segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

[333] FERREIRA GULLAR: O POEMA SUJO DE UM CIDADÃO LIMPO. OUTRAS POESIAS E ENTREVISTAS. 19dez2016.


Ferreira Gullar e sua segunda esposa e companheira desde 1994, a poetisa CLAUDIA SAHIN.
FERREIRA GULLAR

José de Ribamar Ferreira.

Nasceu em São Luís do Maranhão, em 10 de setembro de 1930.

Faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 04 de dezembro de 2016, aos 86 anos.

Décimo primeiro maranhense a ingressar na ABL, em 05dez2014.

 

 

 



Seleta Poética:

Seleção de alguns dos meus poemas preferidos

 

Ferreira Gullar [Poemas]

 




[1] Ferreira Gullar – Extravio



Onde começo, onde acabo,
se o que está fora está dentro
como num círculo cuja
periferia é o centro?
Estou disperso nas coisas,
nas pessoas, nas gavetas:
de repente encontro ali
partes de mim: risos, vértebras.
Estou desfeito nas nuvens:
vejo do alto a cidade
e em cada esquina um menino,
que sou eu mesmo, a chamar-me.
Extraviei-me no tempo.
Onde estarão meus pedaços?
Muito se foi com os amigos
que já não ouvem nem falam.
Estou disperso nos vivos,
em seu corpo, em seu olfato,
onde durmo feito aroma
ou voz que também não fala.
Ah, ser somente o presente:
esta manhã, esta sala.

 

[2] Ferreira Gullar e eu – Espelho e Narciso


Narciso e Narciso
Se Narciso se encontra com Narciso
e um deles finge
que ao outro admira
(para sentir-se admirado),
o outro
pela mesma razão finge também
e ambos acreditam na mentira.
Para Narciso
o olhar do outro, a voz
do outro, o corpo
é sempre o espelho
em que ele a própria imagem mira.
E se o outro é
como ele
outro Narciso,
é espelho contra espelho:
o olhar que mira
reflete o que o admira
num jogo multiplicado em que a mentira
de Narciso a Narciso
inventa o paraíso.
E se amam mentindo
no fingimento que é necessidade
e assim
mais verdadeiro que a verdade.
Mas exige, o amor fingido,
ser sincero
o amor que como ele
é fingimento.
E fingem mais
os dois
com o mesmo esmero
com mais e mais cuidado
– e a mentira se torna desespero.
Assim amam-se agora
se odiando.
O espelho
embaciado,
já Narciso em Narciso não se mira:
se torturam
se ferem
não se largam
que o inferno de Narciso
é ver que o admiravam de mentira.

* Do livro: Barulhos.

[3] OVNI
Sou uma coisa entre coisas
O espelho me reflete
Eu (meus
olhos)
reflito o espelho
Se me afasto um passo
o espelho me esquece:
— reflete a parede
a janela aberta.
Eu guardo o espelho
o espelho não me guarda
(eu guardo o espelho
a janela a parede
rosa
eu guardo a mim mesmo
refletido nele):
sou possivelmente
uma coisa onde o tempo
deu defeito.

 

[4] Ferreira Gullar – Poemas Portugueses (4 )

Nada vos oferto
além destas mortes
de que me alimento
Caminhos não há
Mas os pés na grama
os inventarão
Aqui se inicia
uma viagem clara
para a encantação
Fonte, flor em fogo,
quem é que nos espera
por detrás da noite ?
Nada vos sovino:
com a minha incerteza
vos ilumino

 

[5] Ferreira Gullar – Perplexidades

a parte mais efêmera
                    de mim
é esta consciência de que existo
e todo o existir consiste nisto
é estranho!
e mais estranho
                    ainda
        me é sabê-lo
e saber 
que esta consciência dura menos
que um fio de meu cabelo
e mais estranho ainda
                    que sabê-lo
é que
                         enquanto dura me é dado
        o infinito universo constelado
        de quatrilhões e quatrilhões de estrelas
sendo que umas poucas delas
posso vê-las
                    fulgindo no presente do passado

[6] Ferreira Gullar e eu – Espelho e Narciso

[Eu e Ferreira Gullar em 24/11/2010, premiação do Projeto Poesia na Escola, Rio – uma cidade de leitores]
“[Narciso] deitou-se tentando matar a sede,
outra mais forte achou. Enquanto bebia,
viu-se na água e ficou embevecido com a própria imagem. (Ovídio, “Metamorfoses”)
Como aprender a me ver
sem me perder?
O reflexo não me explica,
apenas me consome
e me prende. Uno-me tanto a mim
que meus átomos se juntam
ao meu reflexo.
Como Narciso,
eu sou aquele
no reverso, no inverso,
no espectro que me devora. Quando me perco,
é quando me encontro.

Solange Firmino
[9º lugar no concurso Brasil dos Reis 2011]
Texto ‘Narciso e sua imagem’, na minha coluna Mito em Contexto em Blocos online: http://www.blocosonline.com.br/literatura/prosa/colunistas/sfirmino/sf0023.php


POEMA SUJO, de Ferreira Gullar

 

Fonte: Livraria Cultura

http://www.livrariacultura.com.br/p/poema-sujo-lido-por-ferreira-gullar-22300218

 

[1] SINOPSE
Escrito em Buenos Aires entre maio e outubro de 1975, o 'Poema Sujo' chegou ao Brasil no mesmo ano, gravado em uma fita cassete trazida por Vinicius de Moraes, que se encontrou com Ferreira Gullar na Argentina. Em tempos de ditadura militar em muitos países da América Latina, seria muito arriscado desembarcar com um poema redigido em papel, daí a ideia de gravá-lo em fita cassete, na voz do próprio Gullar. A fita não chamou atenção na alfândega e em pouco tempo, já transcritos, os versos de Gullar correram a cidade do Rio de Janeiro e, ao longo dos anos, tornaram-se parte da literatura brasileira. A ideia de regravar o poema partiu de Antonio Fernando de Franceschi, em 2005, quando os versos completaram 30 anos. Além da leitura integral do poema, o DVD traz uma entrevista concedida por Gullar a Franceschi, na qual o poeta descreve o contexto em que produziu a obra. Textos de Paulo Mendes Campos e Vinicius de Moraes acompanham o DVD, no encarte.

[2] SOBRE O NARRADOR

Ferreira Gullar é o pseudônimo de José Ribamar Ferreira. Poeta, dramaturgo, jornalista, tradutor e crítico de artes plásticas, nasceu no Maranhão, em 1930. Aos 18 anos, trabalhou no Diário de São Luís e, um ano depois, publicou seu primeiro livro, Um Pouco Acima do Chão. Em 1951, trabalhou em revistas como Cruzeiro e Manchete e no Jornal do Brasil, no Rio de Janeiro. Gullar lançou o livro Luta Corporal em 1954. Participou do início do concretismo em 1956 e, em 1957, deixou o movimento e escreveu o artigo Poesia Concreta. Em 1959, assinou o Manifesto Neoconcreto, contando com ideias da sua Teoria do Não Objeto. No início da década de 1960, escreveu poemas de cordel, como João Boa Morte. Em 1962, foi eleito presidente do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC/UNE) e, em 1964, filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro. Com o decreto do AI-5 (1968), Gullar foi preso e exilou-se em 1971. No exílio, enviou artigos para o jornal O Pasquim e escreveu seu livro mais popular, Poema Sujo (1976). Voltou ao Brasil em 1977 e escreveu para teatro e televisão. Em 1980, publicou a obra Toda Poesia. Como crítico de artes plásticas, lançou títulos como Sobre Arte (1983) e Etapas da Arte Contemporânea (1998). Em 2002, foi indicado ao Prêmio Nobel de Literatura, e, em 9 de outubro de 2014, foi eleito o sétimo ocupante da cadeira nº 37 da Academia Brasileira de Letras. Ferreira Gullar morreu no dia 4 de dezembro de 2016, aos 86 anos, no bairro de Copacabana, Rio de Janeiro, vítima de pneumonia.


 

Poema sujo [escrito em Buenos Aires, Argentina, 1975]
(trecho inicial)
http://www.casadobruxo.com.br/poesia/f/fgullar27.htm

[página 1]
turvo turvo
a turva
mão do sopro
contra o muro
escuro
menos menos
menos que escuro
menos que mole e duro menos que fosso e muro: menos que furo
escuro
mais que escuro:
claro
como água? como pluma? claro mais que claro claro: coisa alguma
e tudo
(ou quase)
um bicho que o universo fabrica e vem sonhando desde as entranhas
azul
era o gato
azul
era o galo
azul
o cavalo
azul
teu cu

[2]
tua gengiva igual a tua bocetinha que parecia sorrir entre as folhas de
banana entre os cheiros de flor e bosta de porco aberta como 
uma boca do corpo (não como a tua boca de palavras) como uma 
entrada para
eu não sabia tu
não sabias
fazer girar a vida
com seu montão de estrelas e oceano
entrando-nos em ti
bela bela
mais que bela
mas como era o nome dela?
Não era Helena nem Vera 
nem Nara nem Gabriela 
nem Tereza nem Maria 
Seu nome seu nome era... 
Perdeu-se na carne fria
perdeu na confusão de tanta noite e tanto dia 
perdeu-se na profusão das coisas acontecidas 
constelações de alfabeto 
noites escritas a giz 
pastilhas de aniversário 
domingos de futebol 

[3]
enterros corsos comícios 
roleta bilhar baralho 
mudou de cara e cabelos mudou de olhos e risos mudou de casa 
e de tempo: mas está comigo está 
perdido comigo 
teu nome 
em alguma gaveta
Que importa um nome a esta hora do anoitecer em São Luís
do Maranhão à mesa do jantar sob uma luz de febre entre irmãos
e pais dentro de um enigma?
mas que importa um nome
debaixo deste teto de telhas encardidas vigas à mostra entre
cadeiras e mesa entre uma cristaleira e um armário diante de
garfos e facas e pratos de louças que se quebraram já
um prato de louça ordinária não dura tanto
e as facas se perdem e os garfos 
se perdem pela vida caem 
pelas falhas do assoalho e vão conviver com ratos
e baratas ou enferrujam no quintal esquecidos entre os pés de erva-cidreira
e as grossas orelhas de hortelã
quanta coisa se perde
nesta vida

[4]
Como se perdeu o que eles falavam ali
Mastigando
misturando feijão com farinha e nacos de carne assada
e diziam coisas tão reais como a toalha bordada
ou a tosse da tia no quarto
e o clarão do sol morrendo na platibanda em frente à nossa
janela tão reais que
se apagaram para sempre
Ou não?
Não sei de que tecido é feita minha carne e essa vertigem
que me arrasta por avenidas e vaginas entre cheiros de gás 
e mijo a me consumir como um facho-corpo sem chama, 
ou dentro de um ônibus 
ou no bojo de um Boeing 707 acima do Atlântico
acima do arco-íris 
perfeitamente fora
do rigor cronológico 
sonhando 
Garfos enferrujados facas cegas cadeiras furadas mesas gastas
balcões de quitanda pedras da Rua da Alegria beirais de casas
cobertos de limo muros de musgos palavras ditas à mesa do
jantar, 

