu
coração)
tic tac tic tac
enquanto vou entre automóveis e ônibus
entre vitrinas de roupas
nas livrarias
nos
bares
tic tac tic
tac
pulsando há 45 anos
esse coração oculto
pulsando no meio da noite, da neve, da chuva
[13]
debaixo da capa, do paletó,
da camisa
debaixo da pele, da carne,
combatente clandestino aliado da classe operária
meu coração de menino
************************************************************************
FALTAM AS TRANSCRIÇÕES DAS PÁGINAS 14 A 74
Poema Sujo - um fragmento:
"Velocidades"
[citação na Entrevista do Pasquim]
http://www.casadobruxo.com.br/poesia/f/sujo.htm
[página 75]
Mas na cidade havia muita
luz,
a vida
fazia rodar o século nas nuvens
sobre nossa varanda
por cima de mim e das galinhas no quintal
por cima do depósito onde mofavam
paneiros de farinha
atrás da quitanda,
e era pouco
viver, mesmo
no salão de bilhar, mesmo
no botequim do Castro, na pensão
da Maroca nas noites de sábado, era pouco
banhar-se e descer a pé
para a cidade de tarde
(sob o rumor das árvores)
ali
no norte do Brasil
vestido de brim.
E por ser pouco
era muito,
[76]
que pouco muito era o verde
fogo da grama, o musgo do muro, o galo
que vai morrer,
a louça na cristaleira,
o doce na compoteira, a falta
de afeto, a busca
do amor nas coisas.
Não nas pessoas:
nas coisas, na muda carne
das coisas, na cona da flor, no oculto
falar das águas sozinhas:
que a vida passava por sobre nós,
de avião.
************************************************************************
[78]
Não tem a mesma velocidade o
domingo
que a sexta-feira com seu azáfama de compras
fazendo aumentar o tráfego e o consumo
de caldo de cana gelado,
nem tem
a mesma velocidade
a açucena e a maré
com seu exército de borbulhas e ardentes caravelas
a penetrar soturnamente o rio
noutra lentidão que a do crepúsculo
que, no alto,
com sua grande engrenagem escangalhada
moía a luz.
Outra velocidade
tem Bizuza sentada no chão do quarto
a dobrar os lençóis lavados e passados
a ferro, arrumando-os na gaveta da cômoda, como
se a vida fosse eterna.
E era
naquele seu universo de almoços e temperos
de folhas de louro e de pimenta-do-reino
mastruz para tosse braba,
[79]
universo
de panelas e canseiras entre as paredes da cozinha
dentro de um surrado vestido de chita,
enfim,
onde batia o seu pequenino coração.
E se não era
eterna a vida, dentro e fora do armário,
o certo é que tendo cada coisa uma velocidade
(a do melado
escura, clara a da água
a derramar-se)
cada coisa se afastava
desigualmente
de sua possível eternidade .
Ou se se quer
desigualmente a tecia
na sua própria carne escura ou clara
num transcorrer mais profundo que o da semana.
Por isso não é certo dize
[80]
que é no domingo que
melhor se vê a cidade
- as fachadas de azulejo, a Rua do Sol vazia
as janelas trançadas no silêncio –
quando ela parada
parece flutuar.
E que melhor se vê uma cidade
quando - como Alcântara
todos os habitantes se foram
e nada resta deles (sequer
um espelho de aparador num daqueles
aposentos sem teto) - se não
entre as ruínas
a persistente certeza de que
naquele chão
onde agora crescem carrapichos
eles efetivamente dançaram
(e quase se ouvem vozes
e gargalhadas
que se acendem e apagam nas dobras da brisa)
[81]
Mas
se é espantoso pensar
como tanta coisa sumiu, tantos
guarda-roupas e camas e mucamas
tantas e tantas saias, anáguas,
sapatos dos mais variados modelos
arrastados pelo ar junto com as nuvens,
a isso
responde a manhã
que
com suas muitas e azuis velocidades
segue em frente
alegre e sem memória
*************************************************************************
[82]
É impossível dizer
em quantas velocidades diferentes
se move uma cidade
a cada instante
(sem falar nos mortos
que voam para trás)
ou mesmo uma casa
onde a velocidade da cozinha
não é igual à da sala (aparentemente imóvel
nos seus jarros e bibelôs de porcelana)
nem à do quintal
escancarado às ventanias da época
e que dizer das ruas
de tráfego intenso e da circulação do dinheiro
e das mercadorias
desigual segundo o bairro e a classe, e da
rotação do capital
mais lenta nos legumes
mais rápida no setor industrial, e
da rotação do sono
sob a pele,
[83]
do sonho
nos cabelos?
e as tantas situações da água nas vasilhas
(pronta a fugir) a rotação
da mão que busca entre os pentelhos
o sonho molhado os muitos lábios
do corpo
que ao afago se abre em rosa, a mão
que ali se detém a sujar-se
de cheiros de mulher,
e a rotação
dos cheiros outros
que na quinta se fabricam
junto com a resina das árvores e o canto
dos passarinhos?
Que dizer da circulação
da luz solar
arrastando-se no pó debaixo do guarda-roupa
entre sapatos?
e da circulação
[84]
dos gatos pela casa
dos pombos pela brisa?
e cada um desses fatos numa velocidade própria
sem falar na própria velocidade
que em cada coisa há
como os muitos
sistemas de açúcar e álcool numa pêra
girando
todos em diferentes ritmos
(que quase se pode ouvir)
e compondo a velocidade geral
que a pêra é do mesmo modo que todas essas velocidades
mencionadas
compõem
(nosso rosto refletido na água do tanque)
o dia
que passa
- ou passou –
na cidade de São Luís.
[85]
E do mesmo modo
que há muitas velocidades num
só dia
e nesse mesmo dia muitos dias
assim
não se pode também dizer que o dia
tem um único centro
(feito um caroço
ou um sol)
porque na verdade um dia
tem inumeráveis centros
como, por exemplo, o pote de água
na sala de jantar
ou na cozinha
em tomo do qual
desordenadamente giram os membros da família.
E se nesse caso
é a sede a força de gravitação
outras funções metabólicas
outros centros geram
como a sentina
a cama
[86]
ou a mesa de jantar
(sob uma luz encardida numa
porta-e-janela da Rua da Alegria
na época da guerra)
sem falar nos centros cívicos, nos centros
espíritas, no Centro Cultural
Gonçalves Dias ou nos mercados de peixe,
colégios, igrejas e prostíbulos,
outros tantos centros do sistema
em que o dia se move
(sempre em velocidades diferentes)
sem sair do lugar.
Porque
quando todos esses sóis se apagam
resta a cidade vazia
(como Alcântara)
no mesmo lugar. Porque
diferentemente do sistema solar
a esses sistemas
não os sustém o sol e sim
[87]
os corpos
que em tomo dele giram:
não os sustém a mesa
mas a fome
não os sustém a cama
e sim o sono
não os sustém o banco
e sim o trabalho não pago
E essa é a razão por que
quando as pessoas se vão
(como em Alcântara) apagam-se os sóis (os
potes, os fogões)
que delas recebiam o calor
essa é a razão
por que em São Luís
donde as pessoas não se foram
ainda neste momento a cidade se move
em seus muitos sistemas
e velocidades
pois quando um pote se quebra
outro pote se faz
[88]
outra cama se faz
outra jarra se faz
outro homem
se faz
para que não se extinga
o fogo
na cozinha da casa
***********************************************************************
[89]
O que eles falavam na
cozinha
ou no alpendre do sobrado
(na Rua do Sol)
saía pelas janelas se ouvia nos quartos de baixo
na casa vizinha, nos fundos da Movelaria
(e vá alguém saber
quanta coisa se fala numa cidade
quantas vozes
resvalam por esse intrincado labirinto
de paredes e quartos e saguões,
de banheiros, de pátios, de quintais
vozes entre muros e plantas,
risos,
que duram um segundo e se apagam)
E são coisas vivas as palavras
e vibram da alegria dó corpo que as gritou
têm mesmo o seu perfume, o gosto
da carne
que nunca se entrega realmente
em na cama
[90]
senão a si mesma
à sua própria vertigem
ou assim falando ou rindo
no ambiente familiar
enquanto como um rato
tu podes ouvir e ver
de teu buraco
como essas vozes batem nas paredes do pátio vazio
na armação de ferro onde seca uma parreira
entre arames
de tarde
numa pequena cidade latino-americana.
E nelas há
uma iluminação mortal que é da boca
em qualquer tempo
mas que ali
na nossa casa
entre móveis baratos
[91]
e nenhuma dignidade especial
minava a própria existência.
Ríamos, é certo,
em torno da mesa de aniversário coberta de pastilhas
de hortelã enroladas em papel de seda colorido,
ríamos, sim,
mas
era como se nenhum afeto valesse
como se não tivesse sentido rir
numa cidade tão pequena.
O homem está na
cidade
como uma coisa está em outra
e a cidade está no homem
que está em outra cidade
mas variados são os modos
como uma coisa
está em outra coisa:
o homem, por exemplo, não está na cidade
como uma árvore está
[92]
em qualquer outra
nem como uma árvore
está em qualquer uma de suas folhas
(mesmo rolando longe dela)
O homem não está na cidade
como uma árvore está num livro
quando um vento ali a folheia
a cidade está no homem
mas não da mesma maneira
que um pássaro está numa árvore
não da mesma maneira que um pássaro
(a imagem dele)
está/va na água
e nem da mesma maneira
que o susto do pássaro
está no pássaro que eu escrevo a cidade está no homem
quase como a árvore voa
no pássaro que a deixa
cada coisa está em outra
[93]
de sua própria maneira
e de maneira distinta
de como está em si mesma
a cidade não está no homem
do mesmo modo que em sua
quitandas praças e ruas
[Ferreira Gullar,] Buenos Aires, [Argentina,] mai/out/1975
Ficheiro:Gullar capa POEMA
SUJO.jpg
Origem: Wikipédia, a
enciclopédia livre.
