JUSTIÇA & DIREITO (2): DIGNÍSSIMO CANALHA
REPRODUÇÃO DO ARTIGO DE SERGIO SAYEG.
DIGNÍSSIMO CANALHA
Data vênia, vai pro quinto dos infernos.
Sergio Sayeg
quarta-feira, 18 de setembro de 2013
DIGNÍSSIMO CANALHA
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Pelo presente
instrumento, venho dirigir-me a vossa excelência. Com minúsculas e na segunda
pessoa, pessoa de segunda que és, mauricinho de nariz empertigado. Tu, que te
ocultas, sorrateiro, por trás dessa impecável e pretíssima toga funesta.
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Tu que recebes aprumado a reverência do povo de
joelhos à espera de tuas soberanas e irretocáveis decisões peremptórias. Tu que
estás imbuído da divina prerrogativa, intransferível e vitalícia, de deliberar sobre o destino dos homens que habitam o mundo dos
vivos, já que o dos mortos foge à tua jurisprudência, instância suprema à do
teu supremo (embora nutras anseios em manter paridade e equiparação divina com
Aquele que exerce tal competência). Tu que reclamas indignamente indignado por
direitos inalienáveis e vives na intimidade inescrutável de tua vida privada de
práticas inconfessáveis. Tu mesmo, nobre calhorda, que de tanto exercer o
ofício de julgar os outros, passaste a julgar-te acima dos outros.
·
Venho oficiar-te, honorável patife, que há mais
retidão e honra na palavra espontânea e honesta que brota do coração de um
humilde homem iletrado do povo do que no alfarrábio que sustém tuas
áridas, infindáveis, mirabolantes e ordinárias sentenças. As mesmas que
revestes, vaidoso, em capa dura, fazendo-as constar com letras douradas dos
anais que ostentas nas prateleiras intermináveis onde expões tua soberba
grandiloquência farisaica e tua rocambolesca sapiência estéril.
·
Amealhas com vileza recursos tomados do povo
injustiçado para manter intacto esse intrincado e indecifrável sistema, tão
inócuo quanto iníquo, que qualificas cinicamente de Justiça, a fim de cobrir
com aura de magnificência e infalibilidade essa espetaculosa e suntuosa
pantomima patética e embusteira que deixa boquiabertas as legiões dos
sem-justiça desse país, mantidas sob o jugo do teu julgar.
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Cultivaste esse interminável cipoal de leis,
decretos, normas, códigos, tratados, regimentos, resoluções, regulamentações,
pareceres, dispositivos, medidas provisórias e embargos infringentes, para
reservares a ti próprio o monopólio do conhecimento e das práticas a ti
outorgadas (adivinha!) “por lei”, afastando o povaréu ‘abestado’ de teu
demarcado território. Para que, na mesma medida em que amplias a doutrina do
direito, reduzas o primado da justiça.
·
A chave de tua
inoperância chama-se prazo. Consideraste, eminente pulha, que, após décadas de
espera, a sentença já foi proferida, independente do transitado em julgado?
Abstrais, emérito canalha, a variável tempo sob presunção de que o tempo é uma
mera ‘questão de tempo’. Adias, protelas, procrastinas, prorrogas, retardas,
demoras, protrais, diferes, pospões, alongas, espichas, espacejas, alastras,
esticas, dilatas, intervalas, encompridas, acresces, amplias, expandes,
empurras com a barriga.
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Pois, então, devo informar-te, distinto
safardana, que quem aguarda por anos, seja nutrindo a raiva da privação de
benesses não fruídas, seja gozando do deleite de penas não cumpridas, já é
repositório da sentença, seja esta qual for. Em meio a tantos réus, jurados e
testemunhas, apenas um deve ser declarado culpado em todas as instâncias: tu,
criatura ignóbil.
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Sai da tocaia,
egrégio velhaco. Desce desse palácio de letras, capítulos, parágrafos, alíneas,
incisos, caputs e cláusulas em que te enclausuras. Cumpre salientar, excelentíssimo
pústula, que as ruas, caso não observes do palácio que construíste (sem decurso
de prazo) para te isolares da realidade de fato e de direito, estão repletas de
malfeitores que levianamente livrastes das masmorras.
