ANAIS DA
CATÁSTROFE DA SAMARCO [05nov2015]
Ocorrida no Município de Mariana-MG, (com
destruição total dos seus Distritos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo) e
em todo Vale do Rio Doce, até o litoral do Espírito Santo, em decorrência do
desmonoramento da Barragem de Fundão, por negligência dos dirigentes da
Samarco, Vale e BHP Billiton (em 05nov2015).
Ø Presidente da Vale, MURILO FERREIRA,
Ø Presidente da BHP BILLITON, ANDREW MACKENZIE,
Ø Presidente da SAMARCO, RICARDO VESCOVI DE ARAGÃO
A ONDA: UMA RECONSTITUIÇÃO DA TRAGÉDIA DE MARIANA, O MAIOR DESASTRE AMBIENTAL
DO PAÍS
Fonte: REVISTA PIAUÍ; EDIÇÃO 118 | JULHO DE
2016;
CONSUELO DIEGUEZ
RAS
2017-11-03
ILUSTRAÇÃO: ROBERTO TORRUBIA_2016
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SÍNTESE by RAS, com
textos editados de Consuelo Dieguez:
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Foto: internet. Não consta da matéria da
Revista Piauí. RAS. 2017-11-03
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No dia do rompimento da Barragem de Fundão, da SAMARCO - 05out2015
- logo após as 15:30h, a onda de lama e destruição matou 19 pessoas e destruiu
2 povoados inteiros no Município de Mariana-MG.
Um pouco antes das quatro da tarde, BENTO RODRIGUES deixou de
existir. A gigantesca onda de lama invadiu a vila, engolfando casas, estourando
vidros, arrastando móveis, roupas, brinquedos, panelas e todas as histórias de
vida. Muitos animais que estavam presos no momento em que a onda chegou também
foram levados. Cachorros, gatos, cavalos, galinhas, porcos, passarinhos
engaiolados não tiveram chance. Rolaram com telhados, janelas, o altar da
igreja de mais de 300 anos, árvores e automóveis.
O mesmo ocorreu no povoado de PARACATU DE BAIXO.
Ao contaminar o rio, a onda de lama de minério de ferro, numa
reação em cadeia, afetou toda a bacia hidrográfica do rio Doce, uma região de
86 mil km², território equivalente ao da Áustria ou a 8,5 Líbanos.
No total, 228 municípios [em MG e ES] foram impactados pelo maior
desastre ambiental do Brasil.
Naqueles primeiros dias, seis deles seriam dramaticamente atingidos.
E a vida de outras centenas de milhares de pessoas que vivem ao
longo dos 650 quilômetros percorridos pela lama, seria afetada para sempre.
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Mapa by Fundação Renova. Não consta da matéria da Revista Piauí.
RAS. 2017-11-03
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[1] A HISTÓRIA DAS PESSOAS
1.
No
dia 5 de novembro de 2015,
uma gigantesca barragem de rejeito de minério de ferro, conhecida como Fundão, pertencente à empresa SAMARCO, controlada por duas das
maiores mineradoras do mundo – a brasileira VALE e a anglo-australiana BHP BILLITON
– rompeu inteira sobre o pequeno povoado de BENTO RODRIGUES, distrito [do Município] de Mariana, Minas Gerais.
2.
Quando
a barragem se desmanchou, às 15h30,
vazando uma mistura de lama e metais em volumes aterrorizantes, PAULA GERALDA ALVES preparava mudas de
reflorestamento para a SAMARCO, em
uma fazenda vizinha ao povoado; ELIENE
DOS SANTOS, diretora da escola de BENTO RODRIGUES, acabara de fechar a
porta de vidro do prédio, após entregar documentos de alunos a um portador; REINALDO CAETANO olhava satisfeito a
caixa d’água da casa da mãe que ele acabara de encher com água trazida do
córrego.
3.
A
cerca de 350 quilômetros dali, em Governador Valadares, o empresário SANDRO FARIA HERINGER, dono de uma
revenda de caminhões, falava ao telefone com um cliente. Um pouco adiante, em
direção ao mar, nas franjas da cidade de Resplendor, DEJANIRA KRENAK pitava seu cachimbo, na prainha de rio da aldeia
dos índios krenaks.
4.
Seguindo
a jusante, em Colatina, já no
Espírito Santo, o fotógrafo EDSON
NEGRELLI tirava fotos em seu estúdio.
5.
Na
vila capixaba de Regência, o líder
comunitário CARLOS SANGÁLIA caminhava
pela areia branca banhada pelo mar azul, observando os ninhos das tartarugas
marinhas que desovavam na praia, uma área de proteção ambiental.
6. Nenhum
deles podia imaginar que, naquele exato instante, o mundo que lhes era tão
familiar estava prestes a desaparecer. O rompimento da barragem da SAMARCO se
converteu na maior tragédia ambiental brasileira e no mais grave acidente – e
único dessa natureza – da história da mineração mundial.
7. Dezenove
[19] pessoas morreram só na primeira meia hora. Mas, nos dias que se seguiram,
a vida de outras centenas de milhares que vivem ao longo dos 650 quilômetros
percorridos pela lama, seria afetada para sempre. Essas sete são só algumas
delas. [1]
8.
PAULA
GERALDA ALVES
acordou às seis e meia da manhã e preparou o café que levaria para os colegas
de trabalho – ao todo nove pessoas lotadas na Brandt Meio Ambiente, terceirizada da SAMARCO que desenvolvia mudas de reflorestamento – e seguiu para lá
em sua pequena moto.
9.
O
céu naquela manhã era de um azul transparente como há muito ela não via. ALVES, de 36 anos, vivia em BENTO RODRIGUES desde que nascera. Não
mais que 600 almas moravam ali e, portanto, era natural que todos se
conhecessem.
10.
O
povoado do século XVIII era um dos mais antigos do estado – seu nome
homenageava o bandeirante que adentrou aquelas terras – e abrigava uma das
primeiras igrejas de Minas Gerais, a de São
BENTO. O BENTO, como era
chamado, era uma vila bucólica, cercada por dois riachos cujas pequenas pontes
levavam ou à vizinha Santa Rita Durão ou à estrada para Mariana. Tinha ruas
asfaltadas e casas bem construídas.
11.
Boa
parte de seus habitantes trabalhava na SAMARCO
ou nas empresas que lhe prestavam serviço. Quem não fazia isso cuidava da roça.
Para o pessoal do BENTO, Mariana, a quarenta minutos dali, era cidade grande, e
a maioria ia até lá apenas para resolver burocracias.
12.
No
galpão da Brandt, junto com os
colegas ALVES repassou as normas de
segurança de trabalho, procedimento diário exigido pela mineradora em todas as
suas unidades, inclusive nas terceirizadas, e se pôs a preparar as mudas para
plantio nas áreas degradadas pela extração mineral. Por volta das 15h30, o
rádio de uma das camionetes da SAMARCO
começou a enviar um chamado urgente pela faixa 4, própria para alertas máximos
de segurança da empresa.
13.
Preocupado,
o grupo se aproximou do veículo e ouviu o inimaginável: a barragem de Fundão
rompera, avisava uma voz assustada e confusa. Passado o instante de
perplexidade, ALVES anunciou: “Não
sei vocês, mas eu vou avisar o meu povo”, e montou em sua moto. Enquanto seguia
na velocidade que lhe era possível, podia ouvir os gritos dos camaradas pedindo
que voltasse, pois não daria tempo de chegar à vila. O mar de lama já
despontava no alto da montanha, a 2,5 quilômetros do povoado, a uma velocidade de 15 quilômetros por hora.
14.
Enquanto
subiam o morro em disparada para se proteger da enxurrada, eles viram ALVES entrar no povoado. Levaria pouco
mais que dez minutos para que a ponte que ela cruzara fosse arrastada pela
avalanche.
15.
Com
a mão enterrada na buzina, ALVES percorreu
algumas ruas, aos gritos: “Foge todo mundo, a barragem rompeu!” Ao deixarem
suas casas e olharem para as montanhas, os moradores avistaram uma descomunal
onda de poeira e lama se deslocando celeremente em direção à vila, produzindo
um som de imensas cataratas. Àquela hora da tarde, cerca de 300 pessoas estavam
no povoado.
16.
Começou
então uma alucinada corrida para as partes mais altas do lugar. Cada um se
virava como podia, e todos tratavam de ajudar uns aos outros. Alguns velhos,
crianças e pessoas com dificuldade de locomoção que estavam na parte mais
próxima ao rio foram postos na carroceria de um caminhão que naquele dia fazia
trabalhos de limpeza.
17.
Os
carros também saíram lotados, resgatando quem encontravam pelo caminho. Quem
não conseguia condução tentava escapar a pé. Ao ver a lama cada vez mais perto,
uma jovem, esgotada, se ajoelhou no asfalto. Mais tarde ela contaria ter
pensado que, se a morte era inevitável, o esforço de correr não fazia mais
sentido. Viu passar um grupo de pessoas mais velhas em direção ao alto. Foi o
que a fez reagir. Se havia alguma chance, ela também se agarraria a ela.
18.
ELIENE
DOS SANTOS
chegara cedo ao prédio baixo e bem cuidado da escola da qual era diretora. Na
parte da manhã, nas salas espaçosas, com amplas janelas, estudavam as crianças
do ensino básico. À tarde era o turno das turmas de 5ª a 8ª séries. Como morava
na parte mais baixa de BENTO, no intervalo do almoço a diretora costumava comer
na escola e depois saía para amamentar o filho, que ficava com a sogra.
19.
Naquele
dia, como havia tido uma manhã movimentada, ela só pôde encontrar o bebê depois
das duas e meia da tarde. Por volta das três, voltou para o colégio, reuniu
documentos do programa de saúde dos alunos e os levou até o ponto de ônibus.
Uma prima sua esperava condução para Santa
Rita Durão e ela lhe pediu que entregasse a papelada à cobradora, que por
sua vez a encaminharia a um encarregado que a levaria ao dentista.
20.
SANTOS retornou ao prédio, trancou a
porta de vidro e seguiu em direção a sua sala. Mal dera alguns passos quando
ouviu seu nome. Seu marido a chamava, assustado. Ao vê-lo, percebeu que algo de
muito grave acontecera. WILEY DOS SANTOS,
conhecido como Lelei, estava pálido,
o pavor estampado no rosto. O coração dela acelerou. Achou que ocorrera alguma
coisa com o filho deles e correu em direção à porta. Então o marido lhe disse
para tirar todo mundo de lá porque a barragem havia rompido e estava descendo
em direção ao povoado. Aos gritos, ela pediu a uma professora que a ajudasse a
avisar os alunos. A colega correu para as salas da 6ª e 7ª séries. SANTOS foi avisar os da 5ª e da 8ª.
