FACEBOOK; 30nov2015
Entrevista de Nauro Machado
Maio 2003
Fonte: Jornal
de Poesias; RASCUNHO; Ricardo Leão — Ponta Grossa – Paraná; maio 2003
Nauro (Diniz) Machado nasceu em São Luís do Maranhão, no dia 2 de
agosto de 1935. Um dos poetas brasileiros mais fecundos e importantes de todos
os tempos, ainda esperando por uma devida consagração crítica e de público de
sua imensa obra, com mais de trinta títulos até o momento. Nesta entrevista, a
maior e uma das poucas concedida (por ele mesmo considerada a mais importante
até agora), Nauro faz um depoimento nodal, complexo, em que compõe um quadro
amplo de sua visão ímpar da vida e da poesia. Comparado por alguns críticos a
Fernando Pessoa, Nauro possui uma obra realmente singular, distinta de qualquer
poeta contemporâneo, mesmo de sua geração, por apresentar traços de reflexão
existencial angustiada e violenta que encontra poucas comparações na lírica de
língua portuguesa. Conhecido, traduzido e citado por um não diminuto círculo de
intelectuais (Drummond, Cabral, Cassiano Ricardo, Alfredo Bosi, Luciana
Stegnano Picchio, Fábio Lucas, Ferreira Gullar, entre muitos outros), em livros
de história literária e antologias internacionais, enciclopédias e dicionários,
este solitário poeta maranhense é um convicto criador, sem concessões ao fácil
e ao midiático em sua poesia. Uma das grandes razões para sua obra não seja
vastamente conhecida é o fato de que seus livros se encontram, em sua maioria,
esgotados. As poucas antologias publicadas e, mais recentemente, a vigorosa Nau
de Urano (2002) — com mais de 800 sonetos de sua obra —, têm sido responsáveis
pelo pouco que se conhece de sua literatura entre os leitores brasileiros.
Acompanhe agora a vigorosa entrevista concedida a Rascunho.
[1] Quais obras e autores, de sua permanente leitura, acreditas
serem as principais influências diretas, que apontam para as grandes vertentes
não apenas temáticas, mas estilísticas de tua poesia?
NM: Por ser em parte um depoimento da verdadeira biografia do
homem que a faz, como você diz ao perguntar não apenas sobre as influências
diretas por mim sofridas na elaboração de uma hipotética Obra Poética, mas
principalmente sobre as vertentes temáticas e estilísticas que a enformam e
desvelam, creio ser mais importante, para aquilo a que você se propôs, rastrear
as coordenadas psíquico-conteudísticas que me permeiam a simbiose homem-poeta
(veja o poema O parto) nessa verdadeira busca pela palavra a revelar-se de uma
forma que intento pessoal. E a forma, como você sabe, é o fim coeso e
irredutível dessa busca que o homem, quando poeta, empreende como retorno
visionário à sua própria, única e inalienável origem. Devo dizer-lhe assim,
para início de conversa, que aquelas vertentes, caso sejam poemas aquilo com
que sempre me vi e vejo vivendo na cotidianidade anômala e cinzenta da minha
existência provinciana, deságuam, em forma poética, na pessoa que sou e as
tenta viver e equacionar de maneira menos abjeta que a daquela vivida na
constatação das minhas vísceras, para suprir uma falha ou fissura ontológica no
fundo fraccionado do meu ser; para me situar nesse espaço sem fundo que sou e
perceber o que perdi e sobra naquilo que ainda tenho ou mereço ter, de acordo
com os cálculos das minhas probabilidades mínimas ou espaços maximamente
reduzidos. Daí o serem, aquelas vertentes, uma queda ininterrupta no vácuo de
meu espírito, uma abissal angústia existenciária buscando a forma real e única
que me dê ao menos a possibilidade de vir à tona do verbo, a fim de desvelar-me
além da hipotética aparência da minha vida, que é um mistério inapreendido e
ainda inacabado como poesia. Poesia que só é poesia quando traz em si um
segredo, como disse Ungaretti em entrevista concedida a Alfredo Bosi. Um
segredo que, no meu caso, está encerrado no fundo inconsciente da minha
"alma cerebral", numa paisagem ambígua de trevas e luzes, com seus
acontecimentos pretéritos talvez informuláveis pela palavra e que tento trazer,
repito, à tona da minha visualidade de pura emoção verbal, como emoção pensada,
conforme o célebre verso pessoano, e a revelar-se também através de seus
correlatos objetivos, de acordo com a não menos célebre definição eliotiana.