[5]
voais comigo
sobre continentes e mares
E também rastejais comigo 
pelos túneis das noites clandestinas
sob o céu constelado do país 
entre fulgor e lepra
debaixo de lençóis de lama e de terror 
vos esgueirais comigo, mesas velhas, 
armários obsoletos gavetas perfumadas de passado, 
dobrais comigo as esquinas do susto 
e esperais esperais
que o dia venha
E depois de tanto 
que importa um nome?
Te cubro de flor, menina, e te dou todos os nomes do mundo: 
te chamo aurora 
te chamo água
te descubro nas pedras coloridas nas artistas de cinema 
nas aparições do sonho 
- E esta mulher a tossir dentro de casa! 
Como se não bastasse o pouco dinheiro, a lâmpada fraca,

[6]
O perfume ordinário, o amor escasso, as goteiras no inverno.
E as formigas brotando aos milhões negras como golfadas de
dentro da parede (como se aquilo fosse a essência da casa)
E todos buscavam
num sorriso num gesto 
nas conversas da esquina 
no coito em pé na calçada escura do Quartel 
no adultério 
no roubo 
a decifração do enigma
- Que faço entre coisas? 
- De que me defendo?
Num cofo de quintal na terra preta cresciam plantas e rosas
(como pode o perfume
nascer assim?)
Da lama à beira das calçadas, da água dos esgotos cresciam
pés de tomate
Nos beirais das casas sobre as telhas cresciam capins
mais verdes que a esperança
(ou o fogo
de teus olhos)

[7]
Era a vida a explodir por todas as fendas da cidade
sob as sombras da guerra:
a gestapo a wehrmacht a raf a feb a blitzkrieg
catalinas torpedeamentos a quinta-coulna os fascistas os nazistas os
comunistas o repórter Esso a discussão na quitanda a querosene o 
sabão de andiroba o mercado negro o racionamento o blackout as 
montanhas de metais velhos o italiano assassinado na Praça João
Lisboa o cheiro de pólvora os canhões alemães troando nas noites de 
tempestade por cima da nossa casa. Stalingrado resiste. 
Por meu pai que contrabandeava cigarros, por meu primo que passava 
rifa, pelo tio que roubava estanho à Estrada de Ferro, por seu Neco
que fazia charutos ordinários, pelo sargento Gonzaga que tomava
tiquira com mel de abelha e trepava com a janela aberta,
pelo meu carneiro manso
por minha cidade azul
pelo Brasil salve salve,
Stalingrado resiste. 
A cada nova manhã 
nas janelas nas esquinas nas manchetes dos jornais
Mas a poesia não existia ainda. 
Plantas. Bichos, Cheiros. Roupas.
Olhos. Braços. Seios. Bocas.
Vidraça verde, jasmim.


[8]
Bicicleta no domingo. 
Papagaios de papel.
Retreta na praça. 
Luto. 
Homem morto no mercado
sangue humano nos legumes.
Mundo sem voz, coisa opaca.
Nem Bilac nem Raimundo. Tuba de alto clangor, lira singela?
Nem tuba nem lira grega. Soube depois: fala humana, voz de
gente, barulho escuro do corpo, intercortado de relâmpagos
Do corpo. Mas que é o corpo? 
Meu corpo feito de carne e de osso.
Esse osso que não vejo, maxilares, costelas
flexível armação que me sustenta no espaço
que não me deixa desabar como um saco
vazio 
que guarda as vísceras todas
funcionando 
como retortas e tubos
fazendo o sangue que faz a carne e o pensamento
e as palavras
e as mentiras

[9]
e os carinhos mais doces mais sacanas
mais sentidos
para explodir uma galáxia
de leite 
no centro de tuas coxas no fundo
de tua noite ávida 
cheiros de umbigo e de vagina
graves cheiros indecifráveis
como símbolos
do corpo
do teu corpo do meu corpo
corpo
que pode um sabre rasgar 
um caco de vidro 
uma navalha
meu corpo cheio de sangue
que o irriga como a um continente
ou um jardim
circulando por meus braços
por meus dedos 
enquanto discuto caminho 
lembro relembro
meu sangue feito de gases que aspiro 


[10]
dos céus da cidade estrangeira 
com a ajuda dos plátanos 
e que pode - por um descuido - esvair-se por meu
pulso
aberto
Meu corpo 
que deitado na cama vejo 
como um objeto no espaço 
que mede 1,70m 
e que sou eu: essa coisa deitada
barriga pernas e pés
com cinco dedos cada um (por que 
não seis?)
joelhos e tornozelos
para mover-se
sentar-se
levantar-se
meu corpo de 1,70m que é meu tamanho no mundo 
meu corpo feito de água 
e cinza
que me faz olhar Andrômeda, Sírius, Mercúrio 
e me sentir misturado 

[10]
a toda essa massa de hidrogênio e hélio
que se desintegra e reintegra
sem se saber pra quê
Corpo meu corpo corpo
que tem um nariz assim uma boca
dois olhos
e um certo jeito de sorrir
de falar
que minha mãe identifica como sendo de seu filho
que meu filho identifica
como sendo de seu pai
corpo que se pára de funcionar provoca
um grave acontecimento na família:
sem ele não há José Ribamar Ferreira
não há Ferreira Gullar
e muitas pequenas coisas acontecidas no planeta
estarão esquecidas para sempre
corpo-facho corpo-fátuocorpo-fato
atravessados de cheiros de galinheiros e rato
na quitanda ninho

[11]
de rato
cocô de gato
sal azinhavre sapato
brilhantina anel barato
língua no cu na boceta cavalo-de-crista chato
nos pentelhos
com meu corpo-falo
insondável incompreendido
meu cão doméstico meu dono
cheio de flor e de sono
meu corpo-galáxia aberto a tudo cheio
de tudo como um monturo
de trapos sujos latas velhas colchões usados sinfonias
sambas e frevos azuis
de Fra Angelico verdes
de Cézanne
matéria-sonho de Volpi 
Mas sobretudo meu
corpo
nordestino
mais que isso
maranhense

[12]
mais que isso
sanluisense
mais que isso
ferreirense
newtoniense
alzirense
meu corpo nascido numa porta-e-janela da Rua dos Prazeres
ao lado de uma padaria sob o signo de Virgo
sob as balas do 24º BC
na revolução de 30
e que desde então segue pulsando como um relógio
num tic tac que não se ouve
(senão quando se cola o ouvido à altura do meu coração) 
tic tac tic tac 
enquanto vou entre automóveis e ônibus 
entre vitrinas de roupas 
nas livrarias
nos bares 
tic tac tic tac 
pulsando há 45 anos 
esse coração oculto 
pulsando no meio da noite, da neve, da chuva


[13]
debaixo da capa, do paletó, da camisa 
debaixo da pele, da carne,
combatente clandestino aliado da classe operária 
meu coração de menino

************************************************************************

 



FALTAM AS TRANSCRIÇÕES DAS PÁGINAS 14 A 74




Poema Sujo - um fragmento: "Velocidades"
[citação na Entrevista do Pasquim]
http://www.casadobruxo.com.br/poesia/f/sujo.htm


[página 75]
Mas na cidade havia muita luz,
a vida
fazia rodar o século nas nuvens
sobre nossa varanda
por cima de mim e das galinhas no quintal 
por cima do depósito onde mofavam
paneiros de farinha
atrás da quitanda,
e era pouco 
viver, mesmo
no salão de bilhar, mesmo
no botequim do Castro, na pensão
da Maroca nas noites de sábado, era pouco
banhar-se e descer a pé
para a cidade de tarde
(sob o rumor das árvores)
ali
no norte do Brasil
vestido de brim.
E por ser pouco
era muito,

[76]
que pouco muito era o verde
fogo da grama, o musgo do muro, o galo
que vai morrer,
a louça na cristaleira,
o doce na compoteira, a falta
de afeto, a busca
do amor nas coisas.
Não nas pessoas:
nas coisas, na muda carne
das coisas, na cona da flor, no oculto
falar das águas sozinhas:
que a vida passava por sobre nós,
de avião.
************************************************************************

[78]
Não tem a mesma velocidade o domingo
que a sexta-feira com seu azáfama de compras
fazendo aumentar o tráfego e o consumo
de caldo de cana gelado,
nem tem
a mesma velocidade
a açucena e a maré
com seu exército de borbulhas e ardentes caravelas
a penetrar soturnamente o rio
noutra lentidão que a do crepúsculo
que, no alto,
com sua grande engrenagem escangalhada
moía a luz.
Outra velocidade
tem Bizuza sentada no chão do quarto
a dobrar os lençóis lavados e passados
a ferro, arrumando-os na gaveta da cômoda, como
se a vida fosse eterna.
E era
naquele seu universo de almoços e temperos
de folhas de louro e de pimenta-do-reino
mastruz para tosse braba,

[79]
universo
de panelas e canseiras entre as paredes da cozinha
dentro de um surrado vestido de chita,
enfim,
onde batia o seu pequenino coração.
E se não era
eterna a vida, dentro e fora do armário,
o certo é que tendo cada coisa uma velocidade
(a do melado
escura, clara a da água
a derramar-se)
cada coisa se afastava
desigualmente
de sua possível eternidade .
Ou se se quer
desigualmente a tecia
na sua própria carne escura ou clara
num transcorrer mais profundo que o da semana.
Por isso não é certo dize

[80]
que é no domingo que melhor se vê a cidade
- as fachadas de azulejo, a Rua do Sol vazia
as janelas trançadas no silêncio –
quando ela parada
parece flutuar.
E que melhor se vê uma cidade
quando - como Alcântara
todos os habitantes se foram
e nada resta deles (sequer
um espelho de aparador num daqueles
aposentos sem teto) - se não
entre as ruínas
a persistente certeza de que
naquele chão
onde agora crescem carrapichos
eles efetivamente dançaram
(e quase se ouvem vozes
e gargalhadas
que se acendem e apagam nas dobras da brisa)

[81]
Mas
se é espantoso pensar
como tanta coisa sumiu, tantos
guarda-roupas e camas e mucamas
tantas e tantas saias, anáguas,
sapatos dos mais variados modelos
arrastados pelo ar junto com as nuvens,
a isso
responde a manhã
que
com suas muitas e azuis velocidades
segue em frente
alegre e sem memória
*************************************************************************

[82]
É impossível dizer
em quantas velocidades diferentes
se move uma cidade
a cada instante
(sem falar nos mortos
que voam para trás)
ou mesmo uma casa
onde a velocidade da cozinha
não é igual à da sala (aparentemente imóvel
nos seus jarros e bibelôs de porcelana)
nem à do quintal
escancarado às ventanias da época
e que dizer das ruas
de tráfego intenso e da circulação do dinheiro
e das mercadorias
desigual segundo o bairro e a classe, e da
rotação do capital
mais lenta nos legumes
mais rápida no setor industrial, e
da rotação do sono
sob a pele,

[83]
do sonho
nos cabelos?
e as tantas situações da água nas vasilhas
(pronta a fugir) a rotação
da mão que busca entre os pentelhos
o sonho molhado os muitos lábios
do corpo
que ao afago se abre em rosa, a mão
que ali se detém a sujar-se
de cheiros de mulher,
e a rotação
dos cheiros outros
que na quinta se fabricam
junto com a resina das árvores e o canto
dos passarinhos?
Que dizer da circulação
da luz solar
arrastando-se no pó debaixo do guarda-roupa
entre sapatos?
e da circulação

[84]
dos gatos pela casa
dos pombos pela brisa?
e cada um desses fatos numa velocidade própria
sem falar na própria velocidade
que em cada coisa há
como os muitos
sistemas de açúcar e álcool numa pêra
girando
todos em diferentes ritmos
(que quase se pode ouvir)
e compondo a velocidade geral
que a pêra é do mesmo modo que todas essas velocidades mencionadas
compõem
(nosso rosto refletido na água do tanque)
o dia
que passa
- ou passou –
na cidade de São Luís.