“Todo mundo para fora, todo mundo para o alto de BENTO. A barragem rompeu”, ela berrava. E se postou na porta até
que todos saíssem.
21.
Só
então ela correu. Já se preparava para embarcar no carro do marido quando se
deu conta de que na última sala do prédio havia uma pequena turma de reforço
que não fora alertada. Voltou agoniada, quase sem ar, abriu a porta da sala e,
com a voz trêmula, mandou que todos saíssem. Então, deu-se o inesperado. As
crianças, apavoradas, ficaram paralisadas e não se mexeram. SANTOS tentou falar novamente, mas, com
a boca seca, sua voz não saiu. Num esforço desesperado ela soltou um grito que
tirou os alunos do torpor em que se encontravam: “É para sair agora senão nós
vamos morrer!”
22.
As
crianças correram. As sessenta pessoas que estavam na escola evacuaram o local
em cinco minutos. Como a SAMARCO não
havia treinado os moradores para situações de emergência, a retirada foi feita
na base do improviso. Ao voltar para o carro, SANTOS avistou o ônibus que seguia para Santa Rita e que levaria os documentos da escola. As crianças
lotaram o veículo, que acelerou.
23.
Dali
onde estava, a diretora pôde ver a avalanche ocupando as margens do riacho de Santarém. Naquele instante,
ela teve a sensação de que centenas de helicópteros sobrevoavam o lugar,
tamanho o ruído. Com a lama, chegou um fedor de lixo apodrecido. No carro,
trêmula, ela perguntou pelo filho. O marido lhe disse que falara com a mãe ao
celular e ela o avisara que estava fugindo com a criança. A mulher não
acreditou, queria ir à casa da sogra se certificar.
24.
Quando
o carro alcançou a parte mais alta de BENTO,
o marido pediu que ela descesse e prometeu que iria verificar se a mãe e o
menino haviam saído em segurança. Ela obedeceu. Acompanhou com os olhos o carro
se afastando e viu o marido cruzar a ponte para ir à casa da mãe. A vaga
lamacenta começou a engolir parte da vila. A diretora sentou e chorou. Seu
marido agora estava ilhado, quem sabe com seu bebê.
25.
Naquela
manhã, o agricultor REINALDO CAETANO
havia decidido: iria encher a caixa d’água da mãe para que ela não precisasse
transportar água da bica. No terreno próximo ao rio, havia outras casas: a
dele, onde vivia com a mulher e o filho; a do pai, de 80 anos, há muito
separado da mãe; a da irmã. Ao lado, viviam outras pessoas da família, entre elas,
um tio. CAETANO aproveitou a
ausência da mãe para lhe fazer a surpresa: quando voltasse, encontraria a caixa
cheia.
26.
CAETANO andava contente consigo mesmo.
Acabara de comprar um colchão e uma cama box com o dinheiro que vinha
economizando para um tratamento dentário (queria repor alguns dentes).
Considerou, contudo, que a cama deixaria a mulher feliz e, portanto, deu
prioridade à aquisição. Ele conhecera JÉSSICA
em Mariana e a trouxera para BENTO,
onde ela se livrara do crack e passara a cultivar uma rotina doméstica. Tiveram
um filho, Iago, agora com 6 anos. Passava das três e meia da tarde quando o
agricultor deu a tarefa por encerrada. Tirou o boné, limpou o suor do rosto e
olhou para a caixa d’água. No instante seguinte, avistou “um poeirão” despontando
no alto das montanhas. Logo, alguém vindo do final da rua berrava para que
fugissem: a barragem rompera. Caetano disse à mulher para entrar em casa e foi
buscar o pai.
27.
JÉSSICA, ao ver a onda de lama
descendo para o vale, pegou o filho e gritou para que fossem em direção ao
alto. “Se ficarmos aqui vamos morrer”, berrou. CAETANO lhe disse para correr e, enquanto arrastava o pai pelo
braço, lembrou-se do tio que estava sozinho na casa ao lado. Voltou para
buscá-lo, mas o homem se recusou a sair – não abandonaria sua casa. Em
desespero, CAETANO iniciou a subida
até a parte mais alta de BENTO, para
onde outros moradores também se dirigiam apavorados.
28. Um
pouco antes das quatro da tarde, BENTO RODRIGUES deixou de existir. A
gigantesca onda de lama invadiu a vila, engolfando casas, estourando vidros,
arrastando móveis, roupas, brinquedos, panelas e todas as histórias de vida.
Muitos animais que estavam presos no momento em que a onda chegou também foram
levados. Cachorros, gatos, cavalos, galinhas, porcos, passarinhos engaiolados
não tiveram chance. Rolaram com telhados, janelas, o altar da igreja de mais de
300 anos, árvores e automóveis.
29.
Os
moradores assistiram ao mar vermelho passar por telhados e cobrir rapidamente
toda a vila. Como ficaram ilhados em pontos diferentes, ninguém sabia quem
havia sobrevivido. Mães gritavam pelos filhos, filhos gritavam pelas mães.
Adultos e crianças choravam. Alguns moradores formaram uma corrente humana e
resgataram vizinhos que iam sendo arrastados pelo entulho líquido.
30.
WESLEY
PINTO IZABEL era um deles. Ao ser retirado da lama, ele pedia que salvassem
o filho, de 2 anos, que começava a afundar. Um rapaz se atirou na enxurrada e
puxou a criança. A filha de WESLEY IZABEL, EMANUELLY FERNANDES, de 5 anos, se perdeu e foi levada pela onda.
31.
Quando
a barragem rompeu, ele estava em casa com as duas crianças. Num primeiro
momento, achou mais seguro não sair dali. Ao perceber a força da enxurrada,
porém, viu que não teriam chance. Quando decidiu fugir, agarrado aos dois
filhos, a lama já estava a seus pés. Enquanto corria, um galho trazido pela
torrente atravessou seu caminho e quebrou-lhe o tornozelo. A menina que
segurava lhe escapou e desapareceu. Ele e o garoto boiaram. ELIENE DOS SANTOS, a diretora da escola
que ainda estava sem notícias do marido e do filho, viu quando WESLEY IZABEL e o menino foram
retirados da lama, nus, muito machucados e quase sem respirar. A lama que
engoliram – mistura de terra, metais e amido – endurecera dentro deles e lhes
queimava as entranhas. Izabel chorava pela filha, enquanto pedia água para o
menino.
32.
Perto
dali, em outra área da vila, também no alto, PAULA ALVES, a jovem da motocicleta, se abrigara com a mãe, o filho
e a irmã, além de outros moradores, ao lado da Igreja Nossa Senhora das Mercês,
uma construção histórica. De onde estavam, acompanharam a onda engolfar o
povoado e continuar seu curso em direção ao rio Gualaxo do Norte, onde o [rio] Santarém deságua.
33.
Então,
algo pavoroso aconteceu. Ao encontrar o estreitamento na curva do rio, a lama,
sem ter como escoar, entalou, fez um rodamoinho e retornou ao povoado imensa e
violenta, esmagando as casas que ainda não haviam sido atingidas e subindo em
direção às partes mais altas, onde os moradores haviam se refugiado. Quando a
onda voltou, eles se viram encurralados entre o mar de lama e o morro. Não
havia para onde correr. Abraçaram-se e choraram, numa despedida.
34.
Inesperadamente,
porém, a lama estacionou a poucos metros de onde eles estavam e recuou, como
que sugada por um grande ralo. Com a intensa pressão que exercera sobre a
estreita passagem em direção ao rio
Gualaxo, a enxurrada rompeu a barreira que a estrangulara, rasgou as
margens e seguiu em frente. ALVES e
os outros moradores chamaram aquilo de milagre.
35.
Por
volta das cinco da tarde, bombeiros desceram de helicópteros, vindos de Belo
Horizonte e Ouro Preto. Homens da Defesa Civil haviam desembarcado de carro
pouco antes, mas não tinham o que fazer.
36.
A
estrada para BENTO RODRIGUES estava bloqueada, coberta por toneladas de lama.
No alto, onde se viram obrigados a parar, vislumbraram, paralisados, a vila
completamente encoberta pela lava de minério, como uma Pompeia moderna.
Concluíram que todos os moradores estavam mortos. Foi com surpresa que
assistiram a um bombeiro, pendurado na corda presa ao helicóptero, descer e
retirar uma mulher do meio da lama, ainda com vida. Ela não queria ser salva.
Chamava pelo neto, THIAGO DAMASCENO
SANTOS, de 7 anos, que ficara soterrado próximo ao que fora sua casa.
Então, gritos de socorro – um coro de quase 300 pessoas – vindos das partes
mais altas da vila começaram a ser ouvidos. Os homens da Defesa Civil
comemoraram. Não acreditavam que alguém pudesse ter sobrevivido àquele inferno.
A questão era como tirá-los de lá.
37.
A
noite caía quando os bombeiros e a Defesa Civil conseguiram abrir uma trilha
para resgatar os moradores ilhados numa área mais próxima à estrada para Santa Rita Durão. WESLEY IZABEL e o filho, desfalecidos, foram levados de helicóptero
ao hospital. Eliene, a diretora da escola, seguiu com os outros para o vilarejo
vizinho. No caminho, avisaram-lhe que seu filho e sua sogra estavam lá, salvos.
Os dois estavam no grupo de idosos e crianças recolhidos às pressas no caminhão
de limpeza.
38.
Lá
também estavam os alunos da escola que escaparam no ônibus. Havia muito choro e
muito desespero. A jovem PAMELA,
mulher de WESLEY IZABEL, estava na
escola na hora do rompimento e fugiu com os outros alunos. Em Santa Rita,
assistiu à chegada do marido e do filho e soube que a filha EMANUELLY sucumbira.
39.
Já
era noite quando WILEY DOS SANTOS,
marido da diretora da escola, chegou a Santa Rita, bastante machucado.
Conseguira escapar, saltando do carro e correndo em direção à parte mais alta,
com a lama em seu encalço. Lá, seguiu por dentro da mata cerrada até o povoado
vizinho. Foi ele quem acalmou os moradores com notícias do outro grupo ilhado
próximo à Igreja Nossa Senhora das Mercês. Calculando quem estava em Santa Rita
e quem ficara na área da igreja, os moradores concluíram, incrédulos, que quase
todo mundo se salvara. E foi uma comoção quando souberam das mortes dos cinco
vizinhos que horas antes estavam com eles: as duas crianças, THIAGO e EMANUELLY; o tio do agricultor REINALDO
CAETANO, ANTÔNIO DE SOUZA, que
se recusara a sair de casa; MARIA ELISA
LUCAS, de 60 anos, e MARIA DAS
GRAÇAS SILVA, de 65, que não conseguiram escapar.