Sobre quais autores e obras se constituíram numa influência direta da minha
poesia e da minha maneira de viver-lhe o apelo ou chamado existencial, no
momento mais propício e exato para fazê-lo, posso sintetizá-los, numa soma por
exclusão, em apenas três: Netotchka Nezvênova, de Dostoievski, Poesia e prosa,
de Edgar Allan Poe e Morte em Veneza, de Thomas Mann.
[2] Tua poesia apresenta, como toda grande poesia da lírica
moderna desde Baudelaire, a característica apontada por Hugo Friedrich como
dissonância, sobretudo imagética, possível de ser encontrada na maioria de teus
poemas na forma de insólitos oxymorons. Em quais pontos concordas e em quais
(se é que os há) discordas essencialmente desta visão? Acreditas estar
vinculado a esta tradição da lírica moderna?
NM: Minha poesia, como você diz, apresenta uma grande dissonância
imagética, se vista sobretudo sobre o foco exaustivo dos seus oxymorons, como
tópico às avessas do meu inerradável pasmo existencial. Minha lírica, versando
sobre o escatológico no seu duplo sentido e com suas perquirições metafísicas,
de abissal inquinação no âmbito até mesmo lingüístico do homem que a faz, está
vinculada à tradição lírica moderna, transcendendo a simples compreensão de uma
elementaridade vocabular simplesmente confessional (no seu termo mais amplo)
para ater-se às culminâncias de um sistema lingüístico epistemologicamente
interativo e em torno do qual giram, como estrelas (ainda que sujas), as
galáxias de outros mundos e universos. O sentido dessa lírica desenreda um fio
narrativo infenso a qualquer enredo fundado pela codificação mecanicista do
fato consensual e público. Penhora do divino na catarse humanitária da dor, o
poema lírico, como o vejo e faço, pertence a uma categoria inclassificável,
além de qualquer dor comprometida simplesmente com o humano enquanto diminuição
associativa do simples e estéril sentimento, pertencendo, pois, à categoria do
salto teológico indispensável para que o eterno possa revelar-se, no plano
humano, na sua condição de aposta feita também por um jogo a não abolir jamais
o acaso. Assim, por ser uma arte anacorética, como a definiu Been, a lírica
potencializa o incurso individualista no território indiviso de suas
fronteiras, sem o arrimo de qualquer utopia de salvação coletiva capaz de
validar-lhe — ou dele inferir — qualquer utilidade consentudinária com as
estruturas sociais vigentes. Só, iniludivelmente só, diante do eu-próprio que
lhe individualiza o ser, moldando-lhe os espaços, e dos seres que lhe
emblematizam a objetividade duvidosa ainda que real dos outros seres, o lírico
não pode constituir-se ou arrimar-se no simples apêndice supurado no corpo
textual da natureza e do universo. "Sou um homem só/um só inferno",
nos ensina o verso sóbrio e dorido de Quasimodo.
[3] Em um primeiro contato com tua poesia, tem-se a tendência,
profundamente relativa e mesmo equivocada, de tê-la como de difícil entendimento
e até hermética. Isto me lembra a passagem em que Northrop Frye, o grande
crítico americano, em sua obra Anatomia da crítica, particularmente na
Introdução polêmica, assinala a preocupação que muitos poetas ou subliteratos
têm em tornar suas obras comunicáveis, tentando assim facilitar, de modo
expresso, o diálogo (como é possível medi-lo?) entre leitor e obra e,
porventura, o autor. Contudo, Frye alerta que esta preocupação sempre traz
consigo o risco de cairmos em níveis subliterários, tais como a prosa
versificada ou simplesmente a fala métrica, destituída de qualquer poesia,
entretanto largamente confundida com o fenômeno poético, como sucede
atualmente, na poesia brasileira. Uma das conseqüências deste fenômeno é o fato
de gerar-se uma panacéia crítica que culmina em falsas celebridades e, outra, o
surgimento no meio literário, de acordo com Octavio Paz, de hábeis construtores
de versos e artefatos literários, a exemplo dos árcades e parnasianos, mas não
de legítimos poetas, aqueles que realmente teriam algo a dizer. Contudo,
voltando ao primeiro ponto da questão, Baudelaire afirma que, quanto menos um
poeta é compreendido, maior é sua glória. Como te posicionas diante deste
quadro?