[85]
E do mesmo modo
que há muitas velocidades num
só dia
e nesse mesmo dia muitos dias
assim
não se pode também dizer que o dia
tem um único centro
(feito um caroço
ou um sol)
porque na verdade um dia
tem inumeráveis centros
como, por exemplo, o pote de água
na sala de jantar
ou na cozinha
em tomo do qual
desordenadamente giram os membros da família.
E se nesse caso
é a sede a força de gravitação
outras funções metabólicas
outros centros geram
como a sentina
a cama

[86]
ou a mesa de jantar
(sob uma luz encardida numa
porta-e-janela da Rua da Alegria
na época da guerra)
sem falar nos centros cívicos, nos centros
espíritas, no Centro Cultural
Gonçalves Dias ou nos mercados de peixe,
colégios, igrejas e prostíbulos,
outros tantos centros do sistema
em que o dia se move
(sempre em velocidades diferentes)
sem sair do lugar.
Porque
quando todos esses sóis se apagam
resta a cidade vazia
(como Alcântara)
no mesmo lugar. Porque
diferentemente do sistema solar
a esses sistemas
não os sustém o sol e sim

[87]
os corpos
que em tomo dele giram:
não os sustém a mesa
mas a fome
não os sustém a cama
e sim o sono
não os sustém o banco
e sim o trabalho não pago
E essa é a razão por que
quando as pessoas se vão
(como em Alcântara) apagam-se os sóis (os
potes, os fogões)
que delas recebiam o calor
essa é a razão
por que em São Luís
donde as pessoas não se foram
ainda neste momento a cidade se move
em seus muitos sistemas
e velocidades
pois quando um pote se quebra
outro pote se faz

[88]
outra cama se faz
outra jarra se faz
outro homem 
se faz
para que não se extinga
o fogo
na cozinha da casa
***********************************************************************

[89]
O que eles falavam na cozinha
ou no alpendre do sobrado
(na Rua do Sol)
saía pelas janelas se ouvia nos quartos de baixo
na casa vizinha, nos fundos da Movelaria
(e vá alguém saber
quanta coisa se fala numa cidade
quantas vozes
resvalam por esse intrincado labirinto
de paredes e quartos e saguões, 
de banheiros, de pátios, de quintais
vozes entre muros e plantas,
risos,
que duram um segundo e se apagam)
E são coisas vivas as palavras
e vibram da alegria dó corpo que as gritou
têm mesmo o seu perfume, o gosto 
da carne
que nunca se entrega realmente
em na cama

[90]
senão a si mesma
à sua própria vertigem
ou assim falando ou rindo
no ambiente familiar
enquanto como um rato
tu podes ouvir e ver
de teu buraco
como essas vozes batem nas paredes do pátio vazio
na armação de ferro onde seca uma parreira
entre arames
de tarde
numa pequena cidade latino-americana.
E nelas há
uma iluminação mortal que é da boca
em qualquer tempo
mas que ali
na nossa casa
entre móveis baratos

[91]
e nenhuma dignidade especial
minava a própria existência.
Ríamos, é certo,
em torno da mesa de aniversário coberta de pastilhas
de hortelã enroladas em papel de seda colorido, 
ríamos, sim,
mas
era como se nenhum afeto valesse
como se não tivesse sentido rir
numa cidade tão pequena.
O homem está na cidade
como uma coisa está em outra
e a cidade está no homem
que está em outra cidade
mas variados são os modos
como uma coisa
está em outra coisa: 
o homem, por exemplo, não está na cidade
como uma árvore está

[92]
em qualquer outra 
nem como uma árvore 
está em qualquer uma de suas folhas 
(mesmo rolando longe dela)
O homem não está na cidade
como uma árvore está num livro
quando um vento ali a folheia
a cidade está no homem
mas não da mesma maneira 
que um pássaro está numa árvore 
não da mesma maneira que um pássaro 
(a imagem dele) 
está/va na água
e nem da mesma maneira 
que o susto do pássaro
está no pássaro que eu escrevo a cidade está no homem 
quase como a árvore voa 
no pássaro que a deixa
cada coisa está em outra 

[93]
de sua própria maneira
e de maneira distinta
de como está em si mesma
a cidade não está no homem 
do mesmo modo que em sua 
quitandas praças e ruas

[Ferreira Gullar,] Buenos Aires, [Argentina,] mai/out/1975

 




Ficheiro:Gullar capa POEMA SUJO.jpg

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Ficheiro de uso restrito para o artigo Poema Sujo
Descrição
Capa do livro Poema Sujo (2013)
Fonte
Autor
Editora Record
Direitos autorais
Editora Record
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FERREIRA GULLAR NO PORTAL “CASA DO BRUXO”.


  1. Alegria, A
  2. Aprendizado
  3. Arte poética
  4. Bananas Podres
  5. Barulho
  6. Boi, O
  7. Cantiga para não morrer
  8. Cantada
  9. Dois e dois: quatro
  10. Escrito
  11. Espera, A
  12. Evocação de silêncios 
  13. Exílio
  14. Filhos
  15. Fotografia de Mallarmé
  16. Galo galo
  17. Homem Sentado
  18. João Boa Morte - cabra marcado para morrer
  19. Mau despertar 
  20. Meu pai
  21. Meu povo meu poema
  22. Morte de Clarice Lispector
  23. Mortos, Os
  24. Não há vagas
  25. Narciso e Narciso
  26. No corpo
  27. No mundo há muitas armadilhas
  28. Nós, latino-americanos
  29. Oswald morto
  30. Ouvindo apenas
  31. Passeio em Lima
  32. Pela rua
  33. Pergunta e resposta
  34. P.M.S.L.
  35. Poema 
  36. Poema brasileiro
  37. Poema obsceno
  38. Poema sujo
  39. Poemas portugueses (4) 
  40. Poster
  41. Poema sujo - um fragmento: "velocidades"
  42. Primeiros anos 
  43. Razão poética, A
  44. Subversiva
  45. Tanga
  46. Traduzir-se
  47. Um homem ri
  48. Um instante
  49. Uma fotografia aérea
  50. Verão
  51. Vida bate, A
  52. Volta ao lar




Entrevista de Ferreira Gullar ao Jornal Pasquim nº 413 [jul.1977]

Fonte: Portal Casa do Bruxo.
http://www.casadobruxo.com.br/poesia/f/fgullarent.htm

Pasquim Nº 413! Entrevista Ferreira Gullar! Jun 1977!
http://produto.mercadolivre.com.br/MLB-700356764-pasquim-n-413-entrevista-ferreira-gullar-jun-1977-_JM


“A coisa que eu sou é poeta e estou sempre em crise.”

Apresentação: Caco Xavier

Ferreira Gullar é ao mesmo tempo único e multidão. Único por ser o maior poeta brasileiro vivo, unanimidade de público e crítica. Multidão por ser um dentre os milhares de Josés Ribamares do Maranhão. Ser multidão o leva a perceber que o sentido da vida está no sentido justo que nós lhe damos, e no modo pelo qual nós a inventamos.
Ser poeta ("a única coisa que sou", diz ele) o faz tornar essa vida possível. "Eu não diria que a poesia é uma forma de fuga, porque ao mesmo tempo ela procura tornar a vida possível", diz em entrevista ao crítico literário Weydson Barros Leal, no Diário Oficial de Pernambuco, em 1995. Ferreira Gullar acrescenta que "o homem não faz poesia para sair da vida, ele faz poesia para ter coragem de viver".
Nascido em São Luís do Maranhão em 10 de novembro de 1930, Gullar casa-se em 1954 com Thereza Aragão, com quem vem a ter os filhos Luciana, Paulo e Marcos. Sua obra poética não é vasta, porém é decisiva para o processo cultural brasileiro.
Os livros mais importantes são A Luta Corporal (1954); Dentro da Noite Veloz (1975); Poema Sujo (1976); Na Vertigem do Dia (1980); Barulhos (1987); Muitas Vozes (1999). Em 1980 é lançada a primeira edição de Toda Poesia. Ferreira Gullar escreveu ainda vários ensaios e peças teatrais, principalmente no período em que atuava no CPC da UNE, durante os anos da ditadura militar.
Nesta entrevista [Pasquim nº 413; julho 1977], o poeta desvela-se mais uma vez, pensa em voz alta sobre poesia, arte, sociedade e esperança, e não se furta a mais uma vez rever-se e reinventar-se ("em crise permanente", como ele mesmo gosta de dizer).
Há pessoas que, pela excelência de sua vida e obra, nos fazem desejar os seus desejos. É fácil desejar ser poeta por causa de Ferreira Gullar.
Caco Xavier


"Há quem pense que sabe como deve ser o poema. 
Eu mal sei como gostaria que ele fosse, 
porque eu mudo, o mundo muda e a 
poesia irrompe donde menos se espera."
(de Nasce o Poema, em Barulhos)

Ferreira Gullar [antecipando qualquer pergunta] - Essa entrevista vai versar sobre o quê? Eu não gostaria de falar sobre política, não sou político...



[1] Arthur Poerner - Vai versar sobre você e sua vida. E sobre a poesia. Podemos começar falando sobre o seu primeiro livro, de 1949.
Gullar - Eu tinha dezenove anos de idade, é um livro tolo, imaturo. Por isso está fora de Toda Poesia.

[2] Lena Frias - Joãosinho Trinta diz que vocês formaram um grupo de jovens intelectuais sonhadores, no Maranhão.
Marcelo Auler - Foi na época em que você fazia faculdade?
Gullar - Eu nunca fiz faculdade, quem sou eu... Eu nasci em 1930 e, quando eu tinha 12 anos, o Brasil entrou na guerra. Fiquei triste, pensei que ia morrer. Meu pai ouvia o rádio e achava que aquelas descargas do rádio, aquela estática, era a guerra. Meu pai tinha uma quitanda na Rua da Alegria, esquina com a Rua dos Afogados, e era jogador de futebol, center-four da seleção maranhense, que na época era campeã do Norte-Nordeste.


[3] Poerner - E o que te fez se meter na vida literária?
Gullar - O Maranhão tem uma tradição literária, mas eu vivia à margem de tudo. Eu morava na Rua Celso Magalhães, que hoje se chama Rua dos Veados (mas eu não tenho nada a ver com isso), vivia no botequim da Praia do Caju jogando bilhar, juntando alumínio e bronze pra vender, comprar cigarros. Eu era um pivete, não um menino de família que fica dentro de casa. Éramos eu, o Espírito da Garagem da Bosta e o Esmagado. A gente vivia roubando copos de botequim. Nada indicava que eu iria ser escritor. Poeta, naquela época, era sinônimo de viado. Eu não olhava com bons olhos a atividade normal de meu pai na quitanda. Meu primo trabalhava num banco, e eu também não queria. Trabalhar, nesse sentido, eu não queria. Eu me criei tomando banho de mar, pescando camarão. Era uma coisa livre, e de repente virar adulto me espantava.