40.
Anotícia
do rompimento da barragem chegou à Secretaria
de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad) um pouco
antes das cinco da tarde. Como o secretário estava acamado, coube ao
subsecretário, GERALDO VITOR DE ABREU,
um militante histórico do PT sem nenhuma formação na área, ir até o local.
Foi direto para a sede da Samarco, a 20 quilômetros de Mariana.
41.
Quando
chegou, deparou-se com uma cena inquietante. Os diretores da companhia estavam
em pânico, sem saber como agir. A única providência tomada até aquele momento
tinha sido contatar a Defesa Civil para que avisasse os moradores do acidente,
como mandava o manual de segurança da mineradora. Medida, àquela altura,
inócua. Uma simples sirene teria ajudado a alertar os moradores do perigo, mas
não havia nenhuma.
42.
ABREU, um sujeito pequeno, de fala
suave e forte sotaque de Minas, pediu calma ao gerente-geral de Projetos Estruturantes da empresa, GERMANO LOPES, que lhe passava informações
desconexas, com a voz trêmula. “GERMANO,
tudo o que não pode acontecer agora são vocês perderem o controle”, pediu
Abreu. O que LOPES lhe revelaria a
seguir era aterrador.
43.
Primeiro,
a direção da SAMARCO não sabia até
onde a lama poderia chegar. Segundo, a barragem de rejeito da unidade de Germano, localizada mais acima, mas
emendada à de Fundão e duas vezes maior que ela, também corria o risco de
romper, já que suas estruturas tinham sido abaladas.
44.
O
mesmo poderia acontecer com a barragem de água de Santarém, à frente de Fundão, que fora invadida pela lama. Ou seja,
sobre BENTO RODRIGUES pendia uma arma de três canos, com alto poder de
destruição. Por último, a empresa não tinha nenhum plano para controlar a
situação. Estavam diante de um acidente fenomenal, de consequências
imprevisíveis, e ninguém sabia como agir.
45.
Enquanto
os executivos da Samarco batiam cabeça, os bombeiros da região se deram conta
de que, seguindo pelo riacho de Santarém, a onda de lama alcançaria rapidamente
o rio Gualaxo do Norte. Dado o
volume colossal de terra, o rio transbordaria e inundaria os povoados vizinhos,
como acontecera em BENTO.
46.
Um
pouco depois das seis, um helicóptero dos bombeiros pousou no campo de futebol
do povoado de PARACATU DE BAIXO, a
cerca de 70 quilômetros de BENTO, a
jusante do rio. Um oficial desembarcou e avisou que os moradores tinham dez
minutos para correr para a parte mais alta do lugar. Informou que a barragem da
SAMARCO havia rompido e uma onda de
lama vinha em direção ao povoado.
47.
O
pessoal desconfiou. Quem acreditaria que o rejeito do Fundão chegaria até lá? JOSI LOURIVAL DOS SANTOS, de 11 anos,
brincava com a irmã gêmea na casa da avó quando ouviu o barulho do helicóptero.
Achou que fosse algum festejo e partiu com elas em direção ao campo. Não avançaram
muito. No caminho, cruzaram com pessoas apavoradas mandando que voltassem.
48.
Os
que não obedeceram escaparam por pouco. Logo ouviram um ruído ensurdecedor e
avistaram a onda levando as casas na entrada da vila. Correram então para o
alto. Em poucos minutos, só a cúpula da igreja centenária podia ser vista. PARACATU estava destruída.
49.
Como
os bombeiros previram, a lama continuava sua trajetória, rasgando as margens do
rio Gualaxo e fazendo estragos em outros seis povoados: Gesteira, Moinhos, Barretos, Barra Longa, Vista Alegre e Corvina.
Apesar da inundação, todos os moradores foram salvos.
50.
Máquinas
da SAMARCO trabalharam durante a
madrugada para abrir uma passagem por dentro da mata e resgatar quem ficara em BENTO. Ao amanhecer, os bombeiros e a
Defesa Civil chegaram lá. Os feridos seguiram de helicóptero, os demais
caminharam em fila por uma trilha enlameada. Moradores dos outros lugarejos
foram embarcados em ônibus e caminhões.
51. Barragens de rejeito são
estruturas gigantescas, construídas em concavidades naturais no topo das
montanhas. Destinam-se a armazenar todo o material descartado na extração de
minério de ferro, nas minas próximas a elas. As da SAMARCO, em Minas Gerais, são de itabirito, um minério muito
pobre.
52.
Na
década de 70, a empresa, então pertencente à S.A. Mineração Trindade (Samitri) e à americana Marcona – cujas iniciais formaram seu
nome –, desenvolveu uma técnica para extrair o máximo de ferro existente nesse
mineral, por meio de um processo de lavagem.
53.
O
empreendimento se revelou um sucesso, pois o produto retirado dali é de alta
qualidade. O problema dessa técnica é que ela gera enorme quantidade de
rejeitos, que precisam ser armazenados em algum lugar.
54.
O
rejeito segue para a barragem, onde seca e se transforma em terra dura. Ano a
ano, esse resíduo vai sendo empilhado, em degraus, até chegar ao topo da
concavidade. Como não há nenhuma parede frontal, a muralha de contenção é o
próprio rejeito. Por essa razão, esse material tem que estar bem seco e
compactado, sem contato com a água, caso contrário vira lama e desmancha.
Seria, mal comparando, colocar pó de café coado em uma xícara partida ao meio.
O pó só se mantém firme caso esteja seco e comprimido. Para impedir a saturação
da estrutura – seja pela chuva seja pela umidade dentro dela –, a água é
permanentemente drenada e desviada para uma barragem de resíduos líquidos. No
caso de Fundão, a barragem de Santarém.
55.
Vista
de cima, uma barragem de rejeito se assemelha a um deserto. Olhada de baixo, a
impressão que provoca não é menos aflitiva. FUNDÃO, por exemplo, com 898 metros acima do nível do mar, era uma
colossal montanha construída pelo homem, recheada de rejeito mineral. Sua
área de superfície era de 3,4 milhões de
metros quadrados, o dobro do Aeroporto de Congonhas, em São Paulo.
56.
O volume de rejeitos ali
armazenado era espantoso: 55 milhões de metros cúbicos, o equivalente a quase dez
vezes o volume da Lagoa Rodrigo de Freitas, a imensa massa de água na Zona Sul
carioca.
[2]
[SAMARCO SEM PLANO DE CONTINGÊNCIA]
57.
Por
ser uma estrutura de enorme poder de devastação ambiental, as mineradoras
precisam ter estratégias de emergência para a eventualidade de suas barragens
romperem, o chamado Plano de
Contingência. A Samarco não tinha nenhum.
58.
Logo se descobriria que o plano
que a empresa encomendara em 2009 à consultoria RTI, de São Paulo,
especializada em controle de risco, fora engavetado para REDUZIR CUSTOS. Segundo informações do diretor
da RTI, RANDAL FONSECA, o plano
previa o monitoramento permanente das estruturas, com visitas diárias de especialistas.
A estratégia ainda incluía ações como alerta às comunidades próximas,
previamente treinadas para agir em caso de rompimento, além de instalação de
sirenes. Também fora prevista a construção de diques ao longo do vale, que
freariam a lama no caso de ruptura. Como a Samarco nunca acreditou que isso
fosse possível, esses cuidados eram considerados desnecessários.
59.
Quando
a barragem rompeu, a única informação segura que os executivos da empresa
tinham era que, dos 466 trabalhadores que estavam na empresa na hora do
acidente, 452 já haviam sido localizados. Catorze
estavam desaparecidos, contando os terceirizados.
60.
Um
deles era DANIEL ALTAMIRO DE CARVALHO,
de 53 anos, operador de máquinas da Integral, prestadora de serviços para a
Samarco. Sua filha, SANDRA CARVALHO,
de 22 anos, assistia a uma aula no curso de engenharia na Universidade Federal
de Ouro Preto quando a barragem desmoronou. Moradora de Mariana, ela ligou para
a mãe para ter notícias do pai. A mãe a tranquilizou, disse que estava tudo
bem. Mas na verdade não tinha notícias do marido. Com receio de que a filha se
acidentasse na estrada, preferiu poupá-la.
61.
No
fim da noite, o subsecretário GerALDO
ABREU deixou a sede da SAMARCO e
voltou para Mariana. No caminho, desabou uma chuva. A primeira, em muitos
meses. Um agravante para uma situação já absurdamente dramática. Abalado com os
gritos das pessoas ilhadas em BENTO RODRIGUES (que ouvira ao cruzar o local em
que estavam os homens da Defesa Civil), e preocupado com um possível rompimento
das outras barragens, Abreu passou a noite em claro.
62.
Na
casa da família CARVALHO, tanto SANDRA, que voltara para Mariana, como
a irmã e a mãe tampouco dormiram. Haviam entrado em contato com a INTEGRAL, que repetira não saber do
paradeiro do funcionário.
63.
Na
manhã do dia 6, dezesseis horas após o rompimento, uma massa de criaturas
famintas, feridas e em estado de choque começou a chegar à Arena Mariana.
Haviam sido resgatadas em BENTO RODRIGUES e nos povoados abaixo dele.
64.
Desde
a véspera, o prefeito DUARTE JÚNIOR,
do PPS, montara uma operação para receber os desabrigados. Como ninguém
apareceu, JÚNIOR temeu que
estivessem todos mortos. Quando enfim chegaram, o lugar estava coalhado de
colchões, roupas e comida doada pela população. Receberam abraços de amigos e
desconhecidos que acorreram ao local. Ao ver ELIENE DOS SANTOS, o marido e o bebê, sujos e esgotados, um
voluntário levou roupas, fraldas e leite. Ela se emocionou. PAULA GERALDA ALVES, do outro lado do
salão, foi saudada como heroína. Não fosse ela ter disparado em sua moto, boa
parte daquelas pessoas estaria morta.
65.
CARLOS
EDUARDO FERREIRA PINTO,
promotor de Justiça do Meio Ambiente do Ministério Público Estadual de Minas
Gerais, estava em Brasília na hora do acidente. Chegou à sede da SAMARCO às seis da manhã do dia
seguinte. Encontrou um ambiente de caos. Não havia hierarquia, estrutura de
comando ou sala de crise (que só seria criada cinco dias depois). Dezenas de
burocratas e técnicos de vários órgãos públicos federais e estaduais circulavam
desnorteados, cobrando ações dos diretores da empresa.
66.
