A HISTÓRIA DO POEMA SUJO
Por Ferreira Gullar
[Cia.
Das Letras; 22ago2016]
Fonte: Cia.
Das Letras
Acesso RAS
2019-09-16
FERREIRA
GULLAR
|
Escrevi o Poema sujo em 1975, em Buenos Aires, depois de anos de
exílio em Moscou, Santiago do Chile e Lima.
Se a primeira parte do exílio foi
sofrida e atordoante (só me dei conta de que minha presença em Moscou era real
seis meses depois de estar vivendo lá), a última parte — queda de Allende,
reencontro traumatizante com a família no Peru — foi devastadora.
Transferi-me em 1974 para Buenos
Aires, cidade mais acolhedora e próxima do Brasil, mas, desgraçadamente, logo a
situação política se agravou, desencadeando-se a repressão às esquerdas e aos
exilados. À minha volta, os amigos começaram a ser presos ou fugir.
Com o passaporte vencido, não
poderia sair do país, a não ser para o Paraguai ou a Bolívia, dominados por
ditaduras ferozes como a nossa. Enquanto isso, a cada manhã, novos cadáveres
eram encontrados próximo ao aeroporto de Ezeiza, alguns deles destroçados a dinamite.
Sabia-se que agentes da ditadura brasileira tinham permissão para entrar no
país e capturar exilados políticos. Sentia-me dentro de um cerco que se
fechava.
Decidi, então, escrever um poema que fosse o meu testemunho final,
antes que me calassem para sempre.
Já fizera algumas tentativas de
evocar, em forma de romance, os anos vividos em São Luís do Maranhão. Não
conseguira ir além das setenta primeiras páginas, e o resultado não era bom.
Insistia naquilo por acreditar que o tema não cabia num poema. Mas a gravidade
e a urgência da situação não apenas mudavam minha relação com o passado como me
impeliam para o meu meio natural de expressão — o poema.
Não se tratava, porém, de
simplesmente evocar a infância e a cidade distante. Queria resgatar a vida
vivida (um modo talvez de sentir-me vivo), descer nos labirintos do tempo para
talvez, quem sabe, encontrar amparo no solo afetivo da terra natal. Não queria
fazer um discurso acerca do passado, mas torná-lo presente outra vez, matéria
viva do poema, da fala, da existência atual. Por isso pensei usar de
procedimento semelhante ao que adotara para escrever O formigueiro, em 1955.
Semelhante mas essencialmente
diverso: imaginei que poderia vomitar, em escrita automática (automatisme
psychique), sem ordem discursiva, a massa da experiência vivida —
lançar o passado em golfadas sobre o papel e, a partir desse magma, construir o
poema que encerraria a minha aventura biográfica e literária. Isso me ocorreu à
noite, na cama, e, apesar do estado de excitação em que fiquei, preferi esperar
a manhã seguinte para pôr em prática o projeto. E, de fato, mal me levantei,
engoli qualquer coisa e logo me pus em frente à máquina de escrever: mas o
“vômito” não vinha, e eu não sabia como provocá-lo.
Como meter o dedo na garganta da
linguagem se a linguagem não tem garganta? Fiquei desapontado; tudo o que
imaginara à noite mostrava-se inviável à luz do dia. O poema final e extremo
jamais seria escrito! Mas eu estava decidido a escrevê-lo e busquei o modo
possível de fazê-lo, já que o que importava não era o modo, e sim o poema
mesmo. “O poema deve começar antes de mim”, pensei, “começar antes do verbo.” E
foi um alívio quando, calcando lentamente as teclas, pude escrever:
turvo turvo
a turva
mão do sopro
contra o muro
Encontrado o umbigo do poema, ele
foi ganhando corpo. Escrevi cinco páginas e parei. Estava exausto e iluminado,
sabia que uma ampla aventura se iniciava, penetrara enfim a dimensão onde se
acumulara a riqueza incalculável e imprevisível do vivido. O fascinante é que
toda essa riqueza que estava dentro de mim — e está dentro de todos — parecia
agora acessível à expressão. E mais: tudo o que a constituía e que eu “sabia”,
desde momentos mais intensos até os mais banais, das pessoas às coisas, das
plantas aos bichos, tudo, água, lama, noite estrelada, fome, esperma, sonho,
humilhações, tudo era agora matéria poética já que eu me tornara um Midas,
capaz de transformar em poesia cada coisa em que tocasse.
De maio a agosto [1975], vivi entregue ao poema. Sozinho,
sem emprego, com um mínimo de obrigações, passava o dia mergulhado nele, no que
já escrevera e no que pulsava em meu corpo, em minha mente, no ar, e que era o
poema se fazendo, me usando para se fazer.
Inquieto, hanté, saía para a rua e
ficava andando pelos quarteirões próximos à avenida Honorio Pueyrredón, onde eu
morava, ou nas vizinhanças da estação Caballito do metrô, o coração aos baques,
a transformar em palavras e imagens a enxurrada de lembranças, sentimentos e
ideias que, desencadeada, ameaçava sufocar-me. Em seguida voltava para casa e
redigia as novas estrofes.