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artigo Poema Sujo
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Descrição
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Capa
do livro Poema Sujo (2013)
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Autor
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Editora
Record
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Direitos autorais
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Editora
Record
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Artigo
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Propósito
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1.3: Imagens de produtos
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Capa de material fonográfico (CD, singles, LP, e outros tipos
de mídia ópticas e magnéticas), fonovisual (softwares, jogos
eletrônicos, DVD, VHS, Blu-ray, e outros tipos de mídia ópticas e magnéticas)
ou escrito (livros, quadrinhos, revistas).
·
Embalagens em geral – produtos diversos, em suas
características específicas.
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Parte ou obra
completa?
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{{Informação
| descrição = Capa do livro ''Poema Sujo'' (2013) | fonte =
[http://www.record.com.br/livro_sinopse.asp?id_livro=21256 Editora Record -
Poema sujo] | autor = Editora Record | direitos = Editora Record | artigo =
Poema Sujo | integral o...
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FERREIRA GULLAR NO PORTAL “CASA DO BRUXO”.
- Alegria, A
- Aprendizado
- Arte poética
- Bananas Podres
- Barulho
- Boi, O
- Cantiga para não morrer
- Cantada
- Dois e dois: quatro
- Escrito
- Espera, A
- Evocação de silêncios
- Exílio
- Filhos
- Fotografia de Mallarmé
- Galo galo
- Homem Sentado
- João Boa Morte - cabra marcado para morrer
- Mau despertar
- Meu pai
- Meu povo meu poema
- Morte de Clarice Lispector
- Mortos, Os
- Não há vagas
- Narciso e Narciso
- No corpo
- No mundo há muitas armadilhas
- Nós, latino-americanos
- Oswald morto
- Ouvindo apenas
- Passeio em Lima
- Pela rua
- Pergunta e resposta
- P.M.S.L.
- Poema
- Poema brasileiro
- Poema obsceno
- Poema sujo
- Poemas portugueses (4)
- Poster
- Poema sujo - um fragmento:
"velocidades"
- Primeiros anos
- Razão poética, A
- Subversiva
- Tanga
- Traduzir-se
- Um homem ri
- Um instante
- Uma fotografia aérea
- Verão
- Vida bate, A
- Volta ao lar
Entrevista de Ferreira Gullar ao Jornal Pasquim nº 413
[jul.1977]
Fonte: Portal Casa do Bruxo.
http://www.casadobruxo.com.br/poesia/f/fgullarent.htm
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Pasquim Nº 413! Entrevista Ferreira Gullar! Jun 1977!
http://produto.mercadolivre.com.br/MLB-700356764-pasquim-n-413-entrevista-ferreira-gullar-jun-1977-_JM
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“A coisa que eu sou é poeta e estou sempre em crise.”
Apresentação: Caco Xavier
Ferreira
Gullar é ao
mesmo tempo único e multidão. Único por ser o maior poeta brasileiro vivo,
unanimidade de público e crítica. Multidão por ser um dentre os milhares de
Josés Ribamares do Maranhão. Ser multidão o leva a perceber que o sentido da
vida está no sentido justo que nós lhe damos, e no modo pelo qual nós a inventamos.
Ser
poeta ("a única coisa que sou", diz ele) o faz tornar essa
vida possível. "Eu não diria que a poesia é uma
forma de fuga, porque ao mesmo tempo ela procura tornar a vida possível",
diz em entrevista ao crítico literário Weydson Barros Leal, no Diário Oficial
de Pernambuco, em 1995. Ferreira Gullar acrescenta que "o homem não faz poesia para sair da
vida, ele faz poesia para ter coragem de viver".
Nascido
em São Luís do Maranhão em 10 de novembro de 1930, Gullar casa-se em 1954 com
Thereza Aragão, com quem vem a ter os filhos Luciana, Paulo e Marcos. Sua obra
poética não é vasta, porém é decisiva para o processo cultural brasileiro.
Os
livros mais importantes são A Luta Corporal (1954); Dentro da Noite Veloz
(1975); Poema Sujo (1976); Na Vertigem
do Dia (1980); Barulhos (1987); Muitas Vozes (1999). Em 1980 é lançada a
primeira edição de Toda Poesia. Ferreira Gullar escreveu ainda vários ensaios e
peças teatrais, principalmente no período em que atuava no CPC da UNE, durante
os anos da ditadura militar.
Nesta
entrevista [Pasquim nº 413; julho 1977], o poeta desvela-se mais uma vez, pensa
em voz alta sobre poesia, arte, sociedade e esperança, e não se furta a mais
uma vez rever-se e reinventar-se ("em crise permanente", como
ele mesmo gosta de dizer).
Há
pessoas que, pela excelência de sua vida e obra, nos fazem desejar os seus
desejos. É fácil desejar ser poeta por causa de Ferreira Gullar.
Caco Xavier
"Há
quem pense que sabe como deve ser o poema.
Eu
mal sei como gostaria que ele fosse,
porque
eu mudo, o mundo muda e a
poesia
irrompe donde menos se espera."
(de
Nasce o Poema, em Barulhos)
Ferreira
Gullar [antecipando qualquer pergunta] - Essa entrevista vai versar
sobre o quê? Eu não gostaria de falar sobre política, não sou político...
[1] Arthur
Poerner - Vai
versar sobre você e sua vida. E sobre a poesia. Podemos começar falando sobre o
seu primeiro livro, de 1949.
Gullar
- Eu
tinha dezenove anos de idade, é um livro tolo, imaturo. Por isso está fora de
Toda Poesia.
[2] Lena
Frias - Joãosinho
Trinta diz que vocês formaram um grupo de jovens intelectuais sonhadores, no
Maranhão.
Marcelo
Auler - Foi
na época em que você fazia faculdade?
Gullar
- Eu
nunca fiz faculdade, quem sou eu... Eu nasci em 1930 e, quando eu tinha 12
anos, o Brasil entrou na guerra. Fiquei triste, pensei que ia morrer. Meu pai
ouvia o rádio e achava que aquelas descargas do rádio, aquela estática, era a
guerra. Meu pai tinha uma quitanda na Rua da Alegria, esquina com a Rua dos
Afogados, e era jogador de futebol, center-four da seleção maranhense, que na
época era campeã do Norte-Nordeste.
[3] Poerner
- E o que te fez se meter na vida literária?
Gullar
- O
Maranhão tem uma tradição literária, mas eu vivia à margem de tudo. Eu morava
na Rua Celso Magalhães, que hoje se chama Rua dos Veados (mas eu não tenho nada
a ver com isso), vivia no botequim da Praia do Caju jogando bilhar, juntando
alumínio e bronze pra vender, comprar cigarros. Eu era um pivete, não um menino
de família que fica dentro de casa. Éramos eu, o Espírito da Garagem da Bosta e
o Esmagado. A gente vivia roubando copos de botequim. Nada indicava que eu iria
ser escritor. Poeta, naquela época, era sinônimo de viado. Eu não olhava com
bons olhos a atividade normal de meu pai na quitanda. Meu primo trabalhava num
banco, e eu também não queria. Trabalhar, nesse sentido, eu não queria. Eu me
criei tomando banho de mar, pescando camarão. Era uma coisa livre, e de repente
virar adulto me espantava.
[4] Caco
Xavier - E por isso voltou-se para a poesia?
Gullar - Na Gramática de Eduardo Carlos Pereira
tinha uma coleção de poemas: Camões, Bocage, Gonçalves Dias, e tal, e tal, aí
vêm os parnasianos. O problema é que tava todo mundo morto. Eu não achava que
existisse algum poeta vivo. Quando minha irmã me disse que "o pai da
Iracema é poeta", eu não acreditei. Ela disse que sim, que ele era da
Academia Maranhense de Letras. Fui conhecer o cara, que morava perto, numa
casinha pequenininha. Ele me levou pro centro da cidade (a dez quadras da minha
casa, mas onde eu nunca tinha ido). Lá estavam os poetas, a curriola. Eu tinha
meus dezessete anos.
[5] Lena - E aí se formaram os grupos?
Gullar - Havia dois grupos de intelectuais
jovens. Um formado por mim e pelo Lago Burnett, o grupo 'retrógrado', que fazia
sonetos, e tal. E o grupo de 'vanguarda' era Sarney e Tribuzi, que faziam
poesia moderna.
[6] Luís
Pimentel - SARNEY já foi vanguarda!
Gullar - Eu descobri a poesia talvez por não
ter o que fazer da vida. De todas as profissões conhecidas, eu não queria
nenhuma. Eu estava rejeitando um tipo de ocupação normal das pessoas, e poderia
virar pintor, qualquer coisa assim. Mas virei poeta. Até que eu tirei 9,5 numa
redação sobre o Dia do Trabalho. Pensei: "Já que é assim, vou ser
poeta". Eu tirei 9,5 porque tive dois erros de português. E pensei:
"Bom, se eu quero ser poeta, não posso errar português". E passei
dois anos seguidos só lendo gramática.
[7] Poerner - E
qual foi a repercussão daquele seu primeiro livro?