RICARDO VESCOVI DE ARAGÃO, o presidente da mineradora,
que no momento do rompimento estava no escritório em Belo Horizonte
participando de uma reunião sobre segurança, se deslocou para Mariana ao saber
do acidente. Lá o procurador o encontrou com os olhos arregalados, repetindo a
mesma frase: “Isso nunca aconteceu antes, isso nunca aconteceu antes.” Diante
das evidências de que a SAMARCO e os
órgãos ambientais não tinham ideia de como enfrentar o problema, FERREIRA PINTO concluiu que os rejeitos
só seriam contidos se topassem com algum bloqueio no caminho.
[3]
[ONDA DE LAMA ENTRA NO RIO DOCE]
67.
Muito
mais rápido do que se pudesse prever, aconteceu o que todos mais temiam: a
onda, que na madrugada entrara no rio do
Carmo vinda do [rio] Gualaxo do
Norte, encontrou o rio Piranga,
em Santa Cruz do Escalvado, a 100
quilômetros de Mariana, e na manhã de sexta-feira alcançou o rio Doce. Ali, a lama se espalhou e transbordou. O Doce, com 650 quilômetros de
extensão até o mar, entrava no centro da tragédia.
68.
Ao
atingir o rio, a lama misturada à água ultrapassara 800 mil NTUs. Sigla em
inglês para Unidades Nefelométricas de Turbidez, NTU é a unidade de medida
do nível de turbidez. Antes da sua chegada, a turbidez naquela parte do rio era
de 2,50 NTUs, ou seja, água quase transparente.
69.
Pelos
manuais geológicos, o nível máximo tolerável é de 1 500 NTUs, o limite de
sujeira que as estações de tratamento de água conseguem limpar para
distribuí-la em segurança para a população. Os técnicos da Agência Nacional de
Águas, ANA, e da Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais, CPRM, que seguiam
a rota dos rejeitos e fizeram a medição dos resíduos, se apavoraram com o
resultado: a lama soterrara o rio.
70.
Por
volta das sete da manhã, dezesseis horas após o rompimento de Fundão, a onda
encontrou o primeiro obstáculo nos 102 quilômetros que percorrera até ali: o
paredão de concreto da barragem da usina
hidrelétrica de Candonga. Os técnicos chegaram a acreditar que naquele
ponto ela seria contida, mas o volume era tamanho que logo a usina precisou
abrir as comportas para escoar parte do resíduo acumulado. Se não o fizesse,
havia o risco de a barragem não suportar o peso e também se romper, aumentando
a tragédia.
71.
Quando
as comportas se abriram, a onda desceu com força de catarata. Um mingau espesso
da cor de mertiolate, impregnado de rejeito de minério, avançou pelo rio Doce,
eliminando a vida existente: peixes, algas, micro-organismos, capivaras que
passeavam nas margens, além de toda a vegetação ao redor, que desapareceu como
se cortada por uma lâmina.
72. Ao
contaminar o rio, a lama, numa reação em cadeia, afetou toda a bacia do Doce,
uma região de 86 mil quilômetros quadrados, território equivalente ao da
Áustria. No total, 228 municípios foram impactados pelo desastre. Naqueles
primeiros dias, seis deles seriam dramaticamente atingidos.
[4]
[ONDA DE LAMA IMPACTA A CIDADE DE GOV. VALADARES]
73.
A300
quilômetros dali, em Governador Valadares, o empresário SANDRO HERINGER acordou com a notícia de que a lama invadira o rio
Doce. Conhecedor da região, deduziu que em breve a onda chegaria a sua cidade.
Com 300 mil habitantes, Valadares é
o maior município banhado pelo rio. A relação dos moradores com suas águas é
tão estreita que Valadares é a única cidade brasileira a ter um finalista
na prova pan-americana de canoagem* – o que não impede que o rio seja
maltratado pelo esgoto sem tratamento, o lixo em suas margens e a pesca
predatória. Heringer integrava um grupo de 150 remadores que costumava singrar
por suas águas, em seus caiaques. Na ilha
dos Araújos, um dos poucos pontos aprazíveis da calorenta Valadares, o rio
descia formando pequenas corredeiras, lugar ideal para a prática de canoagem. O
empresário passou o dia apreensivo.
74.
Os
moradores aguardavam a lama, sem nada poder fazer para impedir o desastre. No
domingo, dia 8, três dias após o rompimento, conscientes de que a destruição do
rio era inexorável, a turma do remo se juntou para uma melancólica despedida.
Em silêncio, em seus caiaques, mais de 100 remadores, HERINGER entre eles, entraram no rio, remaram por um longo tempo e
atiraram-se em suas águas. Sabiam que seria a última vez, pelos próximos dez
anos, no mínimo, que poderiam repetir aquele ritual.
75.
Na
vizinha ilha de São Tarcísio, os
pescadores também estavam aflitos. Se a lama viesse não haveria mais pesca. A
atividade já vinha encolhendo havia tempo, devido a vários problemas que
afetavam o rio Doce. Um detalhado levantamento feito pelo IBIO, ONG contratada pelo Comitê de Bacia – entidade que reúne os
municípios da região para discutir saídas para a crise hídrica –, revelava que
a poluição era o maior dos males enfrentados pelo rio.
76.
Das
228 cidades da bacia, totalizando 3,5 milhões de habitantes, apenas vinte
tratavam o esgoto. Além disso, a crise era agravada pelo assoreamento das
margens e o crescimento desordenado das cidades, bem como o aumento da
atividade agrícola, do plantio de pasto em detrimento da mata ciliar, do lixo
descartado e do avanço da indústria. Muitos municípios já vinham abastecendo
suas estações de água com caminhões-pipa.
77.
O
IBIO também alertara que as invasões
haviam comprometido áreas de preservação ambiental. Com isso, as nascentes que
alimentavam o rio ou estavam secando ou, simplesmente, haviam desaparecido.
78.
Em
muitas partes ao longo da calha, a água chegara a níveis tão baixos que uma lancha
para dois corria o risco de encalhar. Regiões mais ao norte de Minas já estão
se desertificando. Se antes da lama o rio
Doce estava enfermo, após a catástrofe a situação atingiu níveis
alarmantes.
79.
Na
Prefeitura de Governador Valadares, a maior preocupação era com o
abastecimento. Como 100% da água da cidade é coletada no rio Doce, haveria corte do fornecimento quando a lama chegasse por
lá. E não existia um PLANO para
enfrentar o problema.
80.
Os
técnicos do Serviço de Abastecimento de Água e Esgoto, SAAE, calculavam de
quanto tempo ainda dispunham para manter o sistema de captação em
funcionamento. A aproximação da lama era monitorada minuto a minuto.
81.
Há
31 anos servindo no SAAE, o químico REINALDO
PACINI, um homem de expressão triste e aflita, estava no auge do estresse.
Como o diretor-geral da autarquia, Omir Quintino Soares, e seu adjunto, VILMAR DIAS JÚNIOR, ocupavam os cargos
não por conhecimento técnico, mas por acertos políticos com a prefeitura do PT,
o químico sabia que lidaria sozinho com a crise. Os técnicos da ANA o
pressionavam para desligar as máquinas logo, PACINI bateu o pé: só interromperia a captação quando a lama
estivesse a poucos quilômetros da estação. Precisava estar com os reservatórios
cheios no momento de cortar o abastecimento. “Conheço o sistema e sei a hora de
desligar.”
82.
Às
quatro da manhã de segunda-feira, dia 9, quase noventa horas após o
transbordamento de Fundão, a 1,8 quilômetro por hora a lama avançou até a Usina Hidrelétrica Baguari – pouco
acima de Valadares e a 289 quilômetros de BENTO RODRIGUES. O nível de turbidez
da água era de mais de 400 mil NTUs.
83.
Com
a paralisação da usina de Candonga, o Operador Nacional do Sistema Elétrico
entrou em alerta. Temia-se que o fornecimento de luz para a região Sudeste
ficasse comprometido caso mais uma usina parasse.
84.
O
empresário JOSÉ FRANCISCO SILVA DE ABREU,
presidente da Associação dos Pescadores e Amigos do Rio Doce, rumou para
Baguari junto com técnicos da Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais.
Desesperou-se com o que viu: milhares de peixes agonizavam. Ao voltar para
Valadares, seu choque foi maior: os ribeirinhos encurralavam os peixes que
escapavam pelos córregos tentando se livrar da lama. A quantidade era tamanha
que eles os pescavam com baldes.
85.
Às
cinco da tarde do dia 9, quatro dias após o acidente de FUNDÃO, a lama entrou em Valadares, a uma velocidade de 0,4
quilômetro por hora. Pela manhã, o técnico PACINI
fechara a captação da água para evitar a contaminação do sistema. Quando a lama
se aproximou da cidade, milhares de pessoas já se aglomeravam em pontos
estratégicos, inclusive no alto das pontes, para assistir ao espetáculo
macabro. HERINGER viu tudo da ilha dos Araújos, onde mora. A onda
desceu pelo rio caudaloso, tingindo-o imediatamente de vermelho, e logo os peixes
começaram a subir até a lâmina d’água em busca de oxigênio. Em pouco tempo
estavam todos mortos, boiando, envoltos em terra. A turbidez do rio, que antes
da chegada do rejeito era de 2,62 NTUs, ultrapassou 120 mil. Toda a vida do rio Doce em Valadares foi
dizimada por sufocamento. Não demorou muito e o odor de peixe podre infestava
tudo.
86.
Na
manhã de terça-feira, dia 10out2015, cinco dias após o desastre, a água em Valadares começou a escassear. No dia
11, com os reservatórios vazios, a cidade entrou em colapso. Os caminhões-pipa
contratados pela prefeitura não davam conta de atender a todas as comunidades.
A prefeitura exigiu da Samarco a doação de água mineral, o que só foi feito
após ordem judicial, já que a empresa afirmava não ter logística para fazer a
distribuição. Governador Valadares se transformou numa praça de guerra, com
saques a lojas e supermercados, tiroteios e ataques aos caminhões-pipa. O
Exército precisou ser acionado. Moradores armados obrigavam os motoristas a
desviar os caminhões-pipa para bairros não assistidos. Pessoas com dificuldades
de locomoção ficaram presas em casa, com as torneiras secas.
87.
Para
acompanhar a crise, o comando do Comitê de Bacia do Rio Doce rumou para a
cidade. O comitê é presidido por LEONARDO
DEPTULSKI, do PT, prefeito de Colatina, uma das maiores cidades do Espírito
Santo, a 225 quilômetros de Valadares seguindo o rio, responsável pela captação
de água no município. Além do prefeito, seguiram para Valadares especialistas
da comunidade científica capixaba, entre os quais ABRAHÃO ELESBON e mais dois pesquisadores do Instituto Federal do
Espírito Santo, IFES, em Colatina.
88.