NM: Sempre escrevi sabendo que um único verso traz consigo uma
carga de experiências vivenciadas no âmbito dos acontecimentos e dos seres. Não
estou evidentemente falando do poema como um produto do meio ou receptador
somente das correntes migratórias levadas ou trazidas ao poema pela mais-valia
ou menor-valor de um econômico temporal: todos sabemos que o radicalismo da
maior hermeticidade pressupõe, em regiões mais fundas que a do simplório mais
simples, a argamassa e as pulsões até mesmo de projetos políticos que ao poeta
cabe testemunha e viver. Um poema de Paul Célan, por exemplo, chega por vezes
(ou quase sempre?) a alcançar a dimensão mais abrangente de um fazer social:
seu hermetismo, como já dito algumas vezes, faz-se através da negação e da
negação da negação. Portanto, como dialética da própria existência humana. E se
assim é, como não haverá o poeta medianamente culto de fazer-se pelo acúmulo
existenciário do em si vivido? Gostaria, pois, de dirimir alguns equívocos que
a fazem ser vista como fruto apenas da história particular do homem que me
individualiza psicologicamente, o que tem induzido algumas pessoas ao erro de
vê-la como "metaforização hermética" de problemas insistentemente
revoluteando em torno de um insondável e informulável centro. Nunca fui um
poeta criptográfico, como já disseram alguns, pois o hermetismo jamais foi por
mim cultivado como um contra-ponto à falha de um real não aceito ou resolvido
existencialmente através de uma visão defeituosa e redutora das coisas, e nem
tampouco para atingir, pelo acréscimo de enxertos obscuros, uma desejada
supra-realidade sensível que poderia, à maneira de Rimbaud, implantar minhas
talvez monstruosas verrugas no terreno árido do meu Parto ininterruptamente
laborioso. É inegável que existe em mim uma imensa carga inconsciente de temas
obsessivos e que tornar esse fundo obscuro em matéria objetiva a que o verbo
insufla, como necessidade eu diria agônica, a forma particular do criador que
lhe dá extensão e vida, é a tarefa maior e talvez impossível de quantos têm por
fim, como eu, a realização final de um poema. Finalizando: pelo fato de minha
poesia abordar certas zonas profundas de uma experiência particular, ela se
reveste de uma radicalização metafórica a que falta por vezes a normatividade
dos conceitos generalizantes. Embora não elitista, ela nunca chegará a ser compreendida
verdadeiramente por muitos. O poeta que a faz e que a vive (ouso dizê-lo) é,
não obstante, como tenho observado e sentido, apreciado ou mesmo amado por
camadas significativas do nosso povo.
[4] Uma questão que intriga os teóricos da literatura são as forças
que concorrem para o ato criador. Sabe-se que, desde o ensaio sobre o espírito
da tragédia, de Nietzsche, o ato criador tem sido dividido em duas categorias:
a apolínea e a dionisíaca. A visão do poeta apolíneo, mestre absoluto da
engenharia poética, foi difundida pela modernidade desde a falência do mito do
artista inspirado, possesso, porta-voz de forças misteriosas e, no lugar dele,
surge o poeta que trava uma luta interna e eterna por transformar a
matéria-prima da poesia, a linguagem, em obra de arte, cujo valor estético
reside, talvez, em si mesma. Por outro lado, não se nega que a inspiração
interfere de modo intrínseco, direta ou indiretamente, no ato criador. O que
achas de tudo isto?
NM: Fritz Teixeira de Salles, que tanta falta faz à crítica de
poesia hoje feita no Brasil, tocou com certeira visão analítica o corpus aberto
da minha matéria verbal, ao dizer, referindo-se ao meu livro A antibiótica
nomenclatura do inferno (1977), que "sua (minha) poesia é uma encruzilhada
de dois caminhos do mundo ocidental: o apolíneo (no seu classicismo formal e
vigoroso) e o dionisíaco (no sentido existencial da tragédia). Nauro Machado
oscila e vacila entre Homero e Arquíloco, os dois caminhos do ontem que
fabricam o hoje. Com sua sensibilidade algo brutal, num erotismo selvagem de
poderosa fluidez sintática, a poesia de Nauro Machado sofre na alegria do sexo
e vive na dor de viver". A título de informação, devo dizer-lhe que um dos
livros que mais me influenciaram na minha longínqua juventude foi justamente A origem
da tragédia proveniente do espírito da música, o que me levou a ler quase toda
a obra de Nietzsche publicada em língua portuguesa, e que ponho ao lado da de
Heidegger, filósofo-poeta que me entreabriu com seus insights o mais lato
pasmo-pânico-existencial necessário à intuição majestática da vida como
mistério. De fato: na conciliação desses dois extremos, o apolíneo e o
dionisíaco, é que vivo minha existência de artista-homem dividido entre o
cerebral (forma) e o instintivamente desmesurado e anômalo (conteúdo), tentando
unir a metodologia poética de Poe à inspiração sem limites do espírito trágico
que me impulsiona e fundamenta o ser dividido que sou. Mas a verdade é que
nenhum consolo ou paz me arrima nesse percurso intuído e revelado através da nadificação
do Ser pela linguagem como presença ontológica-sensorial do poema.
