terça-feira, 13 de outubro de 2015

[120] CRÔNICAS: CARTA AO JOÃO CARIOCA (30dez2000). Fim do Século XX.



CARTA AO JOÃO CARIOCA NO FIM DO SÉCULO XX.
Ronald de Almeida Silva (e-mail: ronald.arquiteto@gmail.com)


Teatro Municipal do Rio de janeiro [ago2015]

São Luís Patrimônio Cultural da Humanidade, Maranhão, 31 dezembro 2000.

Esta é uma carta aberta que dirijo aos meus amigos e amigas, sejam eles do Rio ou da minha querida São Luís Patrimônio da Humanidade ou de qualquer outra cidade. A essa gente que é gente, sejam elas mulheres ou homens, sejam Joãos, Marias, Josés, Antonios, Chicos, Elias, Nelsons, Cordeiros, Virgílios, Raimundos ou Raimundas. São pessoas a quem devo agradecer por terem me ajudado muito a melhorar a minha visão de mundo e que me propiciaram alegrias sinceras e generosas doses de bom humor e até de bom whisky. João Carioca é um nome fictício, baseado num amigo real e genial, que simboliza a alma dos que nasceram ou viveram na Cidade Maravilhosa do Rio de outrora e os de qualquer outra cidade em que a alegria de viver e confraternizar ainda sobreviva, como em São Luís.

Caro amigo João Carioca,
         Gostaria de lhe dizer algo original neste final de década, final de século, final de milênio e inicio de uma nova era. Não tenho esse dom, mas sei distinguir, vez por outra, algo que me faz bem, mesmo escrito por outras pessoas, e que acredito tenha algum significado para os poucos amigos que embora não participem do meu cotidiano, merecem a minha admiração.
         Eric Nepomuceno fala de um Chico Buarque como eu gostaria de poder falar de algumas poucas mas ternas pessoas que passam por nossa vida  e deixam lições de vida. Nepomuceno fala sobre Chico como eu gostaria de falar de João Carioca e diz:

"Pela vida afora fui acumulando uma dívida com a vida: a serena certeza de ter tido a sorte de conviver, compartilhar a existência, sob um mesmo céu e um mesmo tempo, com certas pessoas que não fizeram outra coisa além de abrir meus olhos e engrandecer meus dias. Certas pessoas são uma espécie de dádiva, de cerimônias tão minhas, de encontro e reencontro comigo mesmo. Certas pessoas que, mesmo à distância, diminuíram meu silêncio e iluminaram minha solidão. Poucas, valiosas, ternas pessoas. Francisco [Buarque de Holanda], por exemplo."
[Eric Nepomuceno, 1989]

         Embora Chico Buarque seja nosso ídolo comum, houve alguém que ultrapassou todas as barreiras universais do talento e da arte e marcou o século como um dos maiores gênios da humanidade.
         Gostaria de lhe ter presenteado o livro "PELÉ", da Editora Abril, mas eles são tão "espertos" que recolheram a obra antes do Natal, impedindo-me de lhe ofertar essa máquina do tempo do futebol e do Rio do Maracanã dos anos 50, 60, 70 e 80.  Pelé foi o símbolo de uma era em que a ingenuidade não era considerada um mal em si mesmo e que o futebol era uma arte pura e simples, quase infantil, como um drible de Garrincha.
         O Rio de Janeiro e o Maracanã que nós freqüentamos à vontade e prazerosamente eram a alma da Cidade Maravilhosa que jamais existirá outra vez e que quem conheceu não vai mais esquecer e nem viver, pois nada do que foi será de novo do jeito que tudo sempre foi um dia. Tudo passa, tudo sempre passará, pois a vida vem ondas, como o mar, num indo e vindo infinito.
         A célebre e belíssima canção "Rio Antigo", de Nonato Buzar e Chico Anísio, também simboliza essa era em que Garrincha, Nilton Santos, Quarentinha, Dida, Zizinho, Vavá, Leônidas, Pepe, Coutinho e, sobretudo, Pelé e o seu futebol metafísico, mágico e divino, deslumbravam multidões no Maracanã e em outros templos do futebol do povo, das multidões delirantes, por todo o país e mundo afora.
         Tempos de um Brasil sem essa violência sufocante, sem esse excesso de arrogância, de prepotência, sem essa mesquinhez desvairada que hoje assola a cabeça de muitos governantes.  Tempos de um Rio em que era possível aos pobres e anônimos mortais, ainda adolescentes, como eu, passear sem medo e sem timidez na antiga e singela calçadinha de Copacabana à espreita da Teresa da Praia de Tom, Dick Farney e Lúcio Alves.
         Tempos em que um rapaz latino-americano-suburbano, sem dinheiro no bolso, sem parentes importantes, portanto, liso, leso e solto, podia ficar até altas madrugadas nas calçadas praianas da Zona Sul e espiar, babando, a passagem dos Cadillacs conversíveis, tipo rabo-de-peixe com gigantescos pára-choques cromados, com seus os milionários e suas divas maravilhosas em direção ao Copacabana Palace ou ao Cassino da Urca ou ao Joá. Nada disso vai voltar, mas somos parte das gerações que viram tudo isso acontecer.
         Caro João Carioca, já que a vida é tão efêmera e tudo é tão transitório, que estas horas de Natal e Ano Novo lhe façam mais cordial, mordaz e fraterno do que você sempre foi, pois o importante é que a emoção, a dignidade, a amizade e, sobretudo, o bom humor sobrevivam.
         Não há dúvida de que tudo isto é absolutamente ingênuo e até certo ponto piegas, mas, ainda me parece muito mais forte do que a força do poder e da grana que ergue e destrói coisas belas, pois nem mesmo a coisa mais certa de todas as coisas vale um caminho sob o sol, como diria Caetano.
         Do seu amigo que lhe é gratíssimo por me ter suportado e alegrado nossas vidas neste século que passa e que os bons deuses nos livrem dos chatos, dos empréstimos, das multas de trânsito, das mulheres ciumentas e feias, das brochadas recorrentes, dos políticos incompetentes, da cerveja quente e do whisky baleado e, se possível, ainda nos alentem nestas difíceis horas que virão quando avançarmos o umbral do novo milênio.
Um abraço e longa vida, e um bom início de século XXI.
A vida é bela.

Ronald Almeida.


Ronald de Almeida Silva, 53 anos [em 2000], é arquiteto planejador urbano e regional. Nasceu no Rio de Janeiro enquanto ainda era a Cidade Maravilhosa e reside em São Luís desde Nov. 1976. É Cidadão Ludovicense Honorário desde 1987. Escreve, vez por outra, quando recebe mensagens do além e psicografa alguns espíritos de porco ou quando tem notícia da ação deles pela imprensa. 

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