O
grupo chegou à cidade mineira na manhã de quinta-feira, dia 12, seis dias após
o rompimento de Fundão. Ao longo da viagem de carro, na contramão da onda,
testemunharam a aflição dos peixes em busca de oxigênio, nas margens cobertas
de lama rubra. Era época da desova, quando a pesca fica proibida, e por isso os
peixes eram tão numerosos.
89.
Na
Prefeitura de Valadares, ELESBON e
seu grupo encontraram uma situação insólita. A prefeita ELISA COSTA, do PT, implorava aos prantos por água. “Eu não quero
dinheiro, quero água para a população”, ela repetia. A água mineral aportou em
vagões de trem da Vale, cuja ferrovia corta a região – vai de Belo Horizonte até
Vitória. Os moradores avançaram sobre os fardos de garrafas, alguns chegaram a
estocar muito mais do que precisavam. Somente na semana seguinte, mais de
quinze dias após o acidente, a situação começaria a se normalizar.
90.
RESPLENDOR é uma cidadezinha a duas horas
de Governador Valadares, em direção à foz do rio Doce. A alguns poucos
quilômetros do município, seguindo-se por uma estrada cercada de montanhas,
entra-se por um caminho de terra onde uma placa quase apagada avisa tratar-se
de uma reserva indígena. É a aldeia dos índios da tribo Krenak. Viviam ali
desde sempre. Com o garimpo na região do rio Doce, suas terras foram invadidas
e a população exterminada. Nos anos 60, os sobreviventes foram levados à força
para reservas indígenas em outros estados. Fazendeiros ocuparam o lugar e o
transformaram em pasto, destruindo a vegetação nativa e matando as nascentes.
Com a política de demarcação de terras, os krenaks voltaram. Vieram a pé, e lá
se restabeleceram.
91.
DEJANIRA KRENAK tem mais de 70 anos e viveu
toda aquela violência. Como era uma das poucas pessoas da tribo a conhecer a
língua Krenak, passou a ensiná-la aos mais jovens. No dia em que a barragem
rompeu, ela estava na prainha da aldeia, banhada pelo Doce. Para o povo Krenak
o rio é uma entidade sagrada, mas nem por isso deixa de ser próximo e
acolhedor. “É nosso pai, é nossa mãe”, ensina Dejanira às crianças da aldeia.
“Ele nos alimenta, nos dá água, nos dá a vida.” Apesar desse reconhecimento,
eles mantêm uma relação ambígua com o Doce, poluindo-o com a lavagem de roupa e
louças, e também assoreando seu leito com a irrigação de pequenas plantações.
92.
Na
tarde do dia 12out2015, oito dias após o desastre, ao serem avisados por
parentes de fora que o rio estava prestes a se tornar estéril, os krenaks se
reuniram na praia da reserva para uma cerimônia fúnebre. Aguardaram pela
chegada da onda com chocalhos nas mãos, cantando um réquiem para o watu –
rio, na língua Krenak. A toada triste diz coisas como “rio bom, rio sagrado,
rio cheio de peixes”. Quando viram a lama vermelha, abraçaram-se e choraram.
O watu estava
morto.
93.
Depois
do que presenciaram em Valadares, o prefeito LEONARDO DEPTULSKI e os pesquisadores do IFES voltaram
assustados para Colatina. Sabiam que precisavam montar uma operação de
emergência para evitar o que acontecera no município mineiro. Colatina tem 120
mil habitantes e é um importante polo têxtil e de serviços do estado. Deptulski
instalou um gabinete de crise na sede do Departamento de Água e Esgoto.
Técnicos da Samarco, dos governos estadual e federal foram convocados, assim
como as Forças Armadas.
94.
O
professor ELBONE, do IFES, depois da
cena de mortandade de peixes a que assistira, achava que era preciso fazer
alguma coisa para impedir que a matança se repetisse no Espírito Santo. Entrou
em contato com o fotógrafo EDSON
NEGRELLI, um ativo ambientalista de Colatina. Decidiram montar uma operação
de salvamento da fauna hídrica antes da chegada da lama, à qual deram o nome de
“Arca de Noé”. Pediram apoio ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis (Ibama), que aprovou a ideia, mas determinou que
apenas as espécies nativas seriam salvas e levadas para tanques no campus do
instituto. As não nativas seriam deixadas no rio – não podiam ser transportadas
para lagoas próximas, pois modificariam a fauna local ao se misturarem aos
demais peixes. NEGRELLI não
concordou com o pré-requisito: para ele, todas as espécies deveriam ser salvas.
95.
A
operação foi cuidadosamente preparada. A Samarco enviou tanques de transporte
com controle de oxigênio, o IFES preparou os tanques e NEGRELLI, que preside a associação de
pesca esportiva de Colatina, convocou pescadores profissionais para ajudar no
resgate. Para decepção do fotógrafo, os pescadores toparam participar, desde
que fossem pagos. Após os acertos financeiros, a Arca de Noé teve início. A
operação contou com o entusiasmo da população, que em pouco tempo se agrupou na
beira do cais. Quem não entrava no rio assessorava a turma do resgate,
providenciando café, água e comida. Durante uma semana, os voluntários
trabalharam no salvamento. Centenas de espécies autóctones foram deslocadas
para os tanques do IFES. E milhares de peixes não nativos foram retirados e
colocados nas lagoas, ao arrepio das ordens do Ibama.
96.
Na
manhã do dia 19out2015, quinta-feira, quatorze dias após o rompimento de
Fundão, a lama chegou a Colatina. Quando a onda estava a 50 quilômetros da
cidade, fechou-se a captação de água. Nas ruas já havia 180 caminhões-pipa,
além daqueles de distribuição de água mineral. Cada morador podia pegar o que
julgasse necessário, medida que tranquilizou a população. A onda entrou,
fazendo do largo rio um vasto campo barrento. Sentado no cais, NEGRELLI chorou.
97.
Acrise
em Colatina estava sob controle. No entanto, havia pela frente um problema e
tanto: a onda se aproximava rapidamente da foz do rio, na vila de Regência, a 132 quilômetros dali. Isso significava que em
breve desembocaria no oceano Atlântico. Instalou-se o pânico. Como os vários
órgãos públicos trabalhavam sem uma coordenação central, ninguém sabia o que
fazer. Dias antes, pesquisadores da Universidade Federal do Espírito Santo
haviam sugerido que a usina hidrelétrica de Aimorés, na divisa de Minas com o
Espírito Santo, fechasse as comportas para reter os resíduos e impedir sua entrada
no estado. Quando a decisão foi tomada e o alerta dado, era tarde: a lama já
escapara.
98.
No
dia 19, como que surpreendida pela notícia de que a lama alcançaria o litoral
capixaba, a Justiça Federal do Espírito Santo deu 24 horas para que a SAMARCO tomasse uma atitude para
impedir o avanço da onda, sob pena de ser multada em 10 milhões de reais ao
dia. Para cumprir a ordem, a Samarco espalhou ao longo do rio, até a foz, boias
utilizadas em acidentes com vazamento de petróleo.
99.
Em
Regência, o líder comunitário CARLOS
SANGÁLIA e o pessoal do Projeto Tamar retiravam os ninhos de tartarugas
para transferi-los a outras áreas. As boias distribuídas pela SAMARCO se revelaram inúteis: os
resíduos deslizavam por elas, prosseguindo em sua rota de destruição.
100.
No
dia 20, sexta-feira, a lama, após passar por Colatina, atingiu a vizinha
Linhares, numa região por um lado cercada de lagoas azuis e altas montanhas, e,
por outro, pelo rio Doce, cujas águas escarlate e apodrecidas destoavam da
paisagem deslumbrante. Um pouco antes das 15 horas do dia 21, a lama chegou à
foz do rio. Em instantes a vida no mangue foi sufocada. Exatamente às 15 horas,
dezesseis dias após o rompimento da barragem, a lama desembocou no mar,
arrasando a biodiversidade numa área de 40 quilômetros.
[5] A HISTÓRIA DOS RESPONSÁVEIS
101. O delegado
RODRIGO BUSTAMANTE, da Polícia Civil
de Minas Gerais, lotado em Ouro Preto [município vizinho de Mariana], rumou para BENTO RODRIGUES acompanhado do perito OTÁVIO GUERRA TERCEIRO assim que soube da notícia do rompimento, às
15h30 do dia 5 de novembro [2015].
102. Como
era grande a probabilidade de o desastre ter feito vítimas fatais, eles
iniciaram a investigação a partir do levantamento das causas do acidente, para
poder chegar aos responsáveis. Em meados de abril eu me encontrei com BUSTAMANTE em Ouro Preto, em seu
gabinete na delegacia. Ele foi direto: “O que aconteceu ali foi uma tragédia
anunciada”, disse. “E aquela pequena comunidade embaixo dela nunca
soube do risco que corria.”
103. O
delegado tirou da gaveta uma cópia do inquérito da Polícia Civil e apontou para
o depoimento da gerente de Geotecnia e
Hidrogeologia da SAMARCO, DAVIELY RODRIGUES SILVA, responsável
pelo monitoramento da barragem. “Veja isso”, ele falou, e pôs-se a ler em voz
alta. A gerente revelou que Fundão, projetada em 2006 pela empresa PIMENTA DE ÁVILA e construída pela
empresa CAMTER, sempre apresentou
problemas de drenagem. O primeiro deles foi em 2009, quando surgiu um
vazamento; em 2010, um segundo; e outro, mais sério, em 2012. Todos foram
reparados.
104. Em
2012, a SAMARCO cancelou o contrato
com a PIMENTA DE ÁVILA e decidiu,
por conta própria, fazer uma obra na estrutura da barragem. Mudou seu eixo,
encurvando-o, para que ela pudesse comportar maior volume de rejeitos, mas não
comunicou a obra aos órgãos ambientais do estado, à época governado por ANTONIO ANASTASIA, do PSDB. Desde
então, os problemas se intensificaram. Em 2013 houve um vazamento na metade
esquerda da barragem, onde a obra fora feita. Em 2014, a água brotou na metade
direita.
105. O
maior risco para uma barragem de rejeitos é o surgimento de água em suas
entranhas. Quando isso acontece, o rejeito compactado vira lama e se desmancha.
Acidentes como o de Fundão já ocorreram ao redor do mundo – nunca, porém, uma
barragem inteira havia se desmantelado. Segundo a Polícia Civil, isso prova que
toda a estrutura estava inundada.
106. Para
prevenir esse tipo de acidente, é obrigatória a colocação de piezômetros no
interior das barragens. São medidores de água que avisam se as estruturas estão
ou não em risco de liquefação. Em 2014, como os problemas de água em Fundão não
cessavam, a Samarco pediu um parecer à PIMENTA
DE ÁVILA.