[4] Caco Xavier - E por isso voltou-se para a poesia?
Gullar - Na Gramática de Eduardo Carlos Pereira tinha uma coleção de poemas: Camões, Bocage, Gonçalves Dias, e tal, e tal, aí vêm os parnasianos. O problema é que tava todo mundo morto. Eu não achava que existisse algum poeta vivo. Quando minha irmã me disse que "o pai da Iracema é poeta", eu não acreditei. Ela disse que sim, que ele era da Academia Maranhense de Letras. Fui conhecer o cara, que morava perto, numa casinha pequenininha. Ele me levou pro centro da cidade (a dez quadras da minha casa, mas onde eu nunca tinha ido). Lá estavam os poetas, a curriola. Eu tinha meus dezessete anos.

[5] Lena - E aí se formaram os grupos?
Gullar - Havia dois grupos de intelectuais jovens. Um formado por mim e pelo Lago Burnett, o grupo 'retrógrado', que fazia sonetos, e tal. E o grupo de 'vanguarda' era Sarney e Tribuzi, que faziam poesia moderna.


[6] Luís Pimentel - SARNEY já foi vanguarda!
Gullar - Eu descobri a poesia talvez por não ter o que fazer da vida. De todas as profissões conhecidas, eu não queria nenhuma. Eu estava rejeitando um tipo de ocupação normal das pessoas, e poderia virar pintor, qualquer coisa assim. Mas virei poeta. Até que eu tirei 9,5 numa redação sobre o Dia do Trabalho. Pensei: "Já que é assim, vou ser poeta". Eu tirei 9,5 porque tive dois erros de português. E pensei: "Bom, se eu quero ser poeta, não posso errar português". E passei dois anos seguidos só lendo gramática.

[7] Poerner - E qual foi a repercussão daquele seu primeiro livro?
Gullar - No Maranhão foi considerado ótimo. Aí veio pro Rio e o Fausto Cunha baixou o cacete: "Como é que um cara de 19 anos me escreve um troço tão antiquado desse?" Mais tarde, Fausto Cunha se tornou meu amigo. Ele é, de certo modo, um dos responsáveis pelo caminho que eu tomei. Só esses cascudos que ele me deu já valeram. Aí fui ler O Empalhador de Passarinhos, do Mário de Andrade, fui ler José Lins do Rego, Otto Maria Carpeaux... Isso é engraçado, porque quando eu comecei a fazer poesia rimada e metrificada, a poesia brasileira era rebelde, era o modernismo escrachado. E quando eu rompi com essa poesia e escrevi A Luta Corporal e fiz a implosão da linguagem, arrebentei com tudo, aparecia a geração de 45, voltando pro soneto. Eu tava sempre na contramão.



[8] Ziraldo - A Luta Corporal foi o rompimento?
Gullar - Eu já tinha rompido antes, mas eram tentativas. Um dia, tive o insight. Eu comprei no sebo um livro antigo, chamado Contos de Hoffman, contos fantásticos. Comecei a ler e os contos eram tão fantásticos que eu achei que não tinham nada a ver comigo. Me impressionava de o livro estar todo mofado, velho, com aquelas histórias que não tinham nada a ver com a minha vida. E eu fiz a pergunta terrível: "Caceta, pra que fazer literatura? Pra virar isso aqui?"Não sabia responder. Fiquei no ar, procurando a resposta, deitado na minha rede, às três da tarde. A resposta foi: "A poesia tem que mudar alguma coisa. A única razão de ela existir é mudar alguma coisa, nem que seja a mim mesmo". Abri minha gaveta e reli os dez poeminhas que eu tinha escrito. Rasguei, rasguei, rasguei. Nenhum mudava nada.

[9] Reynaldo Valinho - Essa reunião, de Toda a Poesia, começa com os Poemas Portugueses e depois tem os sonetos. Os sonetos são de que fase?
Gullar - Os dois ou três sonetos dos Poemas Portugueses são o ajuste de contas, pra eu nunca mais voltar atrás. São sonetos modernos, não são parnasianos. A partir dali, eu tô livre. Nessa época, eu li uma frase do Gauguin que foi definitiva, pra mim: "Quando eu aprender a pintar com a mão direita, vou começar a pintar com a esquerda. E quando aprender a pintar com a esquerda, passo a pintar com os pés". Falei assim pra mim: "É isso aí. A poesia é uma aventura e a linguagem tem que nascer junto com o poema".


[10] Ziraldo - Quando você escreveu O Galo, já estava no Rio?
Gullar - Ainda era São Luís. Eu cheguei no Rio em 51. Me arrumaram um emprego no IAP e, quando fui fazer os exames, viram uma infiltração pulmonar.

[11] Ziraldo - Quer dizer, um poeta completo.
Gullar - O médico que me tratou, José Fernandes Carneiro, um sujeito muito inteligente, me disse assim: "Você está com um início de tuberculose, aqui, mas não pensa que vai ficar que nem o Manuel Bandeira, não. Cê não vai explorar a tuberculose, porque agora existe a estreptomicina e eu vou te curar".

[12] Ziraldo - O pátio do poema do Galo era no hospital, então?
Gullar - Não, era na minha casa. O galo do sanatório, em Correias, onde eu fui me tratar, era outro galo. Tem vários galos na minha vida. Tem o galo do prêmio do Jornal de Letras, que eu nunca publiquei, feito de um anúncio do sal de frutas Eno, tem o galo-galo, que é o galo do quintal da minha casa, "que não deixa marca, que anda e que o cimento esquece seu último passo". Esse é o galo real, com o qual me identifico, o homem desamparado, solto no mundo.


[13] Camila Leite - Seu primeiro emprego foi ser locutor da RÁDIO TIMBIRA?
Gullar - Foi. Não sei por que me chamaram, mas fui um bom locutor. Aí, houve um comício, nos anos 50, da campanha do Getúlio. O Adhemar de Barros havia aderido ao Getúlio e foi no Maranhão fazer campanha, mas o governador do estado era brigadeiro e proibiu que o comício fosse feito na praça central da cidade. Por isso, ele aconteceu numa praça marginal. Quando estava começando, cortaram a luz e não se ouvia os caras falarem. O pessoal então saiu em marcha, com o Adhemar, para invadir a praça onde o governador tinha proibido o comício.
A polícia estava lá. Quando o pessoal entrou na praça, eu ia descendo do ônibus com meu pai, ia pro trabalho na rádio. A polícia metralha todo mundo e morre um operário. Meu pai me arrasta pra dentro de um outro ônibus, mas me soltei dele e fui pra praça. As pessoas avançavam com o cadáver do operário, contra a polícia que, assustada, recuou. No dia seguinte, na rádio, chega a nota do governador, pra eu ler: "Ontem à noite, os comunistas mataram um operário, não sei o quê, e tal..." Eu botei a nota de lado e comecei: "O perfume que deixa saudade. Sabonete Regina é uma maravilha. Sabonete Regina". E o pessoal lá:"Ô, cara, lê a nota do governador". Daqui a pouco, veio o diretor da rádio: "Você não vai ler a nota do governador?" E eu disse: "Não, não leio, porque é mentira". E ele insistia: "Você não tem nada a ver com isso, você é locutor..." E eu: "Tenho a ver com isso, sim. Eu vi a polícia matar o cara". E ele me demitiu.

[14] Poerner - E como você chegou ao jornalismo?
Gullar - No Maranhão, eu já tinha trabalhado um pouco em jornal. Quando eu vim pro Rio, fui convidado pelo Herbert Sales para trabalhar no Cruzeiro como revisor de provas, um pré-copidesque. Depois, na Manchete, fui ser redator, a convite do Oto Lara Resende. Eu fiquei por um tempo como revisor, até surgir uma vaga pra redator, o que depois aconteceu.


[15] Marcelo - Como reage a sua família, ao fato de você querer ser poeta? E o que fez você vir para o Rio de Janeiro?
Gullar - Me lembro de meu irmão mais velho dizer assim: "É verdade que você tá querendo ser poeta? Toma cuidado, hein? Lembra do J. J. Guimarães?" Ele era um maluco que morava a três esquinas da minha casa, num sobrado, e ficava na janela falando um monte de disparates.

[16] Pimentel - Poeta, quando não era viado, era maluco.
Gullar - Pois é. Mas a minha mãe pagou meu primeiro livro. A tiragem foi uma coisa exagerada, uns quinhentos exemplares. Eu descobri o que era a poesia moderna, lá, e escrevi o poema O Galo. O Jornal de Letras instituiu um concurso nacional de poesia, e eu ganhei. Este fato é que me fez vir pro Rio. Vendi a estante, a escrivaninha...

Buenos Aires, 1975. Criando o Poema Sujo.

[17] Zezé Sack - E o seu pai, quitandeiro, tendo você que foi sempre desgarrado, de repente aparece com livro editado, fazendo poesia. Como é que ele recebeu isso?
Gullar - Inteiramente a favor. Eu nunca tive oposição alguma dentro da minha família. Pelo contrário, todo mundo achava que era ótimo. Meu pai vivia falindo, as quitandas dele faliam sem parar. Era ele falindo e eu sendo demitido, essa é a nossa história. Eu tava fazendo um levantamento, hoje. Olha só: fui demitido da Rádio Timbira. Fui demitido da revista O Cruzeiro. Fui trabalhar na Manchete e o Bloch me demitiu. Aí fui trabalhar no Jornal do Brasil. Demitido. 
Demitido no Diário de Notícias, também. Minhas últimas demissões: Fernando Henrique me demitiu da Funarte e agora, ao fazer 70 anos, a TV Globo me demitiu, pra comemorar. Agora, quero agradecer a todos esses caras que me demitiram, porque foram as melhores coisas da minha vida. Cada demissão melhorou minha vida.

[18] Poerner - Como é que você descobriu a política, como se deu a sua politização?
Gullar - O primeiro contato com a política foi quando eu li no jornal Para Todos, no Maranhão, que a poesia tinha que ser engajada. Fiquei horrorizado, fiquei com raiva do Partido Comunista. Eu falava: "A única coisa que eu sou é poeta, e vêm esses caras dizendo que a poesia não vale nada se não for política?" Depois daquele negócio lá, da rádio, eu fui convidado pra fazer campanha política, antigetulista, no interior do Maranhão, no agreste, barra pesadíssima. Conheci o Quincas Bonfim, que é personagem da peça Se Correr o Bicho Pega, se Ficar o Bicho Come, matador, homem do Coronel Neiva. Ele abriu uma escola lá num município e, quando terminou a eleição, alguém fala assim: "Agora, Coronel, temos que arrumar dinheiro pra manter a escola funcionando". E ele: "Não, não. A escola fecha, a escola era só para a campanha". Aí eu não gostei, falei, lá, e me demitiram. Eu voltei pra São Luís, e lá estava ganhando o nosso candidato, Saturnino Belo. Aí suspenderam a publicação do boletim eleitoral durante uma semana. Quando voltaram a publicar, estava o outro candidato ganhando. Aí fomos pra rua, aquela confusão. Deu uma cagada geral, cara. Fui preso e tudo. Esse negócio deu uma encrenca tão grande que a cidade se mobilizou e parou. Foi uma greve anunciada até pela BBC de Londres. O governador, que fez a fraude, teve que renunciar. Tava todo mundo contra aquilo, tinha gente avançando contra o Palácio do Governo, jogando pedras, teve tiro. Foi meu batismo político. Aí me chamaram e me pediram pra que eu me candidatasse. E eu falei que não queria ser político...


[19] Ziraldo - Você hoje seria o SARNEY...
Gullar - Eu era sempre insatisfeito com essa confusão geral no Brasil, mas não queria me meter com comunistas, por causa daquele artigo que eu tinha lido no jornal.