Gullar - No Maranhão foi considerado ótimo. Aí
veio pro Rio e o Fausto Cunha baixou o cacete: "Como é que um cara de 19 anos
me escreve um troço tão antiquado desse?" Mais tarde, Fausto Cunha se tornou meu
amigo. Ele é, de certo modo, um dos responsáveis pelo caminho que eu tomei. Só
esses cascudos que ele me deu já valeram. Aí fui ler O Empalhador de
Passarinhos, do Mário de Andrade, fui ler José Lins do Rego, Otto Maria
Carpeaux... Isso é engraçado, porque quando eu comecei a fazer poesia rimada e
metrificada, a poesia brasileira era rebelde, era o modernismo escrachado. E
quando eu rompi com essa poesia e escrevi A Luta Corporal e fiz a implosão da
linguagem, arrebentei com tudo, aparecia a geração de 45, voltando pro soneto.
Eu tava sempre na contramão.
[8] Ziraldo - A
Luta Corporal foi o rompimento?
Gullar - Eu já tinha rompido antes, mas eram
tentativas. Um dia, tive o insight. Eu comprei no sebo um livro antigo, chamado
Contos de Hoffman, contos fantásticos. Comecei a ler e os contos eram tão
fantásticos que eu achei que não tinham nada a ver comigo. Me impressionava de
o livro estar todo mofado, velho, com aquelas histórias que não tinham nada a
ver com a minha vida. E eu fiz a pergunta terrível: "Caceta, pra que fazer
literatura? Pra virar isso aqui?"Não sabia responder. Fiquei no ar,
procurando a resposta, deitado na minha rede, às três da tarde. A resposta foi: "A poesia tem que mudar alguma
coisa. A única razão de ela existir é mudar alguma coisa, nem que seja a mim
mesmo". Abri minha gaveta e reli os dez poeminhas que eu tinha
escrito. Rasguei, rasguei, rasguei. Nenhum mudava nada.
[9] Reynaldo
Valinho - Essa reunião, de Toda a Poesia, começa com
os Poemas Portugueses e depois tem os sonetos. Os sonetos são de que fase?
Gullar - Os dois ou três sonetos dos Poemas
Portugueses são o ajuste de contas, pra eu nunca mais voltar atrás. São sonetos
modernos, não são parnasianos. A partir dali, eu tô livre. Nessa época, eu li
uma frase do Gauguin que foi definitiva, pra mim: "Quando eu aprender a
pintar com a mão direita, vou começar a pintar com a esquerda. E quando aprender
a pintar com a esquerda, passo a pintar com os pés". Falei assim pra
mim: "É isso aí. A poesia
é uma aventura e a linguagem tem que nascer junto com o poema".
[10]
Ziraldo - Quando você escreveu O Galo, já estava no
Rio?
Gullar - Ainda era São Luís. Eu cheguei no Rio
em 51. Me arrumaram um emprego no IAP e, quando fui fazer os exames, viram uma
infiltração pulmonar.
[11]
Ziraldo - Quer dizer, um poeta completo.
Gullar - O médico que me tratou, José Fernandes
Carneiro, um sujeito muito inteligente, me disse assim: "Você está com um início de
tuberculose, aqui, mas não pensa que vai ficar que nem o Manuel Bandeira, não.
Cê não vai explorar a tuberculose, porque agora existe a estreptomicina e eu
vou te curar".
[12]
Ziraldo - O
pátio do poema do Galo era no hospital, então?
Gullar - Não, era na minha casa. O galo do
sanatório, em Correias, onde eu fui me tratar, era outro galo. Tem vários galos
na minha vida. Tem o galo do prêmio do Jornal de Letras, que eu nunca
publiquei, feito de um anúncio do sal de frutas Eno, tem o galo-galo, que é o galo do quintal da minha
casa, "que não deixa
marca, que anda e que o cimento esquece seu último passo". Esse é o
galo real, com o qual me identifico, o homem desamparado, solto no mundo.
[13]
Camila Leite -
Seu primeiro emprego foi ser locutor da RÁDIO TIMBIRA?
Gullar - Foi. Não sei por que me chamaram, mas
fui um bom locutor. Aí, houve um comício, nos anos 50, da campanha do Getúlio.
O Adhemar de Barros havia aderido ao Getúlio e foi no Maranhão fazer campanha,
mas o governador do estado era brigadeiro e proibiu que o comício fosse feito
na praça central da cidade. Por isso, ele aconteceu numa praça marginal. Quando
estava começando, cortaram a luz e não se ouvia os caras falarem. O pessoal
então saiu em marcha, com o Adhemar, para invadir a praça onde o governador
tinha proibido o comício.
A
polícia estava lá. Quando o pessoal entrou na praça, eu ia descendo do ônibus
com meu pai, ia pro trabalho na rádio. A polícia metralha todo mundo e morre um
operário. Meu pai me arrasta pra dentro de um outro ônibus, mas me soltei dele
e fui pra praça. As pessoas avançavam com o cadáver do operário, contra a
polícia que, assustada, recuou. No dia seguinte, na rádio, chega a nota do
governador, pra eu ler: "Ontem
à noite, os comunistas mataram um operário, não sei o quê, e tal..." Eu botei a nota de lado e comecei: "O perfume que deixa saudade.
Sabonete Regina é uma maravilha. Sabonete Regina". E o pessoal lá:"Ô,
cara, lê a nota do governador". Daqui
a pouco, veio o diretor da rádio: "Você
não vai ler a nota do governador?" E
eu disse: "Não, não leio,
porque é mentira". E ele insistia: "Você
não tem nada a ver com isso, você é locutor..." E eu: "Tenho a ver com isso, sim.
Eu vi a polícia matar o cara". E ele me demitiu.
[14]
Poerner - E
como você chegou ao jornalismo?
Gullar - No Maranhão, eu já tinha trabalhado um
pouco em jornal. Quando eu vim pro Rio, fui convidado pelo Herbert Sales para
trabalhar no Cruzeiro como revisor de provas, um pré-copidesque. Depois, na
Manchete, fui ser redator, a convite do Oto Lara Resende. Eu fiquei por um
tempo como revisor, até surgir uma vaga pra redator, o que depois aconteceu.
[15]
Marcelo -
Como reage a sua família, ao fato de você querer ser poeta? E o que fez você
vir para o Rio de Janeiro?
Gullar - Me lembro de meu irmão mais velho
dizer assim: "É
verdade que você tá querendo ser poeta? Toma cuidado, hein? Lembra do J. J.
Guimarães?" Ele era um
maluco que morava a três esquinas da minha casa, num sobrado, e ficava na
janela falando um monte de disparates.
[16]
Pimentel -
Poeta, quando não era viado, era maluco.
Gullar - Pois é. Mas a minha mãe pagou meu
primeiro livro. A tiragem foi uma coisa exagerada, uns quinhentos exemplares.
Eu descobri o que era a poesia moderna, lá, e escrevi o poema O Galo. O Jornal
de Letras instituiu um concurso nacional de poesia, e eu ganhei. Este fato é
que me fez vir pro Rio. Vendi a estante, a escrivaninha...
Buenos Aires, 1975. Criando o Poema Sujo.
[17]
Zezé Sack - E
o seu pai, quitandeiro, tendo você que foi sempre desgarrado, de repente aparece
com livro editado, fazendo poesia. Como é que ele recebeu isso?
Gullar - Inteiramente a favor. Eu nunca tive
oposição alguma dentro da minha família. Pelo contrário, todo mundo achava que
era ótimo. Meu pai vivia falindo, as quitandas dele faliam sem parar. Era ele
falindo e eu sendo demitido, essa é a nossa história. Eu tava fazendo um
levantamento, hoje. Olha só: fui demitido da Rádio Timbira. Fui demitido da
revista O Cruzeiro. Fui trabalhar na Manchete e o Bloch me demitiu. Aí fui
trabalhar no Jornal do Brasil. Demitido.
Demitido no Diário de Notícias, também. Minhas últimas demissões: Fernando Henrique me demitiu da Funarte e agora, ao fazer 70 anos, a TV Globo me demitiu, pra comemorar. Agora, quero agradecer a todos esses caras que me demitiram, porque foram as melhores coisas da minha vida. Cada demissão melhorou minha vida.
Demitido no Diário de Notícias, também. Minhas últimas demissões: Fernando Henrique me demitiu da Funarte e agora, ao fazer 70 anos, a TV Globo me demitiu, pra comemorar. Agora, quero agradecer a todos esses caras que me demitiram, porque foram as melhores coisas da minha vida. Cada demissão melhorou minha vida.
[18]
Poerner -
Como é que você descobriu a política, como se deu a sua politização?
Gullar - O primeiro contato com a política foi
quando eu li no jornal Para Todos, no Maranhão, que a poesia tinha que ser
engajada. Fiquei horrorizado, fiquei com raiva do Partido Comunista. Eu falava: "A única coisa que eu sou é
poeta, e vêm esses caras dizendo que a poesia não vale nada se não for
política?" Depois
daquele negócio lá, da rádio, eu fui convidado pra fazer campanha política,
antigetulista, no interior do Maranhão, no agreste, barra pesadíssima. Conheci
o Quincas Bonfim, que é personagem da peça Se
Correr o Bicho Pega, se Ficar o Bicho Come, matador, homem do Coronel
Neiva. Ele abriu uma escola lá num município e, quando terminou a eleição,
alguém fala assim: "Agora,
Coronel, temos que arrumar dinheiro pra manter a escola funcionando".
E ele: "Não, não.
A escola fecha, a escola era só para a campanha". Aí eu não gostei,
falei, lá, e me demitiram. Eu voltei pra São Luís, e lá estava ganhando o nosso
candidato, Saturnino Belo. Aí suspenderam a publicação do boletim eleitoral
durante uma semana. Quando voltaram a publicar, estava o outro candidato
ganhando. Aí fomos pra rua, aquela confusão. Deu uma cagada geral, cara. Fui
preso e tudo. Esse negócio deu uma encrenca tão grande que a cidade se
mobilizou e parou. Foi uma greve anunciada até pela BBC de Londres. O governador, que fez a fraude, teve que renunciar.