107. Em
depoimento à Polícia Civil, o presidente da consultoria, JOAQUIM PIMENTA DE ÁVILA, contou que o projeto original não previa
o recuo feito em 2012, e explicou que aquela foi uma obra arriscada e
tecnicamente não recomendável. Revelou ainda que fez seis inspeções na barragem
em 2014, destacando uma em especial, a de 4 de setembro, quando identificou
rachaduras de grande extensão, próximas ao dique onde fora construído o recuo.
Na ocasião, ÁVILA sugeriu à SAMARCO que fizesse obras de reforço e
aumentasse o número de piezômetros naquela área. Além disso, recomendou que
diariamente se verificasse o nível de água.
108. Por
determinação dos órgãos ambientais, as mineradoras devem apresentar anualmente
um laudo comprovando a segurança de suas barragens. Cabe às companhias
contratar consultorias que atestem a estabilidade. No caso da SAMARCO, a contratada era a VOGBR, também responsável pelo projeto
de construção do recuo. Em junho de 2015, SAMUEL
PAES LOURES, técnico da VOGBR,
emitiu um parecer atestando a segurança de FUNDÃO.
Ou seja, o fiscal era o próprio construtor – um conflito de interesses
clássico.
109. Quando
BUSTAMANTE perguntou a LOURES se ele analisara a área onde
havia sido feito o recuo, ele respondeu que não: não viu necessidade. O técnico
também alegou desconhecer as recomendações da PIMENTA DE ÁVILA para aumentar o número de piezômetros naquela
parte da estrutura. E ainda sustentou que tampouco fora informado da necessidade
de leitura diária do nível da água naquela área. O delegado me disse não
entender como a VOGBR pôde atestar a
estabilidade de Fundão, dadas as inúmeras falhas na estrutura da barragem.
110. Os
depoimentos que vieram a seguir complicaram ainda mais a SAMARCO. A última medição de água fora feita no dia 26 de outubro,
dez dias antes do desmoronamento – a PIMENTA
DE ÁVILA recomendara a leitura diária. E mais: as leituras foram manuais
porque a maioria dos piezômetros automatizados, de medição mais precisa, estava
com defeito. Além disso, mesmo sabendo dos problemas de drenagem, a empresa,
segundo o delegado Bustamante, aumentou o volume de rejeitos lançados ali,
contrariando as normas técnicas.
111. Por
essas normas, o alteamento de barragens – jargão do setor para designar a
quantidade de rejeito acumulado por ano – deve ser de, no máximo, 10 metros. Em
Fundão, era de mais de 15 metros. Mesmo consciente dos problemas na estrutura,
a mineradora pediu à Secretaria de Meio Ambiente de Minas Gerais – já durante o
governo Fernando Pimentel, do PT – autorização para elevar a barragem de
898 metros para 920, ampliando assim sua capacidade de armazenamento. AUTORIZAÇÃO CONCEDIDA.
112.
Tanto
a construção da barragem, autorizada em 2008 no governo de Aécio Neves, do
PSDB, como sua elevação, com o aval do governo Pimentel, em 2015, se
justificavam, segundo a SAMARCO, em
razão do crescimento da produção.
113. Quando começou a operar, em
1977, a empresa produzia 5 milhões de toneladas de minério. Em 2014, eram 30
milhões. A aceleração visava
aproveitar a disparada no preço do minério, que chegou a 240 dólares a
tonelada, no caso do minério da SAMARCO,
de melhor qualidade.
114. Mas
foi o depoimento do presidente da empresa, RICARDO
VESCOVI DE ARAGÃO, que explicitou
o total descuido da direção. VESCOVI
DE ARAGÃO botou a culpa em seus subordinados, esquivando-se de suas
atribuições. Como diretor-presidente, disse, não possuía “responsabilidade direta em
relação às barragens de Fundão, Santarém e Germano”; não tinha
conhecimento da obra de recuo, aprovada, em 2012, pelo gerente-geral de
Projetos; não poderia informar a causa da ruptura porque isso era da alçada do
diretor de Operações.
115. Segundo
VESCOVI DE ARAGÃO, ele não tinha
nada a ver com aquilo tudo. Mas ainda assim garantiu que no dia do acidente
“passou suporte e confiança aos funcionários que estavam atuando com a Defesa
Civil e os bombeiros”. Mentiu à polícia
ao dizer que o PLANO DE AÇÕES EMERGENCIAIS fora colocado em prática, já que tal
plano não existia. Ao ser indagado, VESCOVI
continuou batendo em sua tecla preferida: disse não possuir “qualquer
responsabilidade no que competia ao plano de ações”.
116. ROGER
LIMA DE MOURA,
chefe da Delegacia de Meio Ambiente e Patrimônio Histórico da Polícia Federal
de Minas Gerais, assistiu à notícia do rompimento da barragem pela tevê, em seu
gabinete, em Belo Horizonte. Impressionou-se com as imagens, mas não tinha
certeza se poderia atuar, já que naquele momento o acidente se limitava a rios
estaduais. Na sexta-feira, dia 6 de novembro, quando a lama atingiu o Doce, um
rio federal (corta dois estados), ele enviou sua equipe para investigar o
crime. Em dezembro, os agentes federais grampearam conversas telefônicas de
alguns funcionários da Samarco e da empresa VOGBR. Pelo que ouviram, concluíram que os executivos de ambas as
empresas sabiam dos problemas da barragem, mas assumiram o risco de mantê-la
funcionando.
117. O
engenheiro da VOGBR, SAMUEL PAES LOURES, por exemplo, em
conversa com o sócio da empresa, OTHÁVIO
AFONSO MARCHI, fez um comentário raivoso sobre JOAQUIM DE ÁVILA, o dono da consultoria PIMENTA DE ÁVILA: “Ele foi o único que jogou merda no ventilador e
levantou a bola para a polícia. O curso da investigação mudou por causa dele. A
gente tem que sair fora dessa.” E, mais adiante, admitiu a culpa. “O PIMENTA tem razão, mas ele está
contribuindo com a investigação e fodendo a gente.”
118. No
momento do desastre, a presidente DILMA
ROUSSEFF e o ministro da Integração Nacional, GILBERTO OCCHI, participavam da inauguração do Canal do Sertão, que
levou as águas do rio São Francisco para alguns municípios de Alagoas. Souberam
da tragédia no avião, na volta para Brasília. A presidente imediatamente entrou
em contato com a ministra do Meio Ambiente, IZABELLA TEIXEIRA, e com outros integrantes do governo, mas àquela
altura ninguém tinha a dimensão da tragédia. O primeiro aviso à comitiva
presidencial fora dado ao ministro Occhi, por sua assessoria, em Brasília, que
ligou para saber se no dia seguinte ele iria ao local do desastre. Precisavam
dar uma resposta ao Jornal Nacional, que lhes fizera a consulta. O
ministro disse que sim.
119. Na
tarde de sexta-feira, 24 horas após o rompimento da barragem, quando o desastre
repercutia em todo o mundo, a assessoria da presidente ainda tentava
convencê-la a ir a Mariana prestar solidariedade. DILMA disse não. Achou que chegar lá no meio da tragédia poderia
parecer oportunismo. Decidiu ficar no Planalto cobrando providências. Irritada
com a demora da ministra IZABELLA
TEIXEIRA em lhe apresentar dados sobre o acidente, a presidente teve uma
discussão com ela, por telefone, em decibéis que podiam ser ouvidos por quem
passava do lado de fora de seu gabinete. “Eu quero dados confiáveis”, a
presidente gritava, enquanto cobrava soluções. Do outro lado da linha, a
ministra se defendia no mesmo tom de voz.
120. O presidente
da Vale, MURILO FERREIRA, sobrevoou o vale do
rio Doce, que deu nome à mineradora, no sábado, dia 7, 48 horas após o
acidente. Apesar dos apelos de sua assessoria para que desse alguma satisfação
à sociedade, FERREIRA se manteve em
silêncio. Achava que era hora “de trabalhar para ajudar as vítimas, e não de
falar”. Na verdade, desde o rompimento da barragem da SAMARCO, a VALE, que em
2000 comprara 50% da empresa – os outros 50% pertencem à anglo-australiana BHP BILLITON –, tentou se descolar
do desastre, escorando-se no acordo de acionistas que obrigava os controladores
a não ter contato com a controlada. Como as três companhias produzem minério de
ferro, justificavam que uma eventual aproximação com a Samarco significaria
formação de cartel.
121. Na
Austrália, a pressão de grupos ambientalistas forçou o presidente da BHP BILLITON, ANDREW MACKENZIE, a se manifestar. Uma de suas maiores preocupações
era evitar que o acidente arruinasse a imagem da companhia.
122. No
domingo, dia 8, 72 horas após o rompimento de FUNDÃO, com parte do estado em situação de emergência, o governador
de Minas Gerais, FERNANDO PIMENTEL,
convocou uma entrevista. Escolheu a sede da SAMARCO para falar com os jornalistas. Movimentos sociais o
acusaram de estar sendo conivente com a empresa. Durante a comunicação, disse
que o governo do estado e a companhia estavam fazendo “todo o possível para
mitigar os danos causados pelo desastre”. E não pegou pesado com a SAMARCO: “Não podemos apontar culpados
sem uma perícia técnica mais apurada”, disse. O setor de mineração é um dos
maiores pagadores de impostos de Minas.
123. Na
tarde de quarta-feira, dia 11out2015, seis dias após o desastre, os presidentes
das três mineradoras convocaram uma entrevista na sede da SAMARCO. RICARDO VESCOVI DE
ARAGÃO, com o pânico estampado no rosto, sentou-se entre FERREIRA e MACKENZIE – que voara de Sidney a Belo Horizonte para participar da
coletiva –, e os tocou nos ombros, como que sinalizando estarem juntos no
problema.
124. FERREIRA e MACKENZIE reagiram com espanto, não escondendo o desconforto. VESCOVI DE ARAGÃO iniciou sua
apresentação não com um pedido de desculpas, como seria de se esperar, mas com
um agradecimento pela enorme solidariedade que a empresa estava recebendo da
sociedade em razão do drama que enfrenta por causa do desastre. Encerrou
prometendo fazer o possível para resolver rapidamente os problemas humanos e
ambientais resultantes do acidente.
125. FERREIRA e MACKENZIE se solidarizaram com as
famílias dos mortos e desaparecidos, mas tampouco se desculparam.
126. DILMA só visitou a região afetada
pelo maior desastre ambiental da história brasileira uma semana depois. Nos
Estados Unidos, o presidente GEORGE W.
BUSH esperara dois dias para sobrevoar Nova Orleans – em agosto de 2005, o
furacão Katrina devastou 80% da cidade –, atraso que derrubou seu índice de
popularidade. A demora veio a ser considerada uma das mais graves omissões de
responsabilidade da história da Presidência norte-americana. No dia 12out2015,
a assessoria de DILMA finalmente a
convenceu a ir a Governador Valadares – àquela altura já em estado de
calamidade.