·
Não por um sentimento benevolente de perdão ou
por uma crença abnegada no poder de recuperação humana mas por um
incompreensível pragmatismo jurídico. Delinquentes de toda a espécie a quem
remistes da pena, hoje libertos de punição, em uníssono, zombam, sob tua
retumbante indiferença, dos tolos que se pautam em princípios e honradez.
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Vivem os justos à margem das formalidades
legais que queres agrilhoar a cada cidadão, a fim de emparelhares todos
pelo mesmo nível de calhordice que imaginas serem, por natureza, dotados. Por
certo, espelhando tua maneira de te comportar e de enxergares os homens para
necessitarem de tua mediadora e interesseira presença, seu justiceiro de
araque.
·
Sob o manto do teu glorificado ‘estado de
direito’, canalhas, corruptos, patifes, ladrões de todas as espécies ascenderam
aos postos de direção com a tua serena condescendência. Mais: com a tua cruel
cumplicidade. São estes que tratas com a mais alta leniência, amparando-os com
a força irrefutável da lei, draconiana indulgência e intolerância zero.
Cobrindo a impunidade com o manto legalista da imunidade.
·
De quem é a culpa? “Dos legisladores, do
governo, da polícia, da falta de juízes, da falta de vagas no sistema
prisional, da falta de investimento, da má distribuição da renda, do
desemprego, da falta de políticas públicas, dos baixos salários, da alta dos
juros, do neoliberalismo, da crise do euro, da colonização portuguesa, da gripe
suína, do derretimento das calotas polares”, bradas indignado. Tu, homo vermis,
és o único triplamente qualificado como “not guilty” nessa história. Justo tu!
“Por falta de provas”, provas.
·
Todo teu empenho é de não punir. Inocentes ou
culpados, pouco importa. ‘In dubio pro reo’, desde que teus honorários sejam
quitados ‘in specie’ com correção, exatidão, integridade e... justiça.
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E assim, pelos mais variados pretextos, vais
libertando das grades todos os poderosos tubarões, reservando os horrores dos
calabouços aos despossuídos que não participam do pecúlio que sustenta a
devassidão moral que apadrinhas, consagrando esse país como o paraíso da
impunidade.
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Deixa de hipocrisia. A quem pretendes enganar
dizendo que és a fonte da Justiça? Teu ofício é apenas advogar em prol de
vermes, devolvendo-lhes em serviços pérfidos o peso do ouro que repassam a
teus confrades. A justiça é o contrário de ti. É tornar o mundo humano,
decente, com as pessoas podendo se olhar de frente, confiando umas nas outras.
Prescindindo de teus sórdidos préstimos.
·
Justiça seja feita: quem te sustenta,
respeitável biltre, são apenas os safados. Os fora-da-lei que, por fora da lei,
julgas. Crápulas que, dispensando nobres considerações éticas, estudam teus
intrincados preceitos e se formam doutores para assimilar os meios legais,
penais, constitucionais e amorais de permanecer impunes e qualificarem-se a ingressar
em tuas rodinhas infames. Partilharem do papo do cafezinho do fórum. Onde,
restritas às indevassáveis paredes que os protegem, rolam torpezas
inimagináveis. Tornam-se teus amigos e cupinchas. Uma corporação fechada de
rábulas parasitas. Justamente!
·
Os princípios de retidão e civilidade estão
dentro de nós (e fora de ti). Num mundo de justos, tua justiça não se ajusta.
Gente honrada entende-se entre si, sem necessitar da tua protocolar
intermediação. Bastam os princípios. Quem carece de lei são os que dela vivem à
margem. Se para os honrados, é desnecessária e para os bandidos, ineficaz, para
os da escória que integras, é verba no bolso.
Data vênia, [digníssimo
canalha] vai pro quinto dos infernos.
[fim do texto original]
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