Tava todo mundo contra aquilo, tinha gente avançando contra o Palácio do
Governo, jogando pedras, teve tiro. Foi meu batismo político. Aí me chamaram e
me pediram pra que eu me candidatasse. E eu falei que não queria ser
político...
[19]
Ziraldo -
Você hoje seria o SARNEY...
Gullar - Eu era sempre insatisfeito com essa
confusão geral no Brasil, mas não queria me meter com comunistas, por causa
daquele artigo que eu tinha lido no jornal.
[20]
Camila -
Mas um dado curioso é que você acabou entrando para o Partido Comunista, e a
data de sua filiação é 1o de abril de 64!
Gullar - É, foi um caminho longo. Quando eu
estava no suplemento dominical do Jornal do Brasil, Jânio Quadros foi eleito e
o José Aparecido, junto com o Carlos Castelo Branco, me convidam para trabalhar
em Brasília na Fundação Cultural, que naquela época era um acampamento. Nêgo
vivia tudo coberto de poeira vermelha. Eu dizia: "Esse lugar aqui tá muito
atrás do Rio de Janeiro, nós estamos voltando no tempo!" Aí me emprestam um livro chamado La
Pensée de Karl Marx, escrito por um padre. Comecei a ler a primeira parte toda,
que expunha com a maior honestidade e clareza o que era o marxismo. A segunda
parte do livro queria demonstrar por que padre não pode ser comunista. Como eu
não era padre, não li a segunda parte e me tornei marxista.
[21]
Marcelo - A
filiação em 1º de abril é mera coincidência?
Gullar - Não, claro que não. Em Brasília, eu
virei marxista, não era comunista. Por que eu gostei do pensamento de Marx?
Porque era uma coisa concreta. Quando eu entrei em crise com a poesia, comecei
a ler filosofia. Li desde os pré-socráticos, Platão, Aristóteles. E ia
concordando com todos eles. Lia, concordava. Lia, concordava. Os caras são
inteligentes pra caralho, era um contra o outro, e eu concordando, inteiramente
perdido. Quando eu li Marx, vi uma coisa concreta, densa, real. Não era aquele
negócio lá das idéias, da verdade, "o
verdadeiro piano não é o piano, é a idéia do piano..." Quando eu estava lá em Moscou,
fazendo curso de bacharelado em subversão, conheci um operário a quem deram um
livro do Lênin sobre o idealismo filosófico, e ele dizia assim: "Mas o Lênin vai discutir esse
negócio pra quê? Se ele fosse operário, ia ver que isso não tem discussão. Se você
mete o dedo num torno mecânico, ele sai fora, porra!" Mas por que eu tô falando isso?
[22]
Camila -
61, Brasília...
Gullar - Ah, sim. Eu virei marxista por causa
dessa concretude, e também pelo elogio do trabalho. Eu achava que o trabalho é
uma coisa fundamental. O elogio do trabalho, do homem que muda o mundo pelo
trabalho é uma coisa fundamental, também.
[24]
Camila - O
Museu de Arte Popular nasce nessa época, em Brasília?
Gullar - Eu achava que Brasília era a junção do
que havia de mais moderno e de mais antigo no Brasil. O mais moderno era o
urbanismo e a arquitetura; e o mais antigo era a mão-de-obra do nordestino,
candango. Então pensei em fazer arte de vanguarda e arte popular, essa foi a
minha idéia. A filosofia da Fundação Cultural era essa, trabalhar nessas duas
linhas. A arte de vanguarda eu consegui fazer, mas o ateliê de arte popular
não. Sabe por quê? Porque os operários começavam a trabalhar às seis da manhã,
moravam em cidade-satélite e não tinham tempo pra nada. Depois que o Jânio renunciou,
eu voltei pro Rio. Estava sendo criado o Centro de Cultura Popular (CPC) da
UNE, pelo Vianninha. O Leon Hirschman já tinha me contatado em Brasília pra eu
conseguir dinheiro pro CPC. Quando cheguei ao Rio, a Thereza Aragão, minha
mulher, já estava trabalhando no CPC. Vianninha foi lá em casa e me pediu pra
fazer um poema de cordel pra servir de estrutura pruma peça sobre reforma
agrária. E aí eu escrevi João
Boa Morte, Cabra Marcado pra Morrer. A peça nunca foi escrita.
[25]
Ziraldo - E
aí você abandonou toda a sua poesia sofisticada, sua estrutura...
Gullar - Que já entrava em crise. É tudo
ligado, não há nenhum altruísmo, idealismo. Como a minha poesia de vanguarda
estava em crise, surge um Brasil da luta pela reforma. Aí eu tô em Brasília,
leio Marx, junta tudo. Eu digo assim: "Agora
eu vou virar brasileiro". Comecei a ler sobre o Brasil.
[26] Ziraldo - Você explica tudo.
Gullar - Eu explico. Vivo pensando. O pessoal
me apelidava de 'profissional do pensamento'.
[27]
Ziraldo - A
poesia continua perpassando sua vida toda, não te abandona nunca.
Gullar - Eu sou poeta. Faço todas as outras
coisas, mas a coisa que eu sou é poeta. E eu tô sempre em crise, não tenho
projeto de vida nem de obra.
[28]
Lena -
Qual foi o poema que marcou essa virada?
Gullar - Qual virada? Qual delas?
[29]
Ziraldo -
Foi João Boa Morte!
Gullar - João Boa Morte não é poesia, é cordel.
Eu entrei num impasse, porque eu fui um dos mais audaciosos poetas de
vanguarda. Eu cheguei a fazer um Poema Enterrado, um poema que é uma sala. Não
existe, na literatura mundial, nenhum poema louco como esse. Era o
neoconcretismo. O Poema Enterrado é uma arquitetura, uma sala de 3m2 pra conter
uma só palavra, 'Rejuvenesça'. O cara descia, num túmulo, tirava uma caixa,
tirava outra caixa, e outra, e no fim lia a palavra 'Rejuvenesça'. Muita
sacanagem! Quando eu vi isso, eu tomei um susto. Pensei assim: "Onde é que eu vou parar? Não
sou arquiteto, não sou escultor, não sou artista plástico. Eu vou parar, por
aqui não dá pra continuar".
[30]
Caco -
Você achava que já estava nos limites da poesia?
Gullar - É. Eu pensava assim: "Isso tá tudo
interessante, mas não dá pra ir adiante, porque eu não vou virar agora artista
plástico ou arquiteto". E entrei em crise. Minha vida toda é isso.
Veja A Luta Corporal: eu vou até explodir os poemas. Explodo os poemas e entro
em crise, não sinto mais prazer. Aí entra a poesia concreta e neoconcreta. Eu
vou até o Poema Enterrado e entro em crise, não sei mais o que fazer. Aí viro
revolucionário. E não tô mais fazendo literatura, não é mais a minha
preocupação. Eu quero fazer a revolução. Eu quero usar a literatura para fazer
a revolução. A qualidade literária não é o que está me interessando ali. E o
CPC dizia claramente isso: "Estamos
usando o teatro, a poesia, para fazer a revolução", como instrumento.
É claro que havia um erro, aí. E qual era? É que nós nem fizemos a revolução,
nem fizemos literatura.
[31]
Marcelo -
Você ainda não contou por que sua filiação ao Partido Comunista se deu em 1º de
abril.
Gullar - Eu estava no CPC, e aí veio o golpe,
dia 31 de março. Nós estávamos na UNE. Quando foi lá pra meia-noite e pouco, um
grupo foi dormir e outro ficou. Eu saí, pra dormir. Quando acordei, às dez da
manhã, o noticiário já era do golpe. Chegamos na Cinelândia, e os tanques já
estavam ocupando a praça. Quando chegamos na Praia do Flamengo, estavam tocando
fogo na UNE, jogando coquetel molotov. Ficamos presos ali na confusão, com medo
de ser descobertos. Quando foi à noite, fomos pra casa do Carlinhos Lyra, onde
tinha uma reunião. Nessa reunião, eu disse: "Antes
de começar a reunião, eu quero dizer que o Partido me considere seu membro, a
partir de hoje".
[32]
Camila - E
aí vem o grupo Opinião.
Gullar - O Opinião vem em seguida, formado
pelos antigos membros do CPC, que foi dissolvido. Nós tínhamos que continuar
brigando, mas não podíamos aparecer com a cara do CPC, um CPC-2. Tinha
inquérito policial em cima. O Vianninha teve a idéia de fazer o show Opinião, a
partir do disco que a Nara Leão tinha gravado. Muita gente até hoje pensa que o
disco dela foi resultado do show, mas é anterior. Foi ouvindo o disco que o
Vianninha teve a idéia do teatro. Por causa disso, nasceu o Teatro de Arena.
[33]
Poerner -
Foi o primeiro movimento de resistência cultural à ditadura.
Gullar - Foi, foi. Os primeiros comícios e atos
públicos contra a ditadura aconteceram dentro daquele teatro. Depois do Opinião
vem Liberdade, Liberdade, montagem de textos feita pelo Flávio Rangel e Millôr
Fernandes. Era muito engraçada e enfrenta a censura, porque citava Platão,
Aristóteles e Voltaire, ninguém tinha o que dizer. A peça misturava tudo, era
um panorama das idéias contra e a favor da liberdade. A terceira peça foi o
Bicho [Se Correr o Bicho Pega, se Ficar o Bicho Come], feita deliberadamente
pra burlar a censura, pra vencer a censura. Pensamos: "Essa peça tem que ser
engraçada, brilhante e muito bem escrita, uma obra literária, pra poder
impressionar os caras e eles não quererem nem tocar nela". Por isso,
caprichamos. A peça foi escrita em verso, Vianninha fez a primeira versão e eu
a final.