127. O
Ibama, ligado à pasta do Meio Ambiente, resolvera aplicar multas no valor de
250 milhões de reais à SAMARCO pela
destruição ambiental. Caberia a DILMA
ROUSSEFF anunciar a medida. No aeroporto de Valadares, ela fez uma reunião
de emergência com os prefeitos das cidades atingidas e em seguida discursou.
Foi um constrangimento. Primeiro, atrapalhou-se com o nome da empresa, que
chamou de “São Marcos”. Depois, como
que desconhecendo a gravidade da situação, afirmou que o rio Doce seria
recuperado e ficaria “muito melhor do que era”. Por fim, anunciou a multa, da
qual a empresa recorreria (e nunca pagaria). E se retirou.
128. Desde
o dia do desastre, deu-se um jogo de empurra-empurra entre os diversos órgãos
federais e estaduais, um querendo atribuir ao outro a responsabilidade pela
fiscalização da barragem.
129. O
Ibama afirmava que cabia à Secretaria Estadual de Meio Ambiente de Minas
Gerais. Esta, por sua vez, argumentava que seu papel se restringia ao
licenciamento, empurrando a função de fiscal para o DNPM, o Departamento
Nacional de Produção Mineral, vinculado ao Ministério de Minas e Energia.
Acuado pelas pressões, o diretor-geral do órgão, CELSO LUIZ GARCIA, demitiu-se.
130. A
lei brasileira estabelece que “a construção, ampliação e funcionamento de
atividades utilizadoras de recursos ambientais, que possam causar degradação
ambiental, dependerão do licenciamento do órgão estadual e do Ibama”. No
entanto, o Conselho Nacional do Meio Ambiente determinou que o licenciamento de
barragens seria da competência do poder estadual.
131. Em
2010, uma nova lei definiu que, além dos órgãos estaduais, caberia também ao
DNPM fazer a fiscalização. O problema é que, embora tenha sido obrigado a
assumir as atribuições, o DNPM não recebeu recursos. Minas tem hoje 500
barragens de rejeitos, 10% delas, segundo autoridades, em situação de risco. O
DNPM possui quatro técnicos para fazer as vistorias.
132.
No
final de novembro, inconformada com a demora das três mineradoras em propor um
plano de reparação dos danos provocados pelo desastre, DILMA ROUSSEFF convocou uma conferência por telefone com os
presidentes da VALE e da BHP. Falou duro e os ameaçou com uma
ação judicial. Até então, as duas mineradoras tentavam manter distância do
problema, alegando não interferir na gestão da controlada.
133.
DILMA se encontrou pessoalmente com RICARDO VESCOVI DE ARAGÃO. Durante a
reunião, quase não o deixou falar, interrompendo-o a todo instante. Quando a
presidente saiu da sala, ele comentou: “Ela tem tantas certezas sobre mineração que
poderia presidir a empresa.” VESCOVI
DE ARAGÃO só seria afastado da presidência da SAMARCO em janeiro [2016].
134.
Aprimeira
vitória sobre as empresas se deu quando a Justiça creditou o desastre não só à SAMARCO, como à VALE e à BHP. A VALE, inclusive, como poluidora direta,
pois também depositava rejeitos em FUNDÃO,
embora não tivesse comunicado o fato aos órgãos ambientais. A partir daí, as
três mineradoras teriam que se haver com o estrago. No começo de dezembro, os
dirigentes das companhias procuraram a presidente DILMA ROUSSEFF em busca de entendimento.
135.
O
Ibama, então presidido pela
engenheira MARILENE RAMOS, ficou
responsável pelo comando das negociações. Após discussões com prefeitos e
governadores das áreas atingidas, com entidades ambientais e as empresas,
estipulou-se o valor de 20 bilhões de
reais, entre indenizações e reparações, a ser pago pelas três mineradoras
em vinte [20] anos.
136.
Desse
total, 2 bilhões de reais seriam
destinados às pessoas que perderam bens pessoais e tiveram seus negócios
inviabilizados – empresas, hotéis, pousadas, fazendas –, e aos municípios que
tiveram suas estruturas públicas destruídas. Já os 18 bilhões restantes seriam empregados em medidas reparatórias e de
compensação pelo dano causado.
137.
As
reuniões na sede do Ibama, em Brasília,
foram tensas. As mineradoras levavam mais advogados do que técnicos. Um dos
grandes embates foi quanto à obrigação das empresas de construir redes de
tratamento de esgoto nos municípios da bacia do Doce e retirar todos os lixões
das margens. As companhias alegavam que não era responsabilidade delas. Numa
reunião que começou às nove da manhã e varou a noite, MARILENE RAMOS insistiu que o tratamento de esgoto era fundamental
para o rio restabelecer mais rapidamente seus processos biológicos destruídos pela
lama. “Eles pareciam não entender o tamanho da destruição que tinham provocado”,
RAMOS comentaria, durante uma
conversa em seu gabinete, em Brasília.
138. Os
representantes do Ministério Público federal e estadual abandonaram as
negociações logo de cara. O procurador federal de Minas Gerais, EDUARDO HENRIQUE AGUIAR, explicou, numa
conversa que tivemos no começo de abril, as razões da saída do MP – a
principal delas teria sido o fato de o vazamento continuar enquanto as
discussões ocorriam.
139. À
época das negociações em Brasília, a SAMARCO
não havia apresentado um PLANO DE
CONTENÇÃO da lama remanescente na barragem, o que só ocorreria no dia 13 de
janeiro. No entanto, quando entrevistei o procurador AGUIAR, cinco meses após o desastre, ele me disse que a empresa
ainda não havia resolvido o problema. “Estamos em abril [2016] e a barragem
continua vazando. Isso é inaceitável.” Apesar da reação do MP, o acordo
foi homologado pela Justiça no dia 5 de maio.
[6]
[POLÍCIA CIVIL INDICIA 8 PESSOAS, A VALE E A SAMARCO]
140. No
final de fevereiro, o delegado BUSTAMANTE,
da Polícia Civil, apresentou o resultado de seu inquérito. Ele incriminou o
presidente da SAMARCO, RICARDO VESCOVI DE ARAGÃO, e mais cinco
executivos da companhia, além do perito da VOGBR.
E pediu a prisão dos sete [7] pela morte de dezenove pessoas.
141. No
final de março [2016], no entanto, o Superior Tribunal de Justiça
suspendeu os pedidos de prisão até decidir se a competência das investigações é
da Justiça estadual ou federal. Em junho
[2016], a Polícia Federal indiciou oitos [8] pessoas por danos ambientais,
além da SAMARCO e da VALE**.
142. ROBERTO LÚCIO DE CARVALHO substituiu VESCOVI DE ARAGÃO na presidência da SAMARCO. Em meados de maio, tivemos uma
reunião no escritório da empresa, em Belo Horizonte. Falei sobre o resultado
das investigações, que apontavam para a liquefação da barragem. Ele me disse
que estavam aguardando o parecer das investigações encomendadas pela SAMARCO a consultorias internacionais.
Perguntei se a Samarco não deveria ter instalado ao menos uma sirene de alerta
em BENTO RODRIGUES para o caso de rompimento. “A sirene não era obrigatória”,
disse. “Além disso, nunca nos passou pela cabeça que a barragem pudesse romper
inteira. Isso nunca aconteceu no mundo.” E acrescentou: “Depois deste acidente,
o modo como olharemos as barragens vai mudar completamente. É como o acidente
de Chernobil. A indústria nuclear nunca mais foi a mesma depois dele.”
Finalmente, disse estar confiante de que a companhia poderia voltar a operar em
novembro, garantindo que a mineradora estaria fazendo um intenso trabalho de
recuperação das áreas devastadas.
143. Não
é bem assim. No começo de junho [2016], sete meses após a tragédia, o Ibama montou uma operação de emergência
para acompanhar o trabalho que a SAMARCO,
com suporte da VALE e da
anglo-australiana BHP BILLITON,
estaria fazendo nas áreas afetadas. Chamada de AUGIAS – em alusão a um dos doze trabalhos de Hércules, a limpeza dos estábulos –, a operação é coordenada por ANDRÉ SÓCRATES DE ALMEIDA TEIXEIRA,
diretor do Ibama.
144. Criticando
as mineradoras pelo atraso nas obras, ele confessou que seu maior temor é em
relação à hidrelétrica de Candonga –
como ela reteve 10 milhões de metros cúbicos de sedimento, sua estrutura está
sob pressão. E as obras ali estão paradas. A draga que a Samarco reservou para
limpar a lama sequer iniciou os trabalhos. “Candonga está abaixo do nível de segurança e já apresenta
rachaduras”, disse SÓCRATES DE ALMEIDA
TEIXEIRA. “Não quero imaginar o que pode acontecer se ela romper.”
145. Com
a chegada da estação das chuvas, em outubro, os 13 milhões de metros cúbicos de rejeitos remanescentes em FUNDÃO também correm o risco de
deslizar. Segundo SÓCRATES DE ALMEIDA
TEIXEIRA, os diques que a SAMARCO
ergueu para reter os resíduos estão saturados e não suportam quinze dias de
chuva forte. A mineradora e suas
controladoras estariam agindo de forma negligente: não fazem as obras ou as
fazem de maneira incorreta.
146. Com
a aceitação de abertura do processo de impeachment de DILMA ROUSSEFF, o governo interino de MICHEL TEMER nomeou ZEQUINHA
SARNEY para a pasta do Meio Ambiente. Logo que assumiu o posto, o ministro
esteve em Mariana e avisou que não
permitiria a retomada de operações da SAMARCO
se a empresa não vier a fazer muito mais do que foi feito até agora. Ele
inclusive pretende rever o acordo que o governo DILMA fechou com as três mineradoras.
147.
O
rompimento da barragem deixou sequelas difíceis de serem sanadas. Análises da
Universidade Federal do Espírito Santo revelam que a lama alterou toda a
biodiversidade hídrica e marinha. Além da fauna, ela destruiu as algas e os
micro-organismos (a cadeia alimentar dos peixes), e por isso é impossível
prever as consequências para a vida do rio e do mar.
148.
“Será
que os peixes vão se adaptar a nova dieta? Quais os efeitos da contaminação no
ser humano? E as tartarugas? Voltarão a desovar ali? Podemos ter uma fuga de
toda essa vida. Os resultados ainda estão por aparecer”, disse o
professor ALEX CARDOSO BASTOS, do
Departamento de Oceanografia da universidade.
149.