[20] Camila - Mas um dado curioso é que você acabou entrando para o Partido Comunista, e a data de sua filiação é 1o de abril de 64!
Gullar - É, foi um caminho longo. Quando eu estava no suplemento dominical do Jornal do Brasil, Jânio Quadros foi eleito e o José Aparecido, junto com o Carlos Castelo Branco, me convidam para trabalhar em Brasília na Fundação Cultural, que naquela época era um acampamento. Nêgo vivia tudo coberto de poeira vermelha. Eu dizia: "Esse lugar aqui tá muito atrás do Rio de Janeiro, nós estamos voltando no tempo!" Aí me emprestam um livro chamado La Pensée de Karl Marx, escrito por um padre. Comecei a ler a primeira parte toda, que expunha com a maior honestidade e clareza o que era o marxismo. A segunda parte do livro queria demonstrar por que padre não pode ser comunista. Como eu não era padre, não li a segunda parte e me tornei marxista.

[21] Marcelo - A filiação em 1º de abril é mera coincidência?
Gullar - Não, claro que não. Em Brasília, eu virei marxista, não era comunista. Por que eu gostei do pensamento de Marx? Porque era uma coisa concreta. Quando eu entrei em crise com a poesia, comecei a ler filosofia. Li desde os pré-socráticos, Platão, Aristóteles. E ia concordando com todos eles. Lia, concordava. Lia, concordava. Os caras são inteligentes pra caralho, era um contra o outro, e eu concordando, inteiramente perdido. Quando eu li Marx, vi uma coisa concreta, densa, real. Não era aquele negócio lá das idéias, da verdade, "o verdadeiro piano não é o piano, é a idéia do piano..." Quando eu estava lá em Moscou, fazendo curso de bacharelado em subversão, conheci um operário a quem deram um livro do Lênin sobre o idealismo filosófico, e ele dizia assim: "Mas o Lênin vai discutir esse negócio pra quê? Se ele fosse operário, ia ver que isso não tem discussão. Se você mete o dedo num torno mecânico, ele sai fora, porra!" Mas por que eu tô falando isso?


[22] Camila - 61, Brasília...
Gullar - Ah, sim. Eu virei marxista por causa dessa concretude, e também pelo elogio do trabalho. Eu achava que o trabalho é uma coisa fundamental. O elogio do trabalho, do homem que muda o mundo pelo trabalho é uma coisa fundamental, também.

[24] Camila - O Museu de Arte Popular nasce nessa época, em Brasília?
Gullar - Eu achava que Brasília era a junção do que havia de mais moderno e de mais antigo no Brasil. O mais moderno era o urbanismo e a arquitetura; e o mais antigo era a mão-de-obra do nordestino, candango. Então pensei em fazer arte de vanguarda e arte popular, essa foi a minha idéia. A filosofia da Fundação Cultural era essa, trabalhar nessas duas linhas. A arte de vanguarda eu consegui fazer, mas o ateliê de arte popular não. Sabe por quê? Porque os operários começavam a trabalhar às seis da manhã, moravam em cidade-satélite e não tinham tempo pra nada. Depois que o Jânio renunciou, eu voltei pro Rio. Estava sendo criado o Centro de Cultura Popular (CPC) da UNE, pelo Vianninha. O Leon Hirschman já tinha me contatado em Brasília pra eu conseguir dinheiro pro CPC. Quando cheguei ao Rio, a Thereza Aragão, minha mulher, já estava trabalhando no CPC. Vianninha foi lá em casa e me pediu pra fazer um poema de cordel pra servir de estrutura pruma peça sobre reforma agrária. E aí eu escrevi João Boa Morte, Cabra Marcado pra Morrer. A peça nunca foi escrita.

[25] Ziraldo - E aí você abandonou toda a sua poesia sofisticada, sua estrutura...
Gullar - Que já entrava em crise. É tudo ligado, não há nenhum altruísmo, idealismo. Como a minha poesia de vanguarda estava em crise, surge um Brasil da luta pela reforma. Aí eu tô em Brasília, leio Marx, junta tudo. Eu digo assim: "Agora eu vou virar brasileiro". Comecei a ler sobre o Brasil.

[26] Ziraldo - Você explica tudo.
Gullar - Eu explico. Vivo pensando. O pessoal me apelidava de 'profissional do pensamento'.

[27] Ziraldo - A poesia continua perpassando sua vida toda, não te abandona nunca.
Gullar - Eu sou poeta. Faço todas as outras coisas, mas a coisa que eu sou é poeta. E eu tô sempre em crise, não tenho projeto de vida nem de obra.

[28] Lena - Qual foi o poema que marcou essa virada?
Gullar - Qual virada? Qual delas?


[29] Ziraldo - Foi João Boa Morte!
Gullar - João Boa Morte não é poesia, é cordel. Eu entrei num impasse, porque eu fui um dos mais audaciosos poetas de vanguarda. Eu cheguei a fazer um Poema Enterrado, um poema que é uma sala. Não existe, na literatura mundial, nenhum poema louco como esse. Era o neoconcretismo. O Poema Enterrado é uma arquitetura, uma sala de 3m2 pra conter uma só palavra, 'Rejuvenesça'. O cara descia, num túmulo, tirava uma caixa, tirava outra caixa, e outra, e no fim lia a palavra 'Rejuvenesça'. Muita sacanagem! Quando eu vi isso, eu tomei um susto. Pensei assim: "Onde é que eu vou parar? Não sou arquiteto, não sou escultor, não sou artista plástico. Eu vou parar, por aqui não dá pra continuar".

[30] Caco - Você achava que já estava nos limites da poesia?
Gullar - É. Eu pensava assim: "Isso tá tudo interessante, mas não dá pra ir adiante, porque eu não vou virar agora artista plástico ou arquiteto". E entrei em crise. Minha vida toda é isso. Veja A Luta Corporal: eu vou até explodir os poemas. Explodo os poemas e entro em crise, não sinto mais prazer. Aí entra a poesia concreta e neoconcreta. Eu vou até o Poema Enterrado e entro em crise, não sei mais o que fazer. Aí viro revolucionário. E não tô mais fazendo literatura, não é mais a minha preocupação. Eu quero fazer a revolução. Eu quero usar a literatura para fazer a revolução. A qualidade literária não é o que está me interessando ali. E o CPC dizia claramente isso: "Estamos usando o teatro, a poesia, para fazer a revolução", como instrumento. É claro que havia um erro, aí. E qual era? É que nós nem fizemos a revolução, nem fizemos literatura.


[31] Marcelo - Você ainda não contou por que sua filiação ao Partido Comunista se deu em 1º de abril.
Gullar - Eu estava no CPC, e aí veio o golpe, dia 31 de março. Nós estávamos na UNE. Quando foi lá pra meia-noite e pouco, um grupo foi dormir e outro ficou. Eu saí, pra dormir. Quando acordei, às dez da manhã, o noticiário já era do golpe. Chegamos na Cinelândia, e os tanques já estavam ocupando a praça. Quando chegamos na Praia do Flamengo, estavam tocando fogo na UNE, jogando coquetel molotov. Ficamos presos ali na confusão, com medo de ser descobertos. Quando foi à noite, fomos pra casa do Carlinhos Lyra, onde tinha uma reunião. Nessa reunião, eu disse: "Antes de começar a reunião, eu quero dizer que o Partido me considere seu membro, a partir de hoje".

[32] Camila - E aí vem o grupo Opinião.
Gullar - O Opinião vem em seguida, formado pelos antigos membros do CPC, que foi dissolvido. Nós tínhamos que continuar brigando, mas não podíamos aparecer com a cara do CPC, um CPC-2. Tinha inquérito policial em cima. O Vianninha teve a idéia de fazer o show Opinião, a partir do disco que a Nara Leão tinha gravado. Muita gente até hoje pensa que o disco dela foi resultado do show, mas é anterior. Foi ouvindo o disco que o Vianninha teve a idéia do teatro. Por causa disso, nasceu o Teatro de Arena.

[33] Poerner - Foi o primeiro movimento de resistência cultural à ditadura.
Gullar - Foi, foi. Os primeiros comícios e atos públicos contra a ditadura aconteceram dentro daquele teatro. Depois do Opinião vem Liberdade, Liberdade, montagem de textos feita pelo Flávio Rangel e Millôr Fernandes. Era muito engraçada e enfrenta a censura, porque citava Platão, Aristóteles e Voltaire, ninguém tinha o que dizer. A peça misturava tudo, era um panorama das idéias contra e a favor da liberdade. A terceira peça foi o Bicho [Se Correr o Bicho Pega, se Ficar o Bicho Come], feita deliberadamente pra burlar a censura, pra vencer a censura. Pensamos: "Essa peça tem que ser engraçada, brilhante e muito bem escrita, uma obra literária, pra poder impressionar os caras e eles não quererem nem tocar nela". Por isso, caprichamos. A peça foi escrita em verso, Vianninha fez a primeira versão e eu a final.


[34] Ziraldo - Você participou daquela opereta do Carlinhos Lyra... Como é que chamava?
Gullar - Auto dos 99%. Não, não participei. Sabe o que quer dizer esse título? É que só 1% entra nas universidades, então 99% estão fora. Este é o Auto dos 99%. Uma das músicas da peça é a Canção do Subdesenvolvido. Aquele disco é uma obra-prima, cara. O produtor artístico era o Armando Costa, que fez uma coisa belíssima.

[35] Poerner - Quando é que você viu esgotadas as possibilidades da luta cultural e teve que se exilar?
Gullar - Em dezembro de 68, com o Ato Institucional, fechou tudo. Mas a razão do meu exílio é outra. Primeiro: em 69 houve uma convenção do Partido e, contra a minha vontade, me elegeram para a direção estadual. Havia uma luta interna, no Partido, entre a posição moderada, que era a minha, e a posição da luta armada, do Mário Alves e do Marighela. Uma das formas de ganhar essa disputa era eu ser candidato e integrar a chapa. Resultado: passei a ser dirigente do Partido, sem nunca ter dirigido nada, sem ter participado de uma reunião. Eu dizia: "Cara, isso é um risco pra vocês e pra mim. Eu sou um cara legal, tô trabalhando na imprensa, todo mundo me conhece. Isso vai dar uma cagada". Prevalece, como se sabe, a contingência política. Quando caiu um companheiro nosso, do comitê cultural, foi torturado e abriu a boca, denunciou todos os membros. O Partido me chamou: "Escuta, Dias Gomes é só intelectual, Alex Viana é só intelectual. Mas você, não, você é da direção. Vão te torturar até te matar. E você não sabe de nada, não vai poder dizer nada". Aí eu fui primeiro pra clandestinidade. Um ano clandestino, aqui mesmo. Fiquei oito meses num quarto, na casa do Léo Vitor, só saindo de noite pra ver televisão.

[36] Marcelo - Quem sabia que você estava lá?
Gullar - Ele e o resto da cidade. O Léo só tinha um quarto, e mesmo assim me deu abrigo. Ele era um ser humano formidável, quero prestar minha homenagem a ele. A ele e a pessoas que ninguém conhece, do Partido, pessoas raras, seres humanos formidáveis que não vão estar em qualquer panteão. Eu fiquei no escritório do Léo. Durante esse período, trabalhei na enciclopédia do Houaiss. Um dia, a empregada vem e diz: "Olha, seu Gullar, o seu Léo tá muito mal, e precisamos chamar a família, pra tomar conta dele". Aí desce um médico, que morava em cima. Bate na minha porta, chamando meu nome. Eu pergunto: "Ué, você sabe que eu tô aqui?" E ele diz: "Sei. Desde o dia seguinte. A empregada do Léo sabia, contou pra minha empregada".