[34]
Ziraldo -
Você participou daquela opereta do Carlinhos Lyra... Como é que chamava?
Gullar - Auto dos 99%. Não, não participei.
Sabe o que quer dizer esse título? É que só 1% entra nas universidades, então
99% estão fora. Este é o Auto dos 99%. Uma das músicas da peça é a Canção do
Subdesenvolvido. Aquele disco é uma obra-prima, cara. O produtor artístico era
o Armando Costa, que fez uma coisa belíssima.
[35]
Poerner -
Quando é que você viu esgotadas as possibilidades da luta cultural e teve que
se exilar?
Gullar - Em dezembro de 68, com o Ato
Institucional, fechou tudo. Mas a razão do meu exílio é outra. Primeiro: em 69
houve uma convenção do Partido e, contra a minha vontade, me elegeram para a
direção estadual. Havia uma luta interna, no Partido, entre a posição moderada,
que era a minha, e a posição da luta armada, do Mário Alves e do Marighela. Uma
das formas de ganhar essa disputa era eu ser candidato e integrar a chapa.
Resultado: passei a ser dirigente do Partido, sem nunca ter dirigido nada, sem
ter participado de uma reunião. Eu dizia: "Cara,
isso é um risco pra vocês e pra mim. Eu sou um cara legal, tô trabalhando na
imprensa, todo mundo me conhece. Isso vai dar uma cagada". Prevalece,
como se sabe, a contingência política. Quando caiu um companheiro nosso, do
comitê cultural, foi torturado e abriu a boca, denunciou todos os membros. O
Partido me chamou: "Escuta,
Dias Gomes é só intelectual, Alex Viana é só intelectual. Mas você, não, você é
da direção. Vão te torturar até te matar. E você não sabe de nada, não vai
poder dizer nada". Aí eu fui primeiro pra clandestinidade. Um ano
clandestino, aqui mesmo. Fiquei oito meses num quarto, na casa do Léo Vitor, só
saindo de noite pra ver televisão.
[36]
Marcelo -
Quem sabia que você estava lá?
Gullar - Ele e o resto da cidade. O Léo só
tinha um quarto, e mesmo assim me deu abrigo. Ele era um ser humano formidável,
quero prestar minha homenagem a ele. A ele e a pessoas que ninguém conhece, do
Partido, pessoas raras, seres humanos formidáveis que não vão estar em qualquer
panteão. Eu fiquei no escritório do Léo. Durante esse período, trabalhei na
enciclopédia do Houaiss. Um dia, a empregada vem e diz: "Olha, seu Gullar, o seu Léo
tá muito mal, e precisamos chamar a família, pra tomar conta dele". Aí
desce um médico, que morava em cima. Bate na minha porta, chamando meu nome. Eu
pergunto: "Ué, você sabe
que eu tô aqui?" E ele
diz: "Sei. Desde o dia seguinte.
A empregada do Léo sabia, contou pra minha empregada".
[37]
Marcelo -
Você sabe se estava sendo procurado, mesmo?
Gullar - Claro. Foram à minha casa, prenderam a
Thereza, colocaram dentro de um carro, ameaçaram... O pior é que o radicalismo
da minha procura coincidiu com o seguinte: eu me chamo José Ribamar Ferreira,
como outros trezentos mil maranhenses. Tinha um José Ribamar Ferreira que fazia
parte da luta armada no campo. E aí juntaram os dois, fiquei misturado com o
cara. Quando foram lá prender a Thereza, estavam certos de que iam encontrar
armas e o cacete. Quando começaram a fazer perguntas, ela desconfiou de alguma
coisa: "Acho que vocês
estão falando de outra pessoa. Meu marido é escritor, jornalista..." E soltaram ela. O fim dessa história é
engraçado. Muito mais tarde, depois de eu voltar do exílio, chamei meu advogado
e disse: "Vai lá no
Superior Tribunal Militar e tira um certificado de que eu estou absolvido".
Ele foi e trouxe o certificado: "Está
absolvido José Ribamar Ferreira, filho de Antonio não sei o quê..." Não eram nem meu pai nem minha mãe! Eu
fui perseguido e ele foi absolvido!
[38]
Ziraldo - E
como é que você foi parar na Argentina?
Gullar - Isso é outra história. Da casa do Léo,
fui pra casa da Ceres Feijó, que morava na Tonelero. Mas tinha visita que não
acabava mais, pra família, e eu vivia me escondendo no quarto. Resolvi ir
embora e fui pra Moscou. Botei um bigode, óculos escuros, fui levado de carro
pelo Renato Guimarães pra São Paulo, de lá peguei um ônibus até Porto Alegre e
de lá, depois de raspar os bigodes, fui passado pro outro lado, pro Uruguai. De
lá pra Buenos Aires e depois pra Paris, porque não se ia direto pra Moscou,
naquela época. De paris, finalmente pra Moscou. Fiquei quase dois anos lá, fiz
o curso na escola marxista-leninista.
[39]
Camila -
Moscou, Santiago, Lima...
Gullar - É, e depois Buenos Aires. Quase sete
anos de exílio.
[40]
Ziraldo -
Você escreveu pro Pasquim, nessa época, com um pseudônimo.
Gullar [rindo muito, divertido] - Ah, que
pseudônimo mais filha da puta: Frederico Marques! Mistura de Frederic Engels e
Karl Marx. A gente tava sempre sacaneando os milicos.
[41]
Lena -
Nessa época toda de exílio você teve algum apoio de jornal...?
Gullar - O Estadão nunca me demitiu. Reduziu
meu salário de redator, mas pagou religiosamente todo mês. E eu não trabalhava.
Quando cheguei no Chile, falei com eles: "A
situação aqui tá interessante, posso fazer algumas matérias". E eles: "Não, não, pelo amor de Deus,
não queremos nada, não manda nada!"
[42]
Ziraldo -
Vamos falar do Prêmio Nobel, Gullar. Eu acho que, se é indicado pelo seu país,
para o país já é. Você é o nosso Prêmio Nobel de Literatura.
Gullar - Tenho muitos amigos que gostam de mim,
mas não sou muito premiado. Isso começou a acontecer recentemente. O Prêmio
Jabuti, por exemplo. Tenho uns dez amigos que já ganharam, e eu só fui receber
no ano retrasado. Mas não tô reclamando não. Eu sou muito rebelde demais, não
puxo o saco de ninguém, não faço política literária... É claro que o moleque da
Rua da Alegria jamais sonhou com uma coisa dessa. É um disparate. Jamais me
passou, mesmo naqueles momentos em que a gente fica meio megalomaníaco, jamais
me passou uma coisa dessa pela cabeça. Prêmio Nobel pra mim é Faulkner.
[43]
Lena -
Mas você gosta da idéia?
Gullar - Eu acho dificílimo isso acontecer. Mas
não posso, diante das pessoas que se mobilizaram pra me indicar, assumir uma
atitude blasé. É uma coisa importante pro país. Eles pensaram, segundo eles
próprios disseram, que o país já deveria ter ganhado esse prêmio. E pela
primeira vez vamos entrar nessa disputa profissionalmente. Porra, um cara como
Jorge Amado não ter ganhado o prêmio? Sacanagem! Mas, segundo me falaram, a
indicação foi feita amadoristicamente, mandaram uma carta pra lá e pronto. Você
tem que oferecer aos caras que vão julgar os dados, as informações, os meios de
chegar à obra, tá entendendo?
[44]
Caco -
Este ano estão sendo relançados dois ensaios teus, de mais de 30 anos, que são
o Cultura Posta em Questão e o Vanguarda e Subdesenvolvimento. Qual é a
motivação para este relançamento? Os ensaios ainda são atuais, foram
atualizados?
Gullar - A editora José Olympio propôs reeditar
o livro, não foi iniciativa minha. Eu escrevi um prefácio crítico sobre os dois
livros, comentando sobre o que eu discordo e concordo nessas obras. Meu
pensamento mudou, e eu tinha que dizer isso.
[45]
Reynaldo -
Você poderia, aproveitando o relançamento desses ensaios, fazer um balanço, pra
gente, do modernismo e suas implicações?
Gullar - Eu sou muito simpático ao modernismo.
Foi um movimento decisivo para o processo cultural e artístico do Brasil.
[46]
Reynaldo -
Você não acha que pode ter havido, num determinado momento, uma
supervalorização da Semana em si, em detrimento do movimento?
Gullar - Sim, claro. A Semana é só um ato, o
manifesto, a maneira que os caras tiveram de anunciar o que estava acontecendo.
O importante é a ruptura com formas e valores do passado e a abertura do Brasil
para a experimentação e o reencontro de si mesmo. É uma característica que não
é comum nas vanguardas européias, a valorização do nacional. A partir daí você
tem, em todos os campos artísticos e mesmo na sociologia e história, obras
fantásticas. Nessa minha teoria da reinvenção onde a gente se reinventa, os
povos também se reinventam, e nisso os artistas e intelectuais têm um papel
muito importante.
[48]
Marcelo -
Você acha que, de 1960 pra cá, a sociedade está evoluindo? Melhorou?
Gullar - Melhorou. É só você ir ao interior do
Maranhão e você vê. Tem muita miséria, ainda, longe de mim ignorar isso. Mas
tem mais estradas, mais escolas. Não podemos fazer avançar se nós negamos tudo.