[5] O que achas que impede a larga difusão de tua obra a todos os
recantos deste país? Por que aparentemente se ergue uma barreira de resistência
e silêncio em torno dela? Ou esta barreira não existe, é apenas fruto de nossa
incapacidade atávica ou crítica de julgar sem etnocentrismo ou preconceito?
NM: Não creio sinceramente que haja qualquer impedimento à difusão
da minha poesia no Brasil ou que exista tampouco algum propósito deliberado em
fazê-la desconhecida do grande público, tornando-a vítima propiciatória de uma
conspiração do silêncio. Não sei também se essa omissão é apenas fruto do que
você chama de "incapacidade atávica ou crítica de julgar sem etnocentrismo
ou preconceito", levantando a suspeita de isso se verificar pela minha
situação de insularidade nordestina, preso a uma ilha esquecida, e sem vocação
nenhuma para a sociabilidade literária de grupo ou igreja. O certo é que ela,
talvez também por minha exclusiva culpa, continua reduzida a um número limitado
de leitores, ocupando um espaço geográfico a não extrapolar os estreitos
limites de minha província natal. O que não me impede de ser conhecido pelos
principais poetas brasileiros contemporâneos e daqueles críticos que respeito
como insuspeitados homens de honorabilidade mental. Aliás, devo dizer-lhe que
não tenho desejo algum em fazer-me chegar como poeta ao ominoso
leitor-telespectador de hoje, ao qual oponho um irredutível nojo pessoal a não
compactuar com a chacrinagem trumbiqueira de uma espúria comunicação humana.
Vez por outra, para minha grande alegria ou forma de compensação humana, essa
situação de silêncio é quebrada por alguma voz de além-mar, como a que
recentemente me chegou através das palavras de Luciana Stegnano Pichio (autora
do livro Storia della letteratura brasiliana), com o recente lançamento do meu
livro Nau de Urano, uma antologia reunindo oitocentas e seis peças
sonetísticas. Disse-me ela: "Sua poesia é áspera e bela, profunda e
dorida. Corroborando Adonias Filho, eu diria: um dos grandes poetas brasileiros
de todos os tempos". Continuo, pois, cumprindo minha sina de solitário
poeta maranhense, conforme a exata visão crítica que de mim teve José Guilherme
Merquior.
[6] Há pessoas que classificam tua poesia como
"assustadora" e "violenta demais", apesar de
"instigante". Algumas, de sensibilidade mais dócil, recusam-se a
lê-la. O que achas disto?
NM: Seria de bom alvitre saber se essa pretensa violência da minha
poesia possui uma força expressiva de valoração estética capaz de validar-lhe o
produto final e em que contexto se move essa violência para uma possível
aferição como obra artística. Sei que de fato a minha poesia é violenta, tanto
em suas metáforas como no uso exagerado de seus vocábulos corporais, apresentando
ainda um permanente e azedo clima de "guerra na Indochina/ e na alma
também/ guerra na oliveira/ na empregada negra/ e no vira-lata/ que a criança
acarinha/ com mão de granada". Antônio Olinto, ainda nos idos de 1960,
publicava na sua coluna Porta de Livraria, do jornal O Globo, um artigo
intitulado A violência de uma poesia mansa, enfatizando que "de nenhum
poeta sei no mundo de hoje que tenha violência mais autêntica que a desse
maranhense chamado Nauro Machado, e que é para mim o ápice da poesia brasileira
pós Jorge de Lima". E em um comentário feito sobre a poesia brasileira no
ano de 1972: "Há, em Nauro Machado, um satanismo que faz pensar no poeta
inglês Francis Thompson e que produz, no maranhense de hoje, um tipo de poesia
desesperada de que não temos outra igual". E também a suave Henriqueta
Lisboa, assim se expressou sobre ela: "O teor de sua poesia é de
violência, tanto maior ao aproximar-se do plano metafísico, em angustiado
perquirir a que a lógica não atende, pelo afã de captar o inefável através de
uma linguagem sempre mais dura e amarga". Sei também que a minha poesia
tem uma violência de status metafísico, caso possa parodiar o Mesfistófeles do
Fausto thommasmanniano ao dizer que a mediocridade não possui status teológico.