Por
causa dos altos índices de contaminação dos peixes e crustáceos, a pesca em
toda a extensão do rio Doce não é
recomendada e no mar de Regência está proibida.
150.
O
fotógrafo GUSTAVO NOLASCO, nascido
em Mariana, viajou para sua cidade
natal assim que soube do acidente. Ao ver o desespero dos moradores de BENTO RODRIGUES, criou uma publicação
que lhes possibilitasse externar suas dores e, dessa forma, reduzir seus
traumas. Para a primeira edição do jornal, chamado A Sirene –
instrumento só agora instalado nos povoados destruídos –, NOLASCO pediu que escrevessem sobre o que eles gostariam de levar
do antigo BENTO RODRIGUES para o novo,
a ser construído pela Samarco.
151.
A
lista é uma reflexão sobre o desbaratamento do fluxo da vida. Eis o que
escreveram: as serenatas, a escada de pedra, o pé de esponjeira, os vizinhos,
as igrejas, o banco de pedra da praça, a praça, o cemitério, o lambari frito, o
“ranca” na quadra, a brincadeira na rua, as cachoeiras, a vida livre…
[7] EPÍLOGO
152. Numa
tarde de abril, encontrei PAULA ALVES,
que hoje vive em Mariana, numa casa alugada pela Samarco. Como a maioria dos
moradores de BENTO RODRIGUES, ela
não conseguia se adaptar à cidade. Muitos enfrentam problemas de depressão e já
foram registrados três casos de suicídio.
153. ALVES não estava deprimida. Triste,
sim. Trabalhava como tratadora de animais no galpão que a Samarco montou para
abrigar aqueles que sobreviveram ao desastre. Continuava indo para o serviço
montada em sua moto, que ela chama de Berenice. Em maio, um mês depois de nosso
encontro, a empresa promoveu uma feira em que oitenta animais foram adotados. O
galpão esvaziou e ALVES foi
demitida. Seu filho de 5 anos está em tratamento psicológico.
154. ELIENE DOS SANTOS, a diretora, conseguiu uma
escola para receber os alunos de BENTO.
Ela, que viveu a vida toda no povoado, hoje mora num apartamento em Mariana,
com o marido e o filho. Perguntei qual sua expectativa em relação à nova BENTO RODRIGUES. Ela não pareceu
animada: a casa que a SAMARCO lhe
entregará não vai ter a mesma história da anterior, que construiu com o marido.
“Não terá a janela, o piso que escolhemos com tanto cuidado.” E completou: “Eu
gostaria que a minha vida estivesse do jeito que era até 5 de novembro. Não há
indenização que pague a mudança de rumo da minha história.”
155. Nos
últimos tempos, os antigos moradores de BENTO
vêm sendo vítimas de preconceito. “Somos como refugiados. Alvos de pena e de ódio”,
disse Santos. Em razão da paralisação da SAMARCO,
que afeta a economia local e aumenta o desemprego, muitos cidadãos de Mariana
atribuem a crise aos recém-chegados. O prefeito DUARTE JÚNIOR admite a existência do preconceito, sobretudo porque
os desalojados recebem da SAMARCO cartão
de alimentação e uma bolsa em dinheiro. Já os desempregados, esses têm que se
virar sozinhos. DUARTE JÚNIOR, que
assumiu a prefeitura em junho de 2015, após o titular ter sido cassado por
corrupção, disse que sem a arrecadação da SAMARCO
as contas do município não fecham.
156. Numa
manhã de abril, no Centro de Convenções de Mariana, o agricultor REINALDO CAETANO, junto com duas
centenas de moradores, esperava pelo cheque que a prefeitura distribuía às
vítimas da catástrofe. O dinheiro provinha de doações de várias partes do
Brasil. CAETANO brincava com seu
filho Iago num canto do salão, aguardando a vez. Contou que havia se separado
da mulher, JESSICA, depois que se
mudaram para a cidade. “Ela voltou a se drogar. Vi quando ela chegou em casa
toda mijada”, falou com naturalidade. Ele mesmo não anda bem, admitiu. Não
consegue dormir à noite. Sente uma “aflição sem fim”. Passa a madrugada no
ponto de táxi, conversando com os taxistas.
157. Por
questões de segurança, o acesso a BENTO
RODRIGUES agora é restrito. Saqueadores entravam no povoado para roubar o
que ainda podia ser aproveitado. Telhas, esquadrias. Em PARACATU DE BAIXO, as casas continuam soterradas. E seus restos
também foram roubados.
158. A
estudante SANDRA CARVALHO contou que
sua família foi informada da morte do pai no dia 24 de novembro. Encontraram o
corpo de DANIEL ALTAMIRO DE CARVALHO
destroçado no meio da barragem. CARVALHO,
que por 25 anos trabalhara na VALE e
fora demitido por causa da crise no setor de mineração, ficara feliz por ter
conseguido emprego na INTEGRAL, em
agosto. Menos de três meses depois estava morto. Em janeiro, seus familiares
passariam por uma experiência tétrica: foram-lhes entregues alguns pedaços
remanescentes do corpo, para os quais deveriam providenciar sepultura.
159. Os
corpos dos outros treze [13] trabalhadores também foram retirados dos rejeitos,
quase todos desmembrados. São eles, pela ordem em que surgiram: WALDEMIR APARECIDO LEANDRO, SAMUEL VIEIRA
ALBINO, SILENO NARKIEVICIUS DE LIMA, MARCOS ROBERTO XAVIER, EDINALDO OLIVEIRA
DE ASSIS, MARCOS AURÉLIO PEREIRA DE MOURA, CLAUDEMIR ELIAS DOS SANTOS, PEDRO
PAULINO LOPES, MATEUS MÁRCIO FERNANDES, VANDO MAURÍLIO DOS SANTOS, CLÁUDIO
FIUZA DA SILVA, AÍLTON MARTINS DOS SANTOS e EDMIRSON JOSÉ PESSOA.
160. Em
Valadares, SANDRO HERINGER me levou
até a beira do rio. Desde o acidente o remador se envolveu num movimento para
não deixar a tragédia ambiental passar incólume. Na vila de pescadores, perto
do rio, mosquitos atacavam quem se aproximava das margens. Vieram com a lama. Grande
parte dos moradores vive agora dos cartões de auxílio da SAMARCO. Ocorreu a multiplicação não de pães e peixes, mas de
pescadores, que proliferaram com a notícia de que a categoria seria indenizada.
Muitos dos que recebem o cartão nunca pegaram num anzol, disse HERINGER. Valadares também sofre com um
surto de dengue. Temendo a falta de água, os moradores exageraram no
armazenamento. Hoje, caixas d’águas, tanques, tonéis viraram focos do mosquito.
161. No
SAAE, o químico PACINI explicou que,
devido ao período de seca, a lama grossa decantara e a limpeza das máquinas
deve ser feita mais amiúde. Dias depois da conversa, seus dois superiores, o
diretor-geral do SAAE, Omir Quintino Soares, e o adjunto, Vilmar Dias Júnior,
foram presos pela Polícia Federal durante a Operação Mar de Lama, que investiga
desvios da verba federal enviada em 2013 para socorrer vítimas da enchente de
Valadares. São acusados de ter embolsado o dinheiro das obras de recuperação da
cidade.
162. Em
Colatina, o fotógrafo NEGRELLI continua
tentando chamar a atenção para a destruição ambiental. Sua mágoa com os
pescadores não passou: não fala mais com eles. Tem feito campanha para que a SAMARCO, a VALE e a BHP sejam
pressionadas a agir com mais rapidez.
163. Em
Regência, o líder comunitário CARLOS SANGÁLIA me acompanhou até a
praia. O mar continua uma imensa mancha vermelha. No caminho para a vila, ele
mostrou as pousadas fechadas. “Olha isso. Acabou tudo. Sequer sabemos o que vai
acontecer com as tartarugas.”
164. Em
Resplendor, dois líderes
comunitários da reserva da tribo Krenak, GIOVANI
e ITAMAR KRENAK, falaram das
consequências do acidente para seu povo. “Não podemos mais plantar porque não
temos água para irrigar. Não podemos fazer nossos rituais no rio e nossas
crianças não podem nadar. Já viu índio sem saber nadar?”, reclamou Giovani. “A
pior coisa que podia acontecer foi essa discussão do impeachment. Ninguém mais
quer saber do rio Doce.”
165. DEJANIRA KRENAK, a anciã da aldeia, sugeriu
que eu espiasse o rio. “É um silêncio só. Não tem mais vida ali. Nem mais um
peixe brincando na água”, disse.
Um caminhão-pipa cortou a aldeia. O motorista acenou. Quando o veículo parou, as crianças correram para tomar banho de mangueira.
Um caminhão-pipa cortou a aldeia. O motorista acenou. Quando o veículo parou, as crianças correram para tomar banho de mangueira.
Fim
da reportagem.
Disponível em: http://piaui.folha.uol.com.br/materia/a-onda-de-mariana/
[1] A primeira parte desta
reportagem foi inspirada por Hiroshima, de John Hersey.
* Trecho corrigido
em relação à versão impressa, que creditava Governador Valadares como a
única cidade brasileira a ter um finalista na prova olímpica, e não
pan-americana, de canoagem.
** Trecho corrigido
em relação à versão impressa, que, além da Samarco e da Vale, incluía
equivocadamente a BHP como uma das empresas que teriam sido indiciadas
pela Polícia Federal.
CONSUELO DIEGUEZ; repórter da PIAUÍ desde 2007, é autora da coletânea de
perfis Bilhões e Lágrimas, da Companhia das Letras
|
NOTA
DO EDITOR do Blog Ronald.Arquiteto e do Facebook Ronald Almeida Silva:
As
palavras e números entre [colchetes]; os destaques sublinhados, em negrito
e amarelo
bem como nomes próprios em CAIXA ALTA
e a numeração de parágrafos que foram introduzidas na presente versão NÃO
constam da edição original deste artigo / pesquisa / reportagem.
Esses
adendos ortográficos foram acrescidos meramente com intuito pedagógico de facilitar a leitura, a compreensão, a captação mnemônica e a eventual citação dos fatos mais relevantes do artigo por um espectro mais
amplo de leitores de diferentes formações, sem prejuízo do conteúdo cujo texto
está transcrito na íntegra e na forma da versão original.
O Blog Ronald
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12.257, de 18nov2011.
O gestor do Blog e da página RAS
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de militância político-partidária ou político-ideológica.
RONALD DE ALMEIDA SILVA
[Rio de
Janeiro, RJ, 02jun1947; reside em São Luís, MA, desde 1976]
Arquiteto Urbanista FAU-UFRJ 1972
Registro profissional CAU-BR A.107.150-5
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Blog Ronald.Arquiteto (ronalddealmeidasilva.blogspot.com)
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