Tem que distinguir entre o interesse partidário e o país, senão nós entramos
num beco sem saída. Se o partido está a fim de defender o seu interesse
partidário e negar tudo o mais em função desse interesse, onde é que vamos
chegar? Verificar que há 50 milhões de miseráveis, abaixo da linha da pobreza,
é uma vergonha. Mas é preciso verificar também que, em vez de atacar o governo,
seja esse ou qualquer outro, precisamos atacar as classes dominantes, cara,
atacar o capitalismo. Tem que mostrar quem é que rouba, quem é que fica com o
pão que a gente não come.
[49]
Camila - O
que seria um projeto popular para o Brasil? Você, como Periquito do Maranhão,
CPC da UNE, Museu de Arte Popular, dizendo que temos que acabar com a elite
dominante...
Gullar - Não, eu não falei que temos que acabar
com a elite dominante. Eu não acredito nessas coisas, isso tudo é sonho de
juventude. Temos mais de um século de luta contra as classes dominantes e não
acabamos com ela. Quem acabou fomos nós, o que acabou foi o socialismo. Não é
por aí. Radicalismo acaba chegando em Bin Laden. Quem admite a complexidade do
real não é sectário. Só é sectário quem simplifica a realidade. É uma ilusão
ficar querendo soluções imediatas, é coisa que já passou. O século 19 gerou
esse sonho maravilhoso, que não deu certo.
[50]
Caco - E
a poesia, hoje? Qual é o papel da poesia numa sociedade cada vez mais
imediatista, capitalista, consumista, pessimista?
Gullar [cantarolando] - Mais que nunca é
preciso cantar... [gargalha de perder o ar] É exatamente isso! Nós estamos
enfrentando um processo de banalização de tudo, de falsos valores, onde a venda
é que vale como medida, e isso acaba entrando no campo cultural, dos livros,
das editoras. É um processo onde a coisa que vende é o valor. Quanto mais
materialista é a sociedade, quanto mais consumista ela é, mais necessária é a
poesia. Os poetas se juntam em suas pequenas editoras, publicam seus livros
isoladamente, em tiragens pequenininhas, e tal, e essa é a resposta. Sair do
mercado, do sistema. O homem inventa maneiras de se safar, porque o que
interessa pra ele é o afeto, a imaginação, a beleza. O cara vai buscar onde tem
ar.
[51]
Poerner - Já
entrevistei você quando era presidente do Museu da Imagem e do Som, num
trabalho que virou até livro. E hoje, entrevistando você novamente, vejo que
ainda não falamos de uma coisa fundamental: a atividade de crítico de arte.
Você tem uma crítica contundente à impostura e à charlatanice nas artes
plásticas, e parece meio pessimista quanto ao futuro.
Reynaldo - Eu
formulei uma questão parecida. Como distinguir o que tem valor estético nas
diversas manifestações da arte contemporânea? O que é arte e o que é impostura?
Gullar-
Isso é uma coisa muito delicada. Eu não considero que a vanguarda, desde o seu
início até hoje, seja charlatanismo. Nunca disse isso. Trata-se de um processo
legítimo, historicamente determinado, com causas, com limitações. Não é uma
coisa que alguém inventou de sacanagem. Foi determinada pelo curso dos
acontecimentos, pela dialética interna da arte e pela sociedade. O que eu digo
é que esse processo se esgotou, como todo processo. O barroco se esgotou, o
neoclassicismo se esgotou, o romantismo se esgotou. Esse processo, que se chama
vanguarda, se esgotou.
O
processo que deu origem à vanguarda, o questionamento das linguagens artísticas
existentes, gerou uma experiência nova na arte, dimensões novas da percepção e
da experiência estética. Só que, exatamente porque produziu o que produziu,
esgotou-se. Mas algo continua sendo feito, a decorrência natural de um processo
onde não há mais indagação, nem descobertas. Não há mais nada, só a
academização da vanguarda. Fazer uma exposição de urinol é repetir o Duchamps
de 1917. Uma coisa é a linguagem da poesia ou do romance, que é uma linguagem
que diz coisas que não são ela, é veículo. Mas quando a linguagem se torna seu
próprio conteúdo, ela vai ao extermínio, não tem saída. Quando a própria
linguagem só fala dela, vai variando suas possibilidades.
Mas
toda forma tem limites de variação. Chega numa hora em que, por ser uma coisa
autofágica, chega ao seu limite. Tem séculos de pintura falando da vida,
mostrando paisagem, o ser humano, mitologia, a pintura falando das coisas. Mas
quando a pintura só fala da pintura, ela vai, vai, vai e só tende a se esgotar.
Chegou nesse ponto, e isto se deu muito mais cedo do que se pensa. O Duchamps é
um artista que encarna de maneira radical o mais radical dos movimentos de
vanguarda, o dadaísmo. O cubismo não tem teoria, propõe coisas. Mas ele coloca
uma questão: a inversão da relação entre a linguagem e a natureza.
Cézanne,
grande pintor revolucionário e que anuncia o cubismo, diz: "Sem a natureza, não existe
pintura". Mas o cubismo, que nasce dele, inverte a relação. Não parte
da natureza, parte da tela. Juan Gris diz: "Cézanne,
de uma garrafa, fazia um cilindro; eu, de um cilindro, faço uma garrafa".
Aí vem o futurismo, o expressionismo, e o dadaísmo (que não tem o que quebrar,
porque já tá tudo quebrado) vem e diz: "Ser
dada é ser anti-dada". Entra na tautologia, não tem mais saída.
Duchamps diz: "Valor
estético é hábito". E propõe a anti-arte. Quando você faz isso,
torna-se contra a arte, contra você mesmo. Não é por acaso que Duchamps só tem
duas obras que ele nem terminou! Ele é um artista inteligente e talentoso, mas
ratté, pelo radicalismo que se impôs.
Ele
adota uma atitude que não dá saída pra ele. Enquanto fica criando cálculos
artificiais e malucos pra fazer uma arte sem emoção, Picasso está em seu
ateliê, alucinado, fazendo pintura, cerâmica, litogravuras, criando sem parar.
Um verdadeiro artista. O segredo de Duchamps, do ready-made, é deslocar um
objeto de sua função. Isso não tem saída. Eu me ajoelharia e beijaria os pés do
artista que reinventasse a arte amanhã, que fizesse uma coisa maravilhosa que
me deslumbrasse. Eu vivo me deslumbrando.
[52]
Caco -
Você é otimista quanto a possibilidades de reinvenção?
Gullar - Vou colocar uma questão pra você,
antes. Todas as artes entraram na vanguarda, todas. A pintura, a escultura, a
arquitetura, a música, a literatura. Mas todas, em um certo momento, pararam,
repensaram, retornaram ao seu leito, incorporaram as conquistas da vanguarda e
recomeçaram. Agora, vamos imaginar Finnegans Wake, o limite da experiência
vanguardista da linguagem narrativa. A continuação de Finnegans Wake seria o
quê? Simplesmente, se fosse por aí, não teríamos Faulkner, Camus, Hemingway,
Guimarães Rosa, Graciliano... Não teríamos toda a ficção italiana moderna, não
teríamos mais nada. Então por que, nas artes plásticas, isso continua?
[53]
Reynaldo - Aí
entramos no problema do mercado...
Gullar - Ah, você respondeu. A resposta é essa.
A resposta está fora da arte.
[54]
Ziraldo - O
que você acha hoje da práxis comunista, da experiência soviética, da Albânia,
da África? A experiência comunista foi um fiasco?
Gullar - Sou um profissional do pensamento,
como você sabe, e vivo pensando. Eu vou desenvolver aqui a minha tese. O
capitalismo é uma força da natureza, não foi planejado, nasceu do processo
econômico e social natural. Como a natureza, ele é destituído de ética, de
escrúpulo, não tem bem nem mal. O negócio dele é "vamos pra frente", o
mais forte vence. O problema é produzir e lucrar. Ao mesmo tempo é fecundo e
criativo, como a natureza, e injusto e cruel, como a natureza. E o que é o
socialismo? É a intervenção do ser humano nesse processo: "Vamos regular e
estabelecer a ética do trabalho, a divisão, a igualdade". Em vez de o
rio ficar transbordando e inundando tudo, matando milhares de animais, a partir
de agora ele vai caminhar dentro do quadro e produzir energia elétrica, domado.
Essa
que é a proposta: canalizar o rio. O problema aí é o seguinte: em tudo, não só
na política, a coisa mais difícil é domar o processo da vida, que excede a
qualquer teoria e qualquer possibilidade de normalização. A proposta é
extraordinária, mas está acima da possibilidade humana. O que aconteceu? No
momento em que você detém esse processo e tenta regularizá-lo, você o
empobrece.
Na
anarquia capitalista, o Bill Gates, num fundo de garagem, constrói aquela porra
daquele negócio e vira esse troço. Jamais aconteceria na União Soviética uma
coisa dessa. Mas quando se regula e se impõe disciplina, aí se reduz a criatividade.
Ao mesmo tempo que se cria mais justiça, mais igualdade, tem a contrapartida.
Se eu enrijeço a poesia, faço uma poesia mais perfeita do ponto de vista
formal, mas mais pobre do ponto de vista da emoção e do sentimento. Não tem
saída. Sempre é assim.
O
capitalismo é emocional e filho da puta, o socialismo é racional. Eu não
acredito que uma conspiração acabou com o socialismo, que o Gorbachov é
responsável por isso. Acho isso uma sacanagem. É como chamar um médico prum
paciente que tá morrendo e depois dizer: "Foi
você que o matou". Sacanagem. Na União Soviética, você tinha
conquistas extraordinárias. Uma sociedade onde ninguém passa fome é uma
conquista, uma sociedade onde todo mundo estuda, sem exceção, e ainda se paga
pro cara fazer curso superior, onde todo mundo tem assistência médica e férias!