Assim, no plano teológico da negação divina — se for isso possível — ou na
vivência intuída como forma positiva do transcendente, sei que a violência
poética, quando introvertida no homem que a pensa em versos ou que por reflexo
social a vive e sofre no seu dia-a-dia, tem se constituído, ao longo dos
séculos, como conteúdo temático e até mesmo de estilhaçamento estrutural do
poema. Estou a lembrar-me agora do Paraíso perdido, de John Milton, na
vociferação luciferina contra a violência divina que o expulsara de um plácido
e perfeito Verbo, obrigando-o àquela miserabilidade imprecatória, fruto do
orgulho, ao dizer que preferia ser o primeiro no inferno ao último nos céus.
Estou a lembrar-me também daquele Dante luciferino, banido para sempre da sua
Florença celestial, como já o fora na terra do amor sepulcral à sua Beatriz
perdida. Este tópico, aparentemente supérfluo, é necessário explicar-lhe, ainda
que de modo imperfeito, como nascem meus versos violentos na substância que
lhes estrutura o ser fenomenológico como encarnação de um Verbo a ser visto e
(a)palpado: esse Lúcifer miltoniano me influenciou também, ou até mais, quando
transposto para um personagem cinematográfico tirado do romance O lobo do mar,
escrito por Jack London, também ele um autor luciferino. Neste filme, o
personagem Lobo Larsen, no caminho da completa cegueira, assim como Milton,
quando escrevia seu Paraíso (duplamente perdido na terra em que viveu e nos
olhos que lhe negaram vê-lo), cita aqueles versos como uma justificativa para
assenhorear-se da sua maldade intrínseca, como atributo sonoro-estético da sua
existência. Digo sonoro, por servir-me também da violência maldosa dos meus
versos, tentando justificar-me, embora de maneira subalterna e inferior,
através da minha poesia. Meus atos humanos diários se fazem pela imagem vivida
e vívida da minha poesia. Já escrevi centenas de versos em salas
cinematográficas, como aquele poema Reinado, que é o reino da minha principesca
vida imaginária e onde poderia dizer, como nos versos de Lucy Teixeira (poetisa
maranhense), que tanto admiro: "Sou o tirano da minha propriedade".
Naquele poema, digo logo no seu início: "Para viver noutro lugar/ e de
fome indiferente/ é muito melhor ficar/ nos pobres subúrbios da mente".
Minha violência é mais à maneira sousandradina, de um Sousândrade inferior, é
claro, mas vítima também de uma sociedade castradora, igual à daquela
"sociedade celeste", tipicamente miltoniana, contra a qual me ergo e
volto também na violência contida dos meus versos.
[7] Harold Bloom acredita que a existência de um poeta forte
(strong poet), segundo sua terminologia de fundo psicanalítico, deve-se
sobretudo à superação dos modelos que o inspiraram, chegando mesmo a
devorá-los, transfigurando-os, através deles, em outro. Supondo que exista, ou
não exista, uma tradição anterior à tua obra, à qual ela se vincularia ou não,
uma vez que não é de acreditar que, tendo-a ultrapassado, não podemos
reconhecê-la mais no interior de teus versos? Que pensas disso?
NM: Não creio que minha poesia tenha superado, como você diz,
devorando-os mesmo, os vários modelos que a inspiraram, pois considero a
tradição indispensável para o desenvolvimento de novos modelos culturais, como
produto expressivo da civilização. Nunca procurei me enquadrar em nenhuma
categoria gradual de poeta maior ou menor, mais forte ou mais fraco, dentro de
conceitos que julgo dispensáveis e de nenhum significado para o ato particular
de fazer poesia, assim como não creio que o poeta faça seu poema para
encaixá-lo numa teoria adredemente preparada para recebê-lo. O poema, ao
contrário do que disseram Poe, Valéry e alguns outros, não é uma fórmula
matemática a ser resolvida friamente numa "psicologia da composição"
à maneira cabralina de fazer versos como artefatos de uma produção
exclusivamente mental, pois, embora podendo prever até mesmo a sua disposição
final na página em branco enquanto o vai mentalizando como forma acolhedora de
pensamentos expressivos pessoais, o poeta precisa daquelas emoções que são
particularidades suas, a serem recriadas pelo homem-criador que as consiga
viver para serem transferidas e mostradas no corpo imaterial, conquanto vivo,
do poema.
[8] Em que medida a crítica literária contribui para que uma obra
seja aceita ou não? Existe uma função para a crítica, ou ela é apenas uma arte
de muletas, ou ainda, o marketing da obra de arte, porém, em muitos casos,
descartável, porquanto atrasada e/ou equivocada? A poesia necessita da crítica
literária? Se sim, de que forma?
