[Autor: FERNANDO BRAGA]
CONVERSAS VADIAS´
(Documentos Maranhenses)
[Um Fernando, Dois José e três histórias em uma]
[Compartilhando Ronald Almeida, SLZ-MA, 29mai2023]
Era São Luís e chovia...
Meu querido amigo MURILO FERREIRA, egresso do Instituto Rio Branco e posto em disponibilidade por ter lançado um livro intitulado ‘O PUSILÂNIME’, a mexer com as susceptibilidades de certos figurões pátrios, deu-me a sorte de encontra-lo à porta do ‘Atenas Bar’.
Era maio de 1969, depois dos cumprimentos iniciais, clareou sê-me uma ideia kafkiana: “MURILO, vamos fazer alguma coisa para intensificar mais São Luís àqueles ares europeus do início do século XIX, como nos conta o professor NASCIMENTO MORAES no seu ‘Vencidos e degenerados’?” Vamos, disse-me ele sorrindo, a perguntar-me: o quê, por exemplo?” “A morte de Erasmo”, disse-lhe, “ele já morreu umas dez vezes, mesmo!...”
Ele respondeu-me sem titubear: “Vamos! Pelo menos se faz alguma coisa para sacudir as velhas muralhas desta nossa São Luís, hoje mais pachorrenta que nunca.”
E a notícia, corporificada à boca miúda, transpôs de logo os gradis do continente e correu...
Chegou até SARNEY que, como governador, suspendeu em palácio um almoço com cinco almirantes...
Antes de ser, vale como ‘Post scriptum’: JOSÉ ERASMO DIAS, era jornalista, escritor, uma eminência parda [“éminence grise”]’ de vários governos, que depois desta, uma das suas muitas mortes, esbarrou na pena brilhante do jornalista e poeta JOSÉ CHAGAS, que nos conta como foi esta história:
A MORTE DE ERASMO.
[Autor] JOSÉ CHAGAS *:
‘
Jornal do Dia’, São Luís, MA, 05 de maio de 1969.
“A morte do jornalista ERASMO DIAS, anteontem, constituiu o mais psicodélico dos acontecimentos, nos últimos dias, em São Luís. A notícia espalhou-se pela cidade e, entre dúvidas e certezas, muitos de seus amigos viveram momentos de angústia, alguns procurando afogar essa angústia no “Atenas Bar”, o que era ao mesmo tempo um consolo e uma homenagem ao recém-desaparecido.
MURILO FERREIRA vira quando o ERASMO, alta madrugada, depois de um colapso em plena rua, fora levado para o Centro Médico. E como testemunha de vista afirmava que o ERASMO já chegara ali morto, afirmação essa que no bar contrariava a opinião de outros que teimavam em dizer que o jornalista só falecera momentos depois de chegar ao Centro Médico.
O poeta FERNANDO BRAGA contava detalhadamente como o corpo do já pranteado jornalista fora levado para a residência nos Apicuns e falava da dificuldade imensa que tiveram para encontrar dentro da casa o terno preto com que vestissem o morto, de modo que ele se apresentasse dignamente, em sua postura cadavérica.
Enquanto isso, o MURILO, entre prantos e cervejas, ia explicando aos que entravam no bar outro grande problema surgido com a morte do ERASMO. Era que seu corpo estava sendo disputado pela Assembleia Legislativa, pela Academia de Letras e pela Prefeitura Municipal.
A Assembleia argumentava que o jornalista havia sido deputado, era funcionário daquela casa e, portanto, o Legislativo tinha direito sobre o seu cadáver.
A Academia de Letras, considerando que Erasmo havia sido um dos mais inteligentes escritores e uma figura das mais evidentes em nossos meios literários, queria que o corpo fosse levado para lá, tentando talvez academizá-lo postumamente, o que muitos achavam ser uma traição ao jornalista.
Já o [Prefeito] CAFETEIRA alegava que ERASMO fora prefeito em certa época e por isso desejava que o corpo fosse levado para o recinto da Câmara Municipal.
Houve quem também dissesse ali no bar que as últimas palavras de ERASMO fora: “Água! Água!” Mas ninguém acreditou. Não era possível que na hora respeitável da morte o ERASMO fosse faltar com sua coerência tão bem demonstrada em vida.
E o poeta FERNANDO BRAGA lembrava outro detalhe: “O ERASMO sempre me dizia que no dia de sua morte só queria de mim isto: “que eu colocasse quinze rosas em seu túmulo e bebesse uma cachaça no Bar da Saudade”. O poeta já havia comprado as rosas e mais algumas margaridas. Queria em enterro “hippy”.
Amigos e mais amigos chegavam e ficavam consternados. Se alguns duvidavam, Murilo mandava ouvir o rádio, através do qual o locutor FERNANDO SOUSA dizia: “Estamos sabendo que o jornalista ERASMO DIAS acaba de falecer. Notícia não confirmada, mas enquanto isso é com grande pesar que comunicamos o doloroso fato”: Era o que o Presidente Michel chamou depois de “morte condicionada”. Muitas pessoas tomaram automóveis e foram até a casa do jornalista morto, certas de que o rádio estava dizendo a verdade.
E eis que de repente o ERASMO, de paletó e gravata, entra no bar, exclamando: “Essa, não! Nunca morrer assim, num dia assim, de grogue assim...” Sentou-se e pediu uma cachaça, sob a admiração de muitos que o viam como um ressuscitado. E duas coisas dolorosas foram então lembradas: a frustração do jornalista PAULO MORAES, que já estava com o discurso pronto para a beira do túmulo, e a raiva do jornalista Amaral Raposo, que entrou no bar e disse, danado da vida: “Peguei um automóvel, gastei dois mil cruzeiros para ir à casa do Erasmo e esse idiota nem morreu nem nada. Nunca mais vou cair no conto da morte dele!”
A essa altura, ERASMO sorria feliz, pedia outra dose e dizia ao dono do bar: “Defunto não paga grogue”, sem saber que o dono do bar tinha vivido momentos aflitivos, chorando com um vale preso na mão e a que o MURILO FERREIRA chamara de “verdadeiro vale de lágrimas”.
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Nota RAS: as palavras, datas e números entre [COLCHETES] e os nomes próprios grafados em CAIXA ALTA não constam do original.
* Foto [colorida] do jornalista e escritor JOSÉ CHAGAS, já falecido, autor imortal de ‘Os telhados’, ‘Os canhões do silêncio’, ‘Colégio dos ventos’ e outras grandes publicações.
** Foto [preto e branco] de JOSÉ ERASMO DIAS, autor do ensaio 'Páginas de crítica' e de grandes artigos em jornais, também já falecido, desta vez, de verdade.
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