Houve todas essas conquistas do ponto de vista do humanismo, da solidariedade,
da realização humana. Mas aí entram os outros problemas, do próprio processo
econômico.
[55]
Reynaldo -
Você não acha que foram também os custos da corrida armamentista?
Gullar - Foi o golpe de misericórdia. Mas já
havia o problema da defasagem tecnológica, essa diferença enorme, inclusive
orientada para a pesquisa na área militar, em detrimento de outras áreas, por
causa do próprio arrocho em que viviam. E tinha outros problemas. Eu me lembro
de uma piada que corria lá na União Soviética quando Bangladesh se libertou. O
pessoal falava: "Caceta,
vamos ter que sustentar mais um!" O
meu pensamento é o seguinte: o fato de o socialismo ter fracassado não torna o
capitalismo bom. Ele ganhou a parada, por razões táticas, mas continua a ser
criador de desigualdades, concentrador de riquezas, injusto, desumano.
Eu
não vejo, em curto prazo, uma solução socialista. O socialismo foi uma utopia
que incendiou a imaginação das pessoas do final do século 19 até aqui, até o
Muro de Berlim. Achar que isso vai de novo retornar com o mesmo ímpeto? Não
vai, a vida não é assim. Isso me lembra do dia em que Allende foi derrotado e
um amigo meu me disse assim: "Gullar,
é agora que vamos ganhar!" Porra!
A gente tinha o Exército, a Marinha, a Aeronáutica, o Governo, a Presidência da
República e não ganhamos.
"É
agora que vamos ganhar?" Eu
não me iludo. A utopia do socialismo não vai incendiar ninguém. Mas a
necessidade da justiça na sociedade é irredutível. O ser humano não é justo na
sua totalidade, mas a justiça não nasce no mato. O homem inventou a justiça
como ideal, inventou o bem, a virtude, a ética, todos esses valores. Inventou o
que nós queremos ser. Nós queremos ser melhores do que nós somos. Então, com a
derrota do socialismo, o homem vai parar de lutar por uma sociedade mais justa?
Não vai e tá provado que não vai, cara! O homem não vive sem ideal, e o
capitalismo não oferece nada, só consumismo e lucro, só ambição, é uma coisa
estreita. Nunca houve revolução comunista em parte alguma do mundo, nem na
União Soviética. Nunca houve. Tem que acabar com isso, botar o pé no chão. Ser
a favor de uma sociedade justa, sim, tem que lutar por isso. A gente não
resolve os problemas de nossa vida, de nossa família, dentro de casa. Imagina
os problemas de um país. Temos que ser mais modestos, baixar a crista. Esse é
que é o problema. Tem que ter paciência. Kafka diz: "O homem perdeu o paraíso pela
impaciência".
[56]
Marcelo -
Mas não houve um certo período de anestesia em todo o mundo, em que dissemos: "Fudeu, não tem mais
saída?"
Gullar - O Saramago ficou zangado comigo, por
causa de um debate. Ele fez uma intervenção como essa, de que o capitalismo
tomou conta de tudo, que somos manejados até o cartão de crédito, e tal, e que
não tem saída. Como aquilo era um debate, com o maior respeito que tenho por
ele, pedi a palavra e contei uma história. Vocês conhecem a experiência do cão
de Pavlov? Toca a sineta, dá comida pro cachorro; toca a sineta, comida; toca a
sineta, não dá comida e o cão saliva do mesmo jeito. Mas como é que terminou a
experiência? Alguém sabe? Pouca gente sabe. Na vigésima vez que tocaram a
sineta e não deram comida, o cachorro vomitou e se descondicionou! É assim que
termina! Vomitou! Descondicionou! Eu citei isso lá e fui aplaudido, porque há
esperança. Se o cachorro se descondiciona, não dá pra acreditar que alguma
forma na sociedade vai ser condicionada de tal maneira que não possa se descondicionar.
O homem procura o que é melhor e vai buscar. Não dá pra acreditar que a
humanidade vai trabalhar contra ela mesma a vida toda.
[57]
Marcelo -
Você acha que nós já estamos nos descondicionando?
Gullar - Acho que é impossível que a sociedade
seja condicionada integralmente. A realidade se impõe, é a própria vida. A
necessidade de justiça é uma coisa inalienável do ser humano, porque dá sentido
à vida. Vou aproveitar pra dizer uma coisa a vocês: acho que o homem é uma
invenção dele mesmo. Nós não somos natureza, embora tenhamos uma base natural.
Nós inventamos tudo: Deus, a cidade, o teatro. Vivemos num mundo cultural. A
própria natureza em que vivemos é cultural, modificada. O homem inventou o
universo em que vive. Então, não tem sentido ser pessimista. Não tem sentido o
cara ficar chorando... Não tem sentido? Inventa, caralho! A vida não tem
sentido mesmo! E nós inventamos todo dia um sentido pra ela. Nossa aventura é
essa, nos reinventar a nós mesmos.
[58]
Ziraldo - Eu
sou da sua geração, convivi com toda essa gente de nossa geração. Sarney deve
ser o melhor amigo do ZÉ APARECIDO do lado de lá, e eu devo ser o melhor amigo
dele do lado de cá. Mas eu não consigo entender como é que o SARNEY, com a
sensibilidade de poeta, aceitou ficar rico como ficou, dominar todos os meios
de comunicação do estado, se associar às piores pessoas da história do
Maranhão. Como é que você pode, você que sofreu tanto por querer um país
melhor, ir à televisão e dizer que a ROSEANA é do caralho? Como você explica
isso?
Ferreira - Eu
sou desligado do Maranhão, não conheço muitas coisas que você citou. Que
ele tem um jornal, sei que tem. Que ele exerceu poder no maranhão, sei que
exerceu. Mas sei muitas coisas a favor dele, como o fato de ele ter colocado
amigos nossos, comunistas, dentro do seu governo. O que eu sei da Roseana
também é pouco, não vivo em contato com o que acontece no Maranhão. Estive lá para a inauguração da Avenida
Ferreira Gullar, e o povo avançava rompendo o cordão de proteção para
abraçá-la, beijá-la, colocar o filho pra ela beijar, um negócio delirante. Não
vi ninguém chegar pra mim, lá, dizendo que o governo dela é uma merda.
Ela
fez o primeiro governo e no segundo teve 87% de aprovação. Eu acho que é muito
difícil fazer política sem sujar as mãos, por isso mesmo nunca me meti nisso. O
Lula não tá agora querendo fazer acordo com o PL, que tem junto dele o bispo
Macedo, que é um picareta mundial? É uma contingência muito difícil. O PT está
isolado dentro da esquerda. Se não fizer aliança com ninguém, perde a eleição.
Se correr o bicho pega.
Não
é uma coisa meramente moral de dizer que "o
Lula é um escroto". Política conduz a essas coisas, é um jogo. Isso
com o PT, que é um partido exemplar dentro da política brasileira. Imagina o
que é o político individual, sem uma estrutura ideológica dessas, fazendo
política dentro do Maranhão? É difícil.
O
que eu disse da Roseana é o que eu penso. Eu disse simplesmente o seguinte: "Ela é uma pessoa que realiza
um governo aprovado pelo povo do Maranhão e que pertence a uma nova geração de
políticos que não aceita mais esse Brasil da corrupção e da safadeza".
Mas eu não disse que vou votar na Roseana.
[59]Marcelo - Você já sabe em quem votar?
Gullar - Não.
Pra
não dizer que não falamos de POEMA SUJO
Há
quem vá reparar, certamente, que nesta entrevista não se falou no "mais
importante poema brasileiro da década", como o definiu Vinícius de Moraes,
o "poema nacional", como o consagrou Otto Maria Carpeaux. O
Poema Sujo, épico, onomatopaico, espacial e vertical, maranhense e
nacional, em suas cem páginas (ou, por outra, em sua página única), cuja
primeira edição data de 1976, expressa a vida do poeta, transmutando-a em
cuspe, urina, apodrecimento e carniça. As bananas apodrecem (não do mesmo modo
que uma pêra ou que um rio), e são variados os modos como uma coisa está em
outras. Essa seria a lição do poema, se o poema se propusesse a ensinar lições.
Na verdade, o poema é um convite:
Voas
comigo
Sobre
continentes e mares
E
também rastejais comigo
Pelos
túneis das noites clandestinas
Sob
o céu constelado do país
Entre
fulgor e lepra
Debaixo
de lençóis de lama e terror
Vos
esgueirais comigo, mesas velhas,
Armários
obsoletos gavetas perfumadas do passado,
Dobrais
comigo as esquinas do susto
E
esperais esperais
Que
o sai venha
Há,
no entanto, quem nem tenha reparado que não falamos no Poema Sujo. Há até mesmo
quem jamais o tenha lido. Nesse caso, só nos resta fazer nossas as palavras do
próprio poema:
"quanta
coisa se perde nesta vida". (Caco X.)
Cidades
imaginárias
[60]
Ziraldo - Eu queria contar para as pessoas
(pouca gente conhece) sobre as CIDADES IMAGINÁRIAS que você cria. Queria que
você escolhesse uma dentre elas, pra publicar junto com sua entrevista.
[Explicando pra todos] O Gullar criou uma porrada de cidades, e conta a
história delas como se elas realmente existissem. Mas parece que as pessoas
ainda não descobriram isso.