NM: A crítica, muitas vezes difícil, pode transformar-se num
exercício de hermenêutica autotélica, divorciada da sua finalidade precípua,
que é a de revelar o poema como um produto alheio, com suas características
próprias e indivisas, e não de revelar, re-velando-se, os conhecimentos
idiossincráticos e às vezes anormais de quem dela se serve para obscurecer
ainda mais o que em si já é muitas vezes fechado, por querer dar um
"sentido mais alto às palavras da tribo".
[9] Uma das coisas que impressionam em tua poesia é o fôlego, uma
vez que já superas o número fantástico de mais de trinta livros de poemas
publicados ao longo de tua vida, e com tanta qualidade. É impressionante. Prova
de um apetite poético voraz, insaciável talvez, que deve elevá-lo,
inevitavelmente, à condição de recordista de publicações na lírica de língua
portuguesa, talvez universal. Queres publicar até o último de teus dias?
Quantos livros inéditos de poemas ainda tens? Trabalhas em algum neste momento?
NM: Minha lírica — com trinta e um títulos já publicados, sem
incluir suas duas grandes antologias, a primeira delas com poemas reunidos sob
a responsabilidade crítica de Nelly Novais Coelho, contendo quase quinhentas
páginas, e a que foi lançada pela Editora Imago, em convênio com a Fundação
Biblioteca Nacional e Universidade de Mogi das Cruzes, com aproximadamente
quatrocentas páginas, além de uma outra bem menor, feita pela escritora-poeta
Arlete Nogueira da Cruz, intitulada Jardim de infância, para uso dos
universitários maranhenses — é realmente muito vasta, movendo-se no círculo de
um compasso poético distendido anormalmente, se visto sob a ótica redutora de
alguns poetas de parca criatividade. Não vou citar, por redundante, os títulos
de todos os livros que a compõem, limitando-me a relacionar os daqueles
inéditos e que já se encontram à espera de alguma editora que os queira
publicar: A rocha e a rosca, um único poema composto de cerca de mil e
quinhentos versos em redondilha maior; Chumbo e rugas do trigésimo; Pão maligno
com miolo de rosas; e um imenso poe-ma, ainda em andamento e sem título
definitivo, já tendo aproximadamente quatro mil versos, todos em decassílabos.
Escrevo, sem dúvida, por uma necessidade de querer fazer-me presença viva para
os outros, como uma forma pensante de existir e por saber que a poesia é, para
mim, um caso de vida ou morte, como já disse alhures, e "não um simples
pretexto para malabarismos vazios ou teoremas que digam respeito a um modismo
falho e de autenticidade duvidosa".
[10] Concordas com a visão adotada pela crítica especializada,
segundo a qual tua obra se filia também ao esforço estetizante da geração de
45? Ou tua formação deve-se exclusivamente a um esforço pessoal, livre dos
influxos temporais de uma geração ou de qualquer "ismo" de natureza
estética? Acreditas que é possível transcender, de acordo com Octavio Paz, o
estilo meramente histórico, projetando sua obra para além de sua época?
NM: Apesar da minha leitura inicial e constante de Bocage e
Camões, ainda nos meus treze anos de idade, seguida, logo após, de Antero de
Quental, Raimundo Correia, Alphonsus de Guimaraens (e alguns outros), até
chegar aos simbolistas franceses, quando incipientemente comecei a escrever por
uma necessidade que era impulso compensatório para a perda física de meu pai, a
purgar-se também através de uma pungente e auto-destrutiva solidão alcoólica,
não posso, em sã consciência, dizer que a geração de 45 influenciou minha obra
sonetística — principal vetor dos seus pressupostos formais-estéticos. Minha
poesia, posterior à daqueles anos iniciais, fez-se influenciar, sobretudo, por
paradoxal que seja, pela leitura apaixonada dos grandes romancistas mundiais,
como Dostoievski, com sua angústia metafísica e dolorosa consciência do mal, e
Thomas Mann, pelo seu incurso nos domínios sombrios da morte e da arte. Minha
poesia, seus sonetos que o digam, foge por completo aos cânones daquela
geração, que reputo contudo importante pela expressividade de alguns nomes que
a compõem.
[11] Há em tua obra uma quantidade notável de poemas sumulares, de
métrica curta. Alguns, curtíssimos. Chegaste mesmo a publicar um livro apenas
de peque-nos poemas (Funil do ser), no qual expressas a síntese poética em sua
expressão lapidar. Isto chega a lembrar, sem sugerir influência ou algo
similar, a obra de Emily Dickinson, evidentemente com distinções temáticas e
vocabulares pontuais e díspares. Acreditas que, no futuro, farão uma
aproximação desta parte de tua obra com a da grande poetisa americana, ou esta
aproximação não é válida? Em qualquer resposta, por quê?