[37] Marcelo - Você sabe se estava sendo procurado, mesmo?
Gullar - Claro. Foram à minha casa, prenderam a Thereza, colocaram dentro de um carro, ameaçaram... O pior é que o radicalismo da minha procura coincidiu com o seguinte: eu me chamo José Ribamar Ferreira, como outros trezentos mil maranhenses. Tinha um José Ribamar Ferreira que fazia parte da luta armada no campo. E aí juntaram os dois, fiquei misturado com o cara. Quando foram lá prender a Thereza, estavam certos de que iam encontrar armas e o cacete. Quando começaram a fazer perguntas, ela desconfiou de alguma coisa: "Acho que vocês estão falando de outra pessoa. Meu marido é escritor, jornalista..." E soltaram ela. O fim dessa história é engraçado. Muito mais tarde, depois de eu voltar do exílio, chamei meu advogado e disse: "Vai lá no Superior Tribunal Militar e tira um certificado de que eu estou absolvido". Ele foi e trouxe o certificado: "Está absolvido José Ribamar Ferreira, filho de Antonio não sei o quê..." Não eram nem meu pai nem minha mãe! Eu fui perseguido e ele foi absolvido!

[38] Ziraldo - E como é que você foi parar na Argentina?
Gullar - Isso é outra história. Da casa do Léo, fui pra casa da Ceres Feijó, que morava na Tonelero. Mas tinha visita que não acabava mais, pra família, e eu vivia me escondendo no quarto. Resolvi ir embora e fui pra Moscou. Botei um bigode, óculos escuros, fui levado de carro pelo Renato Guimarães pra São Paulo, de lá peguei um ônibus até Porto Alegre e de lá, depois de raspar os bigodes, fui passado pro outro lado, pro Uruguai. De lá pra Buenos Aires e depois pra Paris, porque não se ia direto pra Moscou, naquela época. De paris, finalmente pra Moscou. Fiquei quase dois anos lá, fiz o curso na escola marxista-leninista.

[39] Camila - Moscou, Santiago, Lima...
Gullar - É, e depois Buenos Aires. Quase sete anos de exílio.

[40] Ziraldo - Você escreveu pro Pasquim, nessa época, com um pseudônimo.
Gullar [rindo muito, divertido] - Ah, que pseudônimo mais filha da puta: Frederico Marques! Mistura de Frederic Engels e Karl Marx. A gente tava sempre sacaneando os milicos.

[41] Lena - Nessa época toda de exílio você teve algum apoio de jornal...?
Gullar - O Estadão nunca me demitiu. Reduziu meu salário de redator, mas pagou religiosamente todo mês. E eu não trabalhava. Quando cheguei no Chile, falei com eles: "A situação aqui tá interessante, posso fazer algumas matérias". E eles: "Não, não, pelo amor de Deus, não queremos nada, não manda nada!"

[42] Ziraldo - Vamos falar do Prêmio Nobel, Gullar. Eu acho que, se é indicado pelo seu país, para o país já é. Você é o nosso Prêmio Nobel de Literatura.
Gullar - Tenho muitos amigos que gostam de mim, mas não sou muito premiado. Isso começou a acontecer recentemente. O Prêmio Jabuti, por exemplo. Tenho uns dez amigos que já ganharam, e eu só fui receber no ano retrasado. Mas não tô reclamando não. Eu sou muito rebelde demais, não puxo o saco de ninguém, não faço política literária... É claro que o moleque da Rua da Alegria jamais sonhou com uma coisa dessa. É um disparate. Jamais me passou, mesmo naqueles momentos em que a gente fica meio megalomaníaco, jamais me passou uma coisa dessa pela cabeça. Prêmio Nobel pra mim é Faulkner.


[43] Lena - Mas você gosta da idéia?
Gullar - Eu acho dificílimo isso acontecer. Mas não posso, diante das pessoas que se mobilizaram pra me indicar, assumir uma atitude blasé. É uma coisa importante pro país. Eles pensaram, segundo eles próprios disseram, que o país já deveria ter ganhado esse prêmio. E pela primeira vez vamos entrar nessa disputa profissionalmente. Porra, um cara como Jorge Amado não ter ganhado o prêmio? Sacanagem! Mas, segundo me falaram, a indicação foi feita amadoristicamente, mandaram uma carta pra lá e pronto. Você tem que oferecer aos caras que vão julgar os dados, as informações, os meios de chegar à obra, tá entendendo?

[44] Caco - Este ano estão sendo relançados dois ensaios teus, de mais de 30 anos, que são o Cultura Posta em Questão e o Vanguarda e Subdesenvolvimento. Qual é a motivação para este relançamento? Os ensaios ainda são atuais, foram atualizados?
Gullar - A editora José Olympio propôs reeditar o livro, não foi iniciativa minha. Eu escrevi um prefácio crítico sobre os dois livros, comentando sobre o que eu discordo e concordo nessas obras. Meu pensamento mudou, e eu tinha que dizer isso.

[45] Reynaldo - Você poderia, aproveitando o relançamento desses ensaios, fazer um balanço, pra gente, do modernismo e suas implicações?
Gullar - Eu sou muito simpático ao modernismo. Foi um movimento decisivo para o processo cultural e artístico do Brasil.

[46] Reynaldo - Você não acha que pode ter havido, num determinado momento, uma supervalorização da Semana em si, em detrimento do movimento?
Gullar - Sim, claro. A Semana é só um ato, o manifesto, a maneira que os caras tiveram de anunciar o que estava acontecendo. O importante é a ruptura com formas e valores do passado e a abertura do Brasil para a experimentação e o reencontro de si mesmo. É uma característica que não é comum nas vanguardas européias, a valorização do nacional. A partir daí você tem, em todos os campos artísticos e mesmo na sociologia e história, obras fantásticas. Nessa minha teoria da reinvenção onde a gente se reinventa, os povos também se reinventam, e nisso os artistas e intelectuais têm um papel muito importante.

[48] Marcelo - Você acha que, de 1960 pra cá, a sociedade está evoluindo? Melhorou?
Gullar - Melhorou. É só você ir ao interior do Maranhão e você vê. Tem muita miséria, ainda, longe de mim ignorar isso. Mas tem mais estradas, mais escolas. Não podemos fazer avançar se nós negamos tudo. Tem que distinguir entre o interesse partidário e o país, senão nós entramos num beco sem saída. Se o partido está a fim de defender o seu interesse partidário e negar tudo o mais em função desse interesse, onde é que vamos chegar? Verificar que há 50 milhões de miseráveis, abaixo da linha da pobreza, é uma vergonha. Mas é preciso verificar também que, em vez de atacar o governo, seja esse ou qualquer outro, precisamos atacar as classes dominantes, cara, atacar o capitalismo. Tem que mostrar quem é que rouba, quem é que fica com o pão que a gente não come.

[49] Camila - O que seria um projeto popular para o Brasil? Você, como Periquito do Maranhão, CPC da UNE, Museu de Arte Popular, dizendo que temos que acabar com a elite dominante...
Gullar - Não, eu não falei que temos que acabar com a elite dominante. Eu não acredito nessas coisas, isso tudo é sonho de juventude. Temos mais de um século de luta contra as classes dominantes e não acabamos com ela. Quem acabou fomos nós, o que acabou foi o socialismo. Não é por aí. Radicalismo acaba chegando em Bin Laden. Quem admite a complexidade do real não é sectário. Só é sectário quem simplifica a realidade. É uma ilusão ficar querendo soluções imediatas, é coisa que já passou. O século 19 gerou esse sonho maravilhoso, que não deu certo.


[50] Caco - E a poesia, hoje? Qual é o papel da poesia numa sociedade cada vez mais imediatista, capitalista, consumista, pessimista?
Gullar [cantarolando] - Mais que nunca é preciso cantar... [gargalha de perder o ar] É exatamente isso! Nós estamos enfrentando um processo de banalização de tudo, de falsos valores, onde a venda é que vale como medida, e isso acaba entrando no campo cultural, dos livros, das editoras. É um processo onde a coisa que vende é o valor. Quanto mais materialista é a sociedade, quanto mais consumista ela é, mais necessária é a poesia. Os poetas se juntam em suas pequenas editoras, publicam seus livros isoladamente, em tiragens pequenininhas, e tal, e essa é a resposta. Sair do mercado, do sistema. O homem inventa maneiras de se safar, porque o que interessa pra ele é o afeto, a imaginação, a beleza. O cara vai buscar onde tem ar.

[51] Poerner - Já entrevistei você quando era presidente do Museu da Imagem e do Som, num trabalho que virou até livro. E hoje, entrevistando você novamente, vejo que ainda não falamos de uma coisa fundamental: a atividade de crítico de arte. Você tem uma crítica contundente à impostura e à charlatanice nas artes plásticas, e parece meio pessimista quanto ao futuro.
Reynaldo - Eu formulei uma questão parecida. Como distinguir o que tem valor estético nas diversas manifestações da arte contemporânea? O que é arte e o que é impostura?
Gullar- Isso é uma coisa muito delicada. Eu não considero que a vanguarda, desde o seu início até hoje, seja charlatanismo. Nunca disse isso. Trata-se de um processo legítimo, historicamente determinado, com causas, com limitações. Não é uma coisa que alguém inventou de sacanagem. Foi determinada pelo curso dos acontecimentos, pela dialética interna da arte e pela sociedade. O que eu digo é que esse processo se esgotou, como todo processo. O barroco se esgotou, o neoclassicismo se esgotou, o romantismo se esgotou. Esse processo, que se chama vanguarda, se esgotou.
O processo que deu origem à vanguarda, o questionamento das linguagens artísticas existentes, gerou uma experiência nova na arte, dimensões novas da percepção e da experiência estética. Só que, exatamente porque produziu o que produziu, esgotou-se. Mas algo continua sendo feito, a decorrência natural de um processo onde não há mais indagação, nem descobertas. Não há mais nada, só a academização da vanguarda. Fazer uma exposição de urinol é repetir o Duchamps de 1917. Uma coisa é a linguagem da poesia ou do romance, que é uma linguagem que diz coisas que não são ela, é veículo. Mas quando a linguagem se torna seu próprio conteúdo, ela vai ao extermínio, não tem saída. Quando a própria linguagem só fala dela, vai variando suas possibilidades.
Mas toda forma tem limites de variação. Chega numa hora em que, por ser uma coisa autofágica, chega ao seu limite. Tem séculos de pintura falando da vida, mostrando paisagem, o ser humano, mitologia, a pintura falando das coisas. Mas quando a pintura só fala da pintura, ela vai, vai, vai e só tende a se esgotar. Chegou nesse ponto, e isto se deu muito mais cedo do que se pensa. O Duchamps é um artista que encarna de maneira radical o mais radical dos movimentos de vanguarda, o dadaísmo. O cubismo não tem teoria, propõe coisas. Mas ele coloca uma questão: a inversão da relação entre a linguagem e a natureza.
Cézanne, grande pintor revolucionário e que anuncia o cubismo, diz: "Sem a natureza, não existe pintura". Mas o cubismo, que nasce dele, inverte a relação. Não parte da natureza, parte da tela. Juan Gris diz: "Cézanne, de uma garrafa, fazia um cilindro; eu, de um cilindro, faço uma garrafa". Aí vem o futurismo, o expressionismo, e o dadaísmo (que não tem o que quebrar, porque já tá tudo quebrado) vem e diz: "Ser dada é ser anti-dada". Entra na tautologia, não tem mais saída. Duchamps diz: "Valor estético é hábito". E propõe a anti-arte. Quando você faz isso, torna-se contra a arte, contra você mesmo. Não é por acaso que Duchamps só tem duas obras que ele nem terminou! Ele é um artista inteligente e talentoso, mas ratté, pelo radicalismo que se impôs.
Ele adota uma atitude que não dá saída pra ele. Enquanto fica criando cálculos artificiais e malucos pra fazer uma arte sem emoção, Picasso está em seu ateliê, alucinado, fazendo pintura, cerâmica, litogravuras, criando sem parar. Um verdadeiro artista. O segredo de Duchamps, do ready-made, é deslocar um objeto de sua função. Isso não tem saída. Eu me ajoelharia e beijaria os pés do artista que reinventasse a arte amanhã, que fizesse uma coisa maravilhosa que me deslumbrasse. Eu vivo me deslumbrando.

[52] Caco - Você é otimista quanto a possibilidades de reinvenção?
Gullar - Vou colocar uma questão pra você, antes. Todas as artes entraram na vanguarda, todas. A pintura, a escultura, a arquitetura, a música, a literatura. Mas todas, em um certo momento, pararam, repensaram, retornaram ao seu leito, incorporaram as conquistas da vanguarda e recomeçaram. Agora, vamos imaginar Finnegans Wake, o limite da experiência vanguardista da linguagem narrativa. A continuação de Finnegans Wake seria o quê? Simplesmente, se fosse por aí, não teríamos Faulkner, Camus, Hemingway, Guimarães Rosa, Graciliano... Não teríamos toda a ficção italiana moderna, não teríamos mais nada. Então por que, nas artes plásticas, isso continua?


[53] Reynaldo - Aí entramos no problema do mercado...
Gullar - Ah, você respondeu. A resposta é essa. A resposta está fora da arte.

[54] Ziraldo - O que você acha hoje da práxis comunista, da experiência soviética, da Albânia, da África? A experiência comunista foi um fiasco?
Gullar - Sou um profissional do pensamento, como você sabe, e vivo pensando. Eu vou desenvolver aqui a minha tese. O capitalismo é uma força da natureza, não foi planejado, nasceu do processo econômico e social natural. Como a natureza, ele é destituído de ética, de escrúpulo, não tem bem nem mal. O negócio dele é "vamos pra frente", o mais forte vence. O problema é produzir e lucrar. Ao mesmo tempo é fecundo e criativo, como a natureza, e injusto e cruel, como a natureza. E o que é o socialismo? É a intervenção do ser humano nesse processo: "Vamos regular e estabelecer a ética do trabalho, a divisão, a igualdade". Em vez de o rio ficar transbordando e inundando tudo, matando milhares de animais, a partir de agora ele vai caminhar dentro do quadro e produzir energia elétrica, domado.
Essa que é a proposta: canalizar o rio. O problema aí é o seguinte: em tudo, não só na política, a coisa mais difícil é domar o processo da vida, que excede a qualquer teoria e qualquer possibilidade de normalização. A proposta é extraordinária, mas está acima da possibilidade humana. O que aconteceu? No momento em que você detém esse processo e tenta regularizá-lo, você o empobrece.
Na anarquia capitalista, o Bill Gates, num fundo de garagem, constrói aquela porra daquele negócio e vira esse troço. Jamais aconteceria na União Soviética uma coisa dessa. Mas quando se regula e se impõe disciplina, aí se reduz a criatividade. Ao mesmo tempo que se cria mais justiça, mais igualdade, tem a contrapartida. Se eu enrijeço a poesia, faço uma poesia mais perfeita do ponto de vista formal, mas mais pobre do ponto de vista da emoção e do sentimento. Não tem saída. Sempre é assim.
O capitalismo é emocional e filho da puta, o socialismo é racional. Eu não acredito que uma conspiração acabou com o socialismo, que o Gorbachov é responsável por isso. Acho isso uma sacanagem. É como chamar um médico prum paciente que tá morrendo e depois dizer: "Foi você que o matou". Sacanagem. Na União Soviética, você tinha conquistas extraordinárias. Uma sociedade onde ninguém passa fome é uma conquista, uma sociedade onde todo mundo estuda, sem exceção, e ainda se paga pro cara fazer curso superior, onde todo mundo tem assistência médica e férias! Houve todas essas conquistas do ponto de vista do humanismo, da solidariedade, da realização humana. Mas aí entram os outros problemas, do próprio processo econômico.

[55] Reynaldo - Você não acha que foram também os custos da corrida armamentista?
Gullar - Foi o golpe de misericórdia. Mas já havia o problema da defasagem tecnológica, essa diferença enorme, inclusive orientada para a pesquisa na área militar, em detrimento de outras áreas, por causa do próprio arrocho em que viviam. E tinha outros problemas. Eu me lembro de uma piada que corria lá na União Soviética quando Bangladesh se libertou. O pessoal falava: "Caceta, vamos ter que sustentar mais um!" O meu pensamento é o seguinte: o fato de o socialismo ter fracassado não torna o capitalismo bom. Ele ganhou a parada, por razões táticas, mas continua a ser criador de desigualdades, concentrador de riquezas, injusto, desumano.
Eu não vejo, em curto prazo, uma solução socialista. O socialismo foi uma utopia que incendiou a imaginação das pessoas do final do século 19 até aqui, até o Muro de Berlim. Achar que isso vai de novo retornar com o mesmo ímpeto? Não vai, a vida não é assim. Isso me lembra do dia em que Allende foi derrotado e um amigo meu me disse assim: "Gullar, é agora que vamos ganhar!" Porra! A gente tinha o Exército, a Marinha, a Aeronáutica, o Governo, a Presidência da República e não ganhamos.
"É agora que vamos ganhar?" Eu não me iludo. A utopia do socialismo não vai incendiar ninguém. Mas a necessidade da justiça na sociedade é irredutível. O ser humano não é justo na sua totalidade, mas a justiça não nasce no mato. O homem inventou a justiça como ideal, inventou o bem, a virtude, a ética, todos esses valores. Inventou o que nós queremos ser. Nós queremos ser melhores do que nós somos. Então, com a derrota do socialismo, o homem vai parar de lutar por uma sociedade mais justa? Não vai e tá provado que não vai, cara! O homem não vive sem ideal, e o capitalismo não oferece nada, só consumismo e lucro, só ambição, é uma coisa estreita. Nunca houve revolução comunista em parte alguma do mundo, nem na União Soviética. Nunca houve. Tem que acabar com isso, botar o pé no chão. Ser a favor de uma sociedade justa, sim, tem que lutar por isso. A gente não resolve os problemas de nossa vida, de nossa família, dentro de casa. Imagina os problemas de um país. Temos que ser mais modestos, baixar a crista. Esse é que é o problema. Tem que ter paciência. Kafka diz: "O homem perdeu o paraíso pela impaciência".



[56] Marcelo - Mas não houve um certo período de anestesia em todo o mundo, em que dissemos: "Fudeu, não tem mais saída?"
Gullar - O Saramago ficou zangado comigo, por causa de um debate. Ele fez uma intervenção como essa, de que o capitalismo tomou conta de tudo, que somos manejados até o cartão de crédito, e tal, e que não tem saída. Como aquilo era um debate, com o maior respeito que tenho por ele, pedi a palavra e contei uma história. Vocês conhecem a experiência do cão de Pavlov? Toca a sineta, dá comida pro cachorro; toca a sineta, comida; toca a sineta, não dá comida e o cão saliva do mesmo jeito. Mas como é que terminou a experiência? Alguém sabe? Pouca gente sabe. Na vigésima vez que tocaram a sineta e não deram comida, o cachorro vomitou e se descondicionou! É assim que termina! Vomitou! Descondicionou! Eu citei isso lá e fui aplaudido, porque há esperança. Se o cachorro se descondiciona, não dá pra acreditar que alguma forma na sociedade vai ser condicionada de tal maneira que não possa se descondicionar. O homem procura o que é melhor e vai buscar. Não dá pra acreditar que a humanidade vai trabalhar contra ela mesma a vida toda.

[57] Marcelo - Você acha que nós já estamos nos descondicionando?
Gullar - Acho que é impossível que a sociedade seja condicionada integralmente. A realidade se impõe, é a própria vida. A necessidade de justiça é uma coisa inalienável do ser humano, porque dá sentido à vida. Vou aproveitar pra dizer uma coisa a vocês: acho que o homem é uma invenção dele mesmo. Nós não somos natureza, embora tenhamos uma base natural. Nós inventamos tudo: Deus, a cidade, o teatro. Vivemos num mundo cultural. A própria natureza em que vivemos é cultural, modificada. O homem inventou o universo em que vive. Então, não tem sentido ser pessimista. Não tem sentido o cara ficar chorando... Não tem sentido? Inventa, caralho! A vida não tem sentido mesmo! E nós inventamos todo dia um sentido pra ela. Nossa aventura é essa, nos reinventar a nós mesmos.

[58] Ziraldo - Eu sou da sua geração, convivi com toda essa gente de nossa geração. Sarney deve ser o melhor amigo do ZÉ APARECIDO do lado de lá, e eu devo ser o melhor amigo dele do lado de cá. Mas eu não consigo entender como é que o SARNEY, com a sensibilidade de poeta, aceitou ficar rico como ficou, dominar todos os meios de comunicação do estado, se associar às piores pessoas da história do Maranhão. Como é que você pode, você que sofreu tanto por querer um país melhor, ir à televisão e dizer que a ROSEANA é do caralho? Como você explica isso?
Ferreira - Eu sou desligado do Maranhão, não conheço muitas coisas que você citou. Que ele tem um jornal, sei que tem. Que ele exerceu poder no maranhão, sei que exerceu. Mas sei muitas coisas a favor dele, como o fato de ele ter colocado amigos nossos, comunistas, dentro do seu governo. O que eu sei da Roseana também é pouco, não vivo em contato com o que acontece no Maranhão. Estive lá para a inauguração da Avenida Ferreira Gullar, e o povo avançava rompendo o cordão de proteção para abraçá-la, beijá-la, colocar o filho pra ela beijar, um negócio delirante. Não vi ninguém chegar pra mim, lá, dizendo que o governo dela é uma merda.
Ela fez o primeiro governo e no segundo teve 87% de aprovação. Eu acho que é muito difícil fazer política sem sujar as mãos, por isso mesmo nunca me meti nisso. O Lula não tá agora querendo fazer acordo com o PL, que tem junto dele o bispo Macedo, que é um picareta mundial? É uma contingência muito difícil. O PT está isolado dentro da esquerda. Se não fizer aliança com ninguém, perde a eleição. Se correr o bicho pega.
Não é uma coisa meramente moral de dizer que "o Lula é um escroto". Política conduz a essas coisas, é um jogo. Isso com o PT, que é um partido exemplar dentro da política brasileira. Imagina o que é o político individual, sem uma estrutura ideológica dessas, fazendo política dentro do Maranhão? É difícil.
O que eu disse da Roseana é o que eu penso. Eu disse simplesmente o seguinte: "Ela é uma pessoa que realiza um governo aprovado pelo povo do Maranhão e que pertence a uma nova geração de políticos que não aceita mais esse Brasil da corrupção e da safadeza". Mas eu não disse que vou votar na Roseana.

[59]Marcelo - Você já sabe em quem votar?
Gullar - Não.
Pra não dizer que não falamos de POEMA SUJO
Há quem vá reparar, certamente, que nesta entrevista não se falou no "mais importante poema brasileiro da década", como o definiu Vinícius de Moraes, o "poema nacional", como o consagrou Otto Maria Carpeaux. O Poema Sujo, épico, onomatopaico, espacial e vertical, maranhense e nacional, em suas cem páginas (ou, por outra, em sua página única), cuja primeira edição data de 1976, expressa a vida do poeta, transmutando-a em cuspe, urina, apodrecimento e carniça. As bananas apodrecem (não do mesmo modo que uma pêra ou que um rio), e são variados os modos como uma coisa está em outras. Essa seria a lição do poema, se o poema se propusesse a ensinar lições. Na verdade, o poema é um convite:

Voas comigo
Sobre continentes e mares
E também rastejais comigo
Pelos túneis das noites clandestinas
Sob o céu constelado do país
Entre fulgor e lepra
Debaixo de lençóis de lama e terror
Vos esgueirais comigo, mesas velhas,
Armários obsoletos gavetas perfumadas do passado,
Dobrais comigo as esquinas do susto
E esperais esperais
Que o sai venha

Há, no entanto, quem nem tenha reparado que não falamos no Poema Sujo. Há até mesmo quem jamais o tenha lido. Nesse caso, só nos resta fazer nossas as palavras do próprio poema:
"quanta coisa se perde nesta vida". (Caco X.)
Cidades imaginárias

[60] Ziraldo - Eu queria contar para as pessoas (pouca gente conhece) sobre as CIDADES IMAGINÁRIAS que você cria. Queria que você escolhesse uma dentre elas, pra publicar junto com sua entrevista. [Explicando pra todos] O Gullar criou uma porrada de cidades, e conta a história delas como se elas realmente existissem. Mas parece que as pessoas ainda não descobriram isso.
Gullar - Claro, claro. Eu sou poeta, e quando publico livro de poesia, ficam todos em volta. Mas se eu publico crônicas, ninguém dá importância. Modéstia à parte, o meu livro de crônicas é muito engraçado.

Caricaturas

[61] Ziraldo - Você sabia que você é uma das pessoas com mais ibope em salões de humor? Todo mundo faz uma caricatura sua.
Gullar - É mesmo, rapaz? Que coisa...
Ziraldo - Confira nas páginas desta edição.
[fim da transcrição da entrevista]




Entrevista Ferreira Gullar: 85 anos de poesia [10set2015]


Fonte: FRONTEIRAS DO PENSAMENTO; Jornal O GLOBO, Por Ubiratan Brasil /O Globo -10.09.2015 | Ferreira Gullar| #Arte  #Literatura




[APRESENTAÇÃO]
A poesia persegue Ferreira Gullar e não o contrário. “Posso passar anos sem criar um verso, pois necessito do espanto que ela me provoca para então escrever", conta o poeta, que completa 85 anos hoje, dia 10 de setembro. 
A criação literária é apenas um dos temas tratados em sua mais recente obra, Autobiografia poética e outros ensaios. O livro, que reúne um ensaio inédito, entrevistas e artigos sobre poesia, é seu primeiro pela editora Autêntica, que lança, ainda este ano, uma nova edição de O formigueiro (1955), em parceria com a Academia Brasileira de Letras (ABL), e prepara para 2016 uma coletânea de textos do poeta sobre artes plásticas.
Os 85 anos do poeta não são empecilho para uma agenda lotada.
Conferencista do Fronteiras do Pensamento São Paulo no dia 30 de setembro, Gullar é um dos destaques da Bienal do Livro do Rio de Janeiro, participando do café literário Ferreira Gullar: poesia e prosa, no domingo, 13 de setembro [2015], às 15h.
Em entrevista ao jornal O Globo, Ferreira Gullar fala sobre sua obra e a importância da poesia em sua vida e na vida das pessoas: "O acaso é decisivo não só na vida pessoal, mas também na arte. Quando vou escrever um poema, a folha surge em branco, ainda não sei o que vai surgir ali. Qualquer coisa pode acontecer, a probabilidade é total porque a página está em branco." Leia abaixo:

[1] [Ubiratan Brasil] Como foi refletir sobre a sua história de poeta?
Ferreira Gullar: Jamais imaginei que me tornaria um poeta. Eu era um moleque de rua. Vivia jogando pelada, em São Luís, na rua. Jamais pensei porque na minha casa ninguém era poeta nem tinha livro de poesia. Acredito que as pessoas nascem com determinadas qualidades. O cara nasce com a tendência de ser um bom administrador. Assim como outro nasce jogador de futebol, pois traz internamente algumas qualidades que o tornam isso. Há também quem tenha tendência para ser ladrão, independentemente de ser rico ou pobre – a Operação Lava Jato não me deixa mentir.

[2] Esse DNA parece estar mais presente em você. Se pudesse viver só de poesia, faria isso?
Ferreira Gullar: Não. A poesia é algo incontrolável. Se alguém vive de poesia, ou morre de fome ou começa a escrever bobagens porque não é fácil assim. A poesia, como vejo, nasce do espanto, de alguma coisa que surpreende e que você tem necessidade de comunicar aos outros. É uma experiência de vida especial, não acontece todo dia. Isso é o que move o poeta a escrever. Sem isso, é possível até manusear bem as palavras, mas o poema fica vazio. É meu caso. Outro dia, disseram que eu garanti que não mais escreveria poesia. Nunca fiz isso. Algumas vezes, a poesia se arrancou, se negou a comparecer e fiquei perplexo, mas reconheci que parecia que não mais escreveria. Publiquei meu último livro há vários anos (Em Alguma Parte Alguma, de 2010), o que me deu a impressão de que não vou escrever mais. Claro que não é bom. Não é escolha minha. Mas as coisas não são eternas e, como isso não se controla, não digo que farei de qualquer jeito, ou que não vou fazer. Só constato que faz tempo que não faço.

[3] UB: É admirável seu rigor com a palavra. Como conjuga a emoção de fazer o poema e ele comover ao mesmo tempo?
Ferreira Gullar: Acredito que, se me comovo, outros também vão se comover. Passo no poema a emoção que tive. Às vezes, a situação é mais complicada e o poema saía menos acessível, dependendo do motivo que me levou a escrever. Minha preocupação é chegar a dizer aquilo que foi novo na vida, que experimentei ali, e encontrar a melhor maneira de expressar.
O acaso é decisivo não só na vida pessoal, mas também na arte. Quando vou escrever um poema, a folha surge em branco, ainda não sei o que vai surgir ali. Qualquer coisa pode acontecer, a probabilidade é total porque a página está em branco. Quando coloco a primeira palavra, reduz a probabilidade, agora já não é o acaso. Quando se escreve o primeiro, o segundo verso, aí o poema vai deixando de ser fruto da probabilidade e do acaso e vai se tornando necessário. Ele próprio começa a determinar o que entra ali ou não. Você não sabe o que vai resultar daquilo. É um jogo entre acaso e necessidade.
Cada poeta tem seu modo de se expressar. Com isso, aumenta a segurança de se expressar. E, com a experiência, é possível se tornar mais capaz de expressar o que se deseja.

[4] UB: Seu momento de vida é sempre importante na sua criação. Poema Sujo nasceu durante uma fase muito difícil de sua vida, de quase desespero – seria uma catarse?
Ferreira Gullar: Há quem acredite que os poetas sofrem muito para escrever. Não é verdade – no momento da escrita, surge uma felicidade. Escrever é uma alquimia, pois transformo sofrimento em alegria, em beleza, em emoção que o outro vai sentir. No Poema Sujo, eu realmente vivia um impasse, pois não sabia o que ia acontecer comigo. Eu já tinha saído da ditadura chilena e, na Argentina, preparavam outro golpe. Não tinha para onde ir porque em volta só havia ditaduras e, como meu passaporte estava vencido, não conseguia ir para a Europa. Tentei renovar na embaixada brasileira, mas me foi negado e ainda cancelaram o que eu tinha. Então, escrevi o Poema Sujo como se fosse a última coisa da minha vida, daí essa relação de emoções: eu estava no limite. Isso ninguém inventa. Eu preferia não ter vivido daquela forma, mas a vida é incontrolável. A situação era insuportável, mas o fato de eu ser capaz de expressar aquele impasse me ajudava. O pior é aquele que não consegue se expressar.

[5] UB: Como é sua relação hoje com Poema Sujo?
Ferreira Gullar: Não releio, mas essa Autobiografia Poética foi o caminho que encontrei para voltar àqueles momentos, desde quando publiquei A Luta Corporal, em 1954, quando descobri a poesia moderna, até Poema Sujo e outros poemas. Eu queria reviver aqueles momentos sem o sofrimento daquela época, sem um general na esquina para me fuzilar.

[6] UB: O Poema Sujo ainda é capaz de chocar as pessoas?
Ferreira Gullar: Acho que emociona. Claudia (Ahimsa, sua companheira, que conheceu em 1994) soube que foi criada uma banda de rock chamada Poema Sujo. Isso é legal, pois expressa a vida e beleza dentro do sofrimento. Cada qual tem suas perdas. Então, quando a pessoa se defronta com um poema que a comove é como se ela estivesse vivendo isso. É o melhor da literatura: compartilhar com o autor o sofrimento, mas de forma sensorial. É a tal alquimia: transformar sofrimento em alegria estética.

[7] UB: Como surgiu o título do Poema Sujo? Até parece uma contradição...
Ferreira Gullar: Nasceu de imediato, praticamente junto com o poema. Às vezes, escrevo um poema e não sei o título. No caso do Poema Sujo, eu não só tinha o título como sabia que teria de 70 a 100 páginas. Escolhi esse título porque sabia que ia falar de assuntos sofridos, de pobreza, que foi minha experiência de vida. Ele é sujo ao mesmo tempo que é poesia e tenta superar o sujo da vida, trazendo impregnada essa experiência. Eu não aceitava estar longe do Brasil, havia pessoas dispostas a passar anos na Europa, mas não era o meu caso – eu queria voltar a todo custo. Assim que pude, voltei, mesmo correndo riscos. Aí entra o Poema Sujo, que foi trazido ao Brasil pelo Vinicius de Moraes. A publicação me deu uma notoriedade que, praticamente, impedia qualquer ação dos militares contra mim. Quando cheguei ao aeroporto do Rio, havia uma ordem de prisão para José de Ribamar Ferreira, mas havia uma multidão me esperando e não puderam fazer nada. Ou melhor: me prenderam no dia seguinte, mas logo fui solto.

[8] UB: Como a poesia ocupa hoje a vida das pessoas?
Ferreira Gullar: Dizem que a arte revela a vida. Penso o contrário: a arte inventa a vida. Hamlet só existe na peça de Shakespeare. E existe porque, quando leio, ele renasce, alguma coisa é acrescentada. A Noite Estrelada, de Van Gogh, é uma noite a mais que ele acrescentou às milhares de noites que existem no universo. A poesia não é cotidiana, como assistir à televisão. Rubem Fonseca me disse, certa vez, que lemos um romance e esquecemos, enquanto a poesia sempre volta. Ninguém precisa ficar lendo a poesia todo dia. Mas, quando releio Elliot, Rilke, Drummond, me parece que estou lendo pela primeira vez, com prazer da descoberta.


 

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