Gullar - Claro, claro. Eu sou poeta, e quando
publico livro de poesia, ficam todos em volta. Mas se eu publico crônicas,
ninguém dá importância. Modéstia à parte, o meu livro de crônicas é muito
engraçado.
Caricaturas
[61]
Ziraldo -
Você sabia que você é uma das pessoas com mais ibope em salões de humor? Todo
mundo faz uma caricatura sua.
Gullar - É mesmo, rapaz? Que coisa...
Ziraldo - Confira nas páginas
desta edição.
[fim da transcrição da entrevista]
Entrevista Ferreira Gullar: 85 anos de poesia
[10set2015]
Fonte: FRONTEIRAS DO
PENSAMENTO; Jornal O GLOBO, Por -10.09.2015 | Ferreira Gullar|
[APRESENTAÇÃO]
A
poesia persegue Ferreira Gullar e
não o contrário. “Posso passar anos sem criar um verso, pois necessito do
espanto que ela me provoca para então escrever", conta o poeta, que
completa 85 anos hoje, dia 10 de setembro.
A
criação literária é apenas um dos temas tratados em sua mais recente obra, Autobiografia poética e outros
ensaios. O livro,
que reúne um ensaio inédito, entrevistas e artigos sobre poesia, é seu primeiro
pela editora Autêntica, que
lança, ainda este ano, uma nova edição de O
formigueiro (1955), em parceria com a Academia Brasileira de Letras (ABL), e prepara para 2016 uma coletânea de
textos do poeta sobre artes plásticas.
Os
85 anos do poeta não são empecilho para uma agenda lotada.
Conferencista do Fronteiras do Pensamento São Paulo no
dia 30 de setembro, Gullar é um dos destaques da Bienal do Livro do Rio de Janeiro, participando do café
literário Ferreira Gullar: poesia e prosa, no domingo, 13 de setembro [2015], às
15h.
Em
entrevista ao jornal O Globo,
Ferreira Gullar fala sobre sua obra e a importância da poesia em sua vida e na
vida das pessoas: "O acaso é decisivo não só na vida pessoal, mas também
na arte. Quando vou escrever um poema, a folha surge em branco, ainda não sei o
que vai surgir ali. Qualquer coisa pode acontecer, a probabilidade é total
porque a página está em branco." Leia abaixo:
[1]
[Como foi refletir sobre a sua história de
poeta?
Ferreira
Gullar: Jamais imaginei que me tornaria um poeta. Eu era um moleque
de rua. Vivia jogando pelada, em São Luís, na rua. Jamais pensei porque na
minha casa ninguém era poeta nem tinha livro de poesia. Acredito que as pessoas
nascem com determinadas qualidades. O cara nasce com a tendência de ser um bom
administrador. Assim como outro nasce jogador de futebol, pois traz
internamente algumas qualidades que o tornam isso. Há também quem tenha
tendência para ser ladrão, independentemente de ser rico ou pobre – a Operação
Lava Jato não me deixa mentir.
[2]
Esse DNA parece estar mais presente em você. Se pudesse viver só de poesia,
faria isso?
Ferreira
Gullar: Não. A poesia é algo incontrolável. Se alguém vive de
poesia, ou morre de fome ou começa a escrever bobagens porque não é fácil
assim. A poesia, como vejo, nasce do espanto, de alguma coisa que surpreende e
que você tem necessidade de comunicar aos outros. É uma experiência de vida
especial, não acontece todo dia. Isso é o que move o poeta a escrever. Sem
isso, é possível até manusear bem as palavras, mas o poema fica vazio. É meu caso.
Outro dia, disseram que eu garanti que não mais escreveria poesia. Nunca fiz
isso. Algumas vezes, a poesia se arrancou, se negou a comparecer e fiquei
perplexo, mas reconheci que parecia que não mais escreveria. Publiquei meu
último livro há vários anos (Em
Alguma Parte Alguma, de 2010), o que me deu a impressão de que não
vou escrever mais. Claro que não é bom. Não é escolha minha. Mas as coisas não
são eternas e, como isso não se controla, não digo que farei de qualquer jeito,
ou que não vou fazer. Só constato que faz tempo que não faço.
[3]
UB: É admirável seu rigor com a palavra. Como conjuga a emoção de fazer o poema
e ele comover ao mesmo tempo?
Ferreira
Gullar: Acredito que, se me comovo, outros também vão se comover.
Passo no poema a emoção que tive. Às vezes, a situação é mais complicada e o
poema saía menos acessível, dependendo do motivo que me levou a escrever. Minha
preocupação é chegar a dizer aquilo que foi novo na vida, que experimentei ali,
e encontrar a melhor maneira de expressar.
O
acaso é decisivo não só na vida pessoal, mas também na arte. Quando vou
escrever um poema, a folha surge em branco, ainda não sei o que vai surgir ali.
Qualquer coisa pode acontecer, a probabilidade é total porque a página está em
branco. Quando coloco a primeira palavra, reduz a probabilidade, agora já não é
o acaso. Quando se escreve o primeiro, o segundo verso, aí o poema vai deixando
de ser fruto da probabilidade e do acaso e vai se tornando necessário. Ele
próprio começa a determinar o que entra ali ou não. Você não sabe o que vai
resultar daquilo. É um jogo entre acaso e necessidade.
Cada
poeta tem seu modo de se expressar. Com isso, aumenta a segurança de se
expressar. E, com a experiência, é possível se tornar mais capaz de expressar o
que se deseja.
[4]
UB: Seu momento de vida é sempre importante na sua criação. Poema Sujo nasceu
durante uma fase muito difícil de sua vida, de quase desespero – seria uma
catarse?
Ferreira
Gullar: Há quem acredite que os poetas sofrem muito para escrever.
Não é verdade – no momento da escrita, surge uma felicidade. Escrever é uma
alquimia, pois transformo sofrimento em alegria, em beleza, em emoção que o
outro vai sentir. No Poema Sujo, eu
realmente vivia um impasse, pois não sabia o que ia acontecer comigo. Eu já
tinha saído da ditadura chilena e, na Argentina, preparavam outro golpe. Não
tinha para onde ir porque em volta só havia ditaduras e, como meu passaporte
estava vencido, não conseguia ir para a Europa. Tentei renovar na embaixada
brasileira, mas me foi negado e ainda cancelaram o que eu tinha. Então, escrevi
o Poema Sujo como se fosse a última coisa da minha vida, daí essa relação de
emoções: eu estava no limite. Isso ninguém inventa. Eu preferia não ter vivido
daquela forma, mas a vida é incontrolável. A situação era insuportável, mas o
fato de eu ser capaz de expressar aquele impasse me ajudava. O pior é aquele
que não consegue se expressar.
[5]
UB: Como é sua relação hoje com Poema Sujo?
Ferreira
Gullar: Não releio, mas essa Autobiografia
Poética foi o caminho
que encontrei para voltar àqueles momentos, desde quando publiquei A
Luta Corporal, em 1954, quando descobri a poesia moderna, até Poema
Sujo e outros poemas. Eu queria reviver aqueles momentos sem o
sofrimento daquela época, sem um general na esquina para me fuzilar.
[6]
UB: O Poema
Sujo ainda
é capaz de chocar as pessoas?
Ferreira
Gullar: Acho que emociona. Claudia
(Ahimsa, sua companheira, que conheceu em 1994) soube que foi criada uma
banda de rock chamada Poema
Sujo. Isso é legal, pois expressa a vida e beleza dentro do
sofrimento. Cada qual tem suas perdas. Então, quando a pessoa se defronta com
um poema que a comove é como se ela estivesse vivendo isso. É o melhor da
literatura: compartilhar com o autor o sofrimento, mas de forma sensorial. É a
tal alquimia: transformar sofrimento em alegria estética.
[7]
UB: Como surgiu o título do Poema
Sujo? Até parece uma contradição...
Ferreira
Gullar: Nasceu de imediato, praticamente junto com o poema. Às
vezes, escrevo um poema e não sei o título. No caso do Poema
Sujo, eu não só tinha o título como sabia que teria de 70 a 100
páginas. Escolhi esse título porque sabia que ia falar de assuntos sofridos, de
pobreza, que foi minha experiência de vida. Ele é sujo ao mesmo tempo que é
poesia e tenta superar o sujo da vida, trazendo impregnada essa experiência. Eu
não aceitava estar longe do Brasil, havia pessoas dispostas a passar anos na
Europa, mas não era o meu caso – eu queria voltar a todo custo. Assim que pude,
voltei, mesmo correndo riscos. Aí entra
o Poema Sujo, que foi
trazido ao Brasil pelo Vinicius de Moraes. A publicação me deu uma
notoriedade que, praticamente, impedia qualquer ação dos militares contra mim.
Quando cheguei ao aeroporto do Rio, havia uma ordem de prisão para José de Ribamar Ferreira, mas havia uma
multidão me esperando e não puderam fazer nada. Ou melhor: me prenderam no dia
seguinte, mas logo fui solto.
[8]
UB: Como a poesia ocupa hoje a vida das pessoas?
Ferreira
Gullar: Dizem que a arte revela a vida. Penso o contrário: a arte
inventa a vida. Hamlet só
existe na peça de Shakespeare. E existe porque, quando leio, ele renasce,
alguma coisa é acrescentada. A Noite Estrelada,
de Van Gogh, é uma noite a mais que ele acrescentou às milhares de noites que
existem no universo. A poesia não é cotidiana, como assistir à televisão. Rubem
Fonseca me disse, certa vez, que lemos um romance e esquecemos, enquanto a
poesia sempre volta. Ninguém precisa ficar lendo a poesia todo dia. Mas, quando
releio Elliot, Rilke, Drummond, me parece que estou lendo pela primeira vez,
com prazer da descoberta.
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