NM: Forma de uma técnica redutora a visar, no entanto, a largueza
sonora de um pensamento a não se exaurir no verso, encapsulando o instante como
um flagrante da eternidade, a forma do poema curto, excetuando-se a do soneto,
é a que mais me atrai e obsessiona no meu continuum ofício existencial. Há
alguns anos, Frederick Williams, autor do livro Sousândrade: vida e obra, tese
de doutoramento defendida em universidade norte-americana, escreveu-me dizendo
do seu interesse em verter para o inglês, num único volume, todos os meus
poemas curtos até então vindos a lume. Ele os relacionou para mim,
classificando-os de acordo com o número de suas estrofes, que se reduzem às
vezes a apenas um verso. Depois dessa carta, fiz publicar o livro Funil do ser
(1995), que apresenta também a particularidade de em suas 126 peças não mostrar
uma única rima. Estou também, no momento, como disse acima, concluindo um novo
livro (já está pronto) exclusivamente de poemas curtos. Creio que, com ele, dou
um passo adiante na minha maneira de realizar esse "afunilamento"
formal e existencial, como introjeção metafísica de uma dor sonora na sua
inseparabilidade entre forma e conteúdo. Quanto à aproximação, em nível de
linguagem, influência ou algo similar com a lírica de Emily Dickinson, o que
para mim seria honroso, ela praticamente inexiste, exceto pelo fato biográfico
de aquela poeta haver vivido como reclusa em sua cidade natal e de eu cumprir
na minha ainda provinciana São Luís um destino solitário, conquanto de menor,
muito menor grandeza em todos os seus níveis.
[12] Como a perda de teu pai impulsionou-te à poesia? Ou este
impulso já existia, independentemente de qualquer perda? Como surgiram os teus
primeiros poemas? Já ensaiavas versos quando criança, ou esta vocação
confirmou-se após uma infinidade de leituras?
NM: Se o que existe na feitura do poema é um encontro como aquilo
ou aquelas coisas que estão latentes e como que incluídas já na sua própria
busca, e como "falhei de tudo o pouco que ainda pude", sempre
associei o impulso poético à perda que lhe acompanha o ilusório ganho textual.
E se o poeta é também um "fingidor", aí me incluindo por exclusão de
outras máscaras, minha poesia começou pelo entendimento de que a ela competiria
a vida, o que é falso, por habitá-la o silêncio de uma inabitável solidão.
Acredito por vezes, e não como certeza, que a perda física de meu pai fez
aflorar o impulso poético que em mim já existia latente, antes daquela dor que
me fez órfão para sempre do que em mim — sobrevivendo em mim — eu posso até
hoje sou.
[13] Meses atrás, o poeta Alexei Bueno — com o qual manténs, fora
o rigor extremamente clássico, algumas afinidades líricas — iniciou uma
polêmica muito produtiva e interessante sobre a predominância de uma
determinada mentalidade literária que tem prejudicado a devida apreciação de
obras de poetas como você, aos quais Bueno se soma e solidariza. Acreditas que
estamos diante de uma diatribe importante, diante do quadro lírico que a
literatura apresenta hoje?
NM: Alexei Bueno, pelo que me tem chegado por via indireta, visto
eu não ler, pois aqui não chegam os jornais em que ele vem travando uma
polêmica contra alguns corifeus da poesia brasileira contemporânea, fez-se
arauto de uma poesia na qual eu gostaria de me incluir, por exclusão deliberada
e consciente de um grupo que tomou conta de todos os espaços divulgatórios
existentes, graças ao poder dos círculos acadêmicos que lhes respaldam os
anêmicos e inconsistentes poemas. Aliás, Pedro Lyra, autor da antologia
intitulada Sincretismo: geração 60, foi combatido pelos chanssoniers que nela
não foram incluídos, e a quem ele depois fulminou em dois artigos, se me não
engano, publicados neste Suplemento Literário.
[14] Acreditas que, se não morasses em São Luís, a tua obra não
seria a mesma? As admoestações que viveste na capital maranhense contribuíram
de modo significativo para a construção de teus principais temas?