Em agosto, se não me equivoco, o
poema, que até ali fluíra naturalmente, estancou de repente. A atmosfera quase
mágica em que me movia desfez-se. A “viagem” terminara, o poema se dera por
findo. Ainda insisti em prolongá-lo, escrevendo outras estrofes, que logo
verifiquei descabidas e eliminei. Era impossível continuá-lo, mas, ao mesmo
tempo, faltava concluí-lo, faltava um fecho, que eu não sabia qual era.
Durante quase dois meses, deixei
de pensar nele, ocupei- -me de outras coisas. Até que um dia, inesperadamente,
comecei a murmurar:
O homem está na cidade
como uma coisa está em outra
Hoje, quando releio essa última
parte do POEMA SUJO, surpreendo- -me
com a sua perfeita adequação ao resto do poema, ou seja, com o fato de ter
produzido, sem perceber, a exata conclusão que ele exigia.
Bem, o poema estava concluído. À
parte qualquer juízo de valor, tinha noção de que, ao escrevê-lo, vivera uma
experiência poética única, por sua longa duração e pelo estado especial em que
o fizera, de extraordinária liberdade interior, que tornava atuais, presentes,
todas as palavras, todos os cheiros, os sons, os afagos, as sensações
experimentadas e as vozes ouvidas e lidas, da infância, da família, dos amores,
dos poetas. Guardei o poema.
Apenas a THEREZA, numa de suas idas a Buenos Aires, havia lido a parte
inicial dele, antes da leitura feita por mim, a pedido do VINICIUS DE MORAES, na casa do AUGUSTO
BOAL, para um grupo de amigos, quase todos exilados como eu. Após essa
leitura, VINICIUS, comovido,
pediu-me uma cópia do poema, queria levá-lo para o Brasil.
Finalmente, decidimos que seria
melhor gravá-lo numa fita, o que foi feito já no dia seguinte. No Rio, VINICIUS reuniu um grupo de amigos em
sua casa para ouvir o poema. Nas circunstâncias, ouvi-lo dito por mim, poeta
exilado, era certamente emocionante, e isso fez com que as cópias do poema se
multiplicassem e outros grupos se formassem para escutá-lo. Sem demora, recebi
do editor ÊNIO SILVEIRA carta
pedindo urgente uma cópia escrita do poema, porque ele queria editá-lo o mais
rápido possível. De fato, poucos meses depois, o POEMA SUJO estava nas livrarias, suscitando a iniciativa de
escritores, jornalistas e amigos para obter do governo militar a garantia de
que eu pudesse voltar ao Brasil sem sofrer represálias.
Só tomei conhecimento disso mais
tarde, quando o processo já se desencadeara. Mantive-me neutro mas interessado
no desfecho positivo dessas gestões que envolveram alguns cabeças da ditadura.
A resposta foi não. Mas eu já estava cansado do
exílio, com dois filhos doentes no Brasil e uma saudade insuportável.
Voltei, fui levado para o DOI-CODI, submetido a um interrogatório
de 72 horas ininterruptas, acareações e ameaças (ameaçavam sequestrar um de
meus filhos, internado numa clínica psiquiátrica). E eles sabiam tudo o que
desejavam ouvir de mim. No final, explicaram: “foi pra você não pensar que
podia voltar assim, de graça”.
De qualquer modo, devo ao Poema sujo o fim antecipado do meu
exílio.
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SOBRE O
AUTOR:
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FERREIRA
GULLAR
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JOSÉ RIBAMAR
FERREIRA (10set1930 – 04dez2016)
nasceu em São Luís do Maranhão e, nos anos 1950, mudou-se para o Rio de
Janeiro.
Publicou diversos livros de poemas, como:
Dentro da noite veloz (1975),
POEMA
SUJO (escrito no exílio em Buenos Aires; 1975) e
Na vertigem do dia (1980),
e ensaios sobre arte e cultura, entre eles:
Vanguarda e subdesenvolvimento (1969),
Relâmpagos (2003)
e
Experiência neoconcreta: momento-limite da arte (2007).
Resmungos (2006)
foi premiado com o Jabuti de Melhor Livro de Contos e Crônicas em 2007.
Por
mais de dez anos, Gullar assinou uma coluna no jornal Folha de S. Paulo.
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RONALD DE ALMEIDA SILVA
Rio de Janeiro, RJ, 02jun1947; reside em São Luís, MA, Brasil desde
1976.
Arquiteto Urbanista FAU-UFRJ 1969-1972.
Especialização em Desenho Urbano e Planejamento Regional (Univ. de
Edimburgo, Escócia, 1981-83).
Registro profissional (1972-2012 = 40 anos) CREA-RJ 21.900-D
Registro profissional (2013 em diante) CAU-BR A.107.150-5
Ouvidor Nacional
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Inspetor do GT e da
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