NM: Costumo dizer que sou um poeta do tempo das diligências, onde
as coisas são lentas e os espaços reduzidos mais imensos, se vistos pelas
lentes da interioridade. E é nesse miolo interior, à semelhança de um funil
onde desemboca meu ser, que venho, numa relação permanente de amor-ódio,
reconstruindo em quase todos os meus poemas, de maneira transfigurada, as
ruínas dos objetos e das coisas, das lembranças provincianas, dos sobrados
decadentes e/ou arruinados, com sua atmosfera de mazelas físicas e espirituais,
com seus becos tortuosos e a disformidade anômala de seus mendigos, tudo que
está parado ou se move nessa minha cidade-berço, onde os mortos é que estão
nascendo e os vivos apodrecem reais e como póstumos. Não canto a cidade de São
Luís à maneira sentimental-escatológica de um Gullar, do modo ufânico-lírico
como o fez Tribuzi, ou de forma irônica e mordaz, embora de grande incurso
fenomenológico na sua temporalidade de grande beleza histórica, como José
Chagas o faz. Tenho um livro inteiro, lido apenas por pouquíssimas pessoas, que
demonstra essa minha relação sadomasoquista com a Ilha que é vista por mim, até
mesmo em suas noites, como uma lamparina na aurora. Escrevo meus versos,
vivendo em São Luís na sua máscara-esfíngica de mãe carrasca ou musa sublime. A
verdade é que venho tecendo, livro após livro, a biografia metafísica de uma
épica às avessas, infernalizada dentro, por um poeta ancorado sem qualquer
laivo de grandeza entre as muralhas de uma Tróia provinciana. Uma Tróia a
invadir minha obra inteira, fazendo-se presença física obrigatória e pertinaz,
amalgamada pela metaforização transfiguradora de seus espaços e da sua história
temporal. Minha poesia, para quem se dê ao trabalho de rastrear-lhe as
in-fluências formais/conteudísticas, está impregnada até mesmo pelas anomalias
deste espaço a estender-se sobretudo entre os rios Anil e Bacanga e cujo
coração se faz sentir e bater na Praia Grande. Se não cheguei ao extremo de
estender as mãos para pedir esmola "na mesma língua em que a pediu
Camões", conforme o célebre verso junqueirano, com certeza tenho estendido
alguns dedos. E dedos sem anéis, acostumados apenas e algumas vezes à
imprecação do dedo médio, naquela maneira blasfematória de quem por Dante foi
jogado nos últimos círculos do inferno. Posso tranqüilamente dizer-lhe que
conheço e vivi os versos do meu poema Ofício, cujo título original era Fundação
SESP. Mas a verdade é que de alguns anos para cá, sobretudo a partir do governo
da minha querida amiga, senadora Roseana Sarney Murad, ganhei o reconhecimento
oficial dos meus conterrâneos, sendo até mesmo nome de praça e tema da Escola
de Samba Turma do Quinto, que ganhou o carnaval de São Luís no ano passado, com
um enredo baseado em minha vida e poesia.
[15] Desejando ser útil aos leitores e poetas neófitos, lembro-me
que, há anos, mais de quinze, recebi um conselho seu de natureza literária. Disseste,
naquela ocasião, isto: "Leia muito. Escreva muito. Pesquise muito". O
que dirias aos que têm pretensões de ser poetas, conhecer as leis que regem
esta arte da palavra, no intuito de se tornar donos de uma grande obra, como a
tua?
NM: Diria novamente o que você, com a generosidade que lhe é
própria, chamou de conselho de natureza literária, acrescentando apenas, àquela
tríplice súmula, com a experiência de quem chega quase ao final do seu
malogrado projeto poético, para esse futuro e hipotético poeta jamais procurar
ver-se no espelho dos outros, aceitando com humildade o seu próprio e
intransferível rosto e a subseqüente solidão que lhe advirá com a certeza de
que a poesia, desde que imagem sua, reflexo somente do seu rosto, ainda que
disforme, é uma presença mais viva e necessária, porque verdadeira, do que o
seu próprio corpo. Veja, poeta: eu faço parte de uma geração maranhense que já
ultrapassou a metade de seu tempo de vida e que ainda continua escrevendo como
única e possível maneira de testemunhar seu tempo e suas individualidades.
Chagas faz uma poesia diferente da de Gullar, que faz uma poesia diferente da
de Tribuzi, que fez uma poesia diferente da dos dois, que fizeram e fazem uma
poesia diferente da minha, que a faço diferente da deles três. Pois, como disse
e. e. cummings: "O país estritamente ilimitável de cada artista é ele
mesmo. Um artista que trai esse país se suicidou; e nem mesmo um bom advogado
conseguirá matar esse morto. Mas um ser humano que é fiel a si mesmo — qualquer
que seja esse si mesmo — é imortal. E todas as bombas atômicas de todos os
anti-artistas do espaço-tempo não civilizarão jamais a imortalidade".